Nas últimas semanas, li em sequência os livros Dresden e Não Sou Um Anjo.
O primeiro relata em detalhes as circunstâncias que levaram, nos dias finais da II Guerra, à destruição por bombardeio aéreo de cerca de 24 km quadrados da cidade alemã e à morte de algo entre 25 mil e 40 mil pessoas queimadas, asfixiadas ou soterradas, tudo num intervalo de pouco mais de doze horas. O outro livro é a biografia de Bernie Ecclestone.
Difícil, ao final da leitura dos livros, afirmar qual dos dois me repugnou mais. Em Dresden, brilhantemente escrito por Frederick Taylor, há a chocante violência contra civis indefesos, numa ação de escasso valor militar embalada pelo sentimento de vingança – compreensível, eu diria – dos Aliados contra a agressão alemã. Já em Não Sou Um Anjo, vemos um relatório frio sobre quão desmedidas, doentias e abjetas podem ser a ambição, a cobiça, a ganância e a vaidade humana.
Pobre e descuidado em relação aos acontecimentos esportivos (imagino que em grande parte por culpa da tradução e revisão feitas pelos editores brasileiros), o livro de Bernie, apesar das suas 500 páginas, é um relato sumário da trajetória do empresário que fundou a Fórmula 1 contemporânea mas que, presa da própria vaidade, arrogância e indiferença pelo resto da humanidade, ameaçou e segue ameaçando estrangula-la, como se ela não fosse digna de existir depois que ele morrer. O livro deixa claro por que isso acontece.
Os capítulos iniciais, dedicados aos primeiros quarenta anos de Bernie, já expõem um homem de princípios escassos, negociando carros usados no limite da lei – ele resistia a comprar carros que não pudesse adulterar antes de revende-los, atemorizava concorrentes por todos os meios possíveis, enfrentava graves acusações do fisco por sonegação de impostos e ainda conquistava reputação de negociar bem com marginais. Enquanto isso, cultivava o amor pelo automobilismo, tentando firmar-se como piloto e, mais tarde, como empresário de pilotos.
Mas é a partir de meados dos anos 70 que a leitura vai, gradualmente, tornando-se mais e mais nauseante. É quando Bernie, já proprietário da Brabham, começa a perceber e desenvolver, uma a uma, as enormes oportunidades de negócios que se oferecem à Fórmula 1. A partir daí, praticamente não há mais esporte na história, apenas uma incrível e vertiginosa sucessão de tramoias, achaques, golpes, corrupção e dinheiro, muito dinheiro. Nas palavras de um comparsa, Max Mosley, Bernie “está nesse negócio pelo dinheiro, às vezes como uma doença”.
A virtude básica de Bernie, se podemos chama-la assim, pode ser resumida da seguinte forma: ele conseguiu convencer os outros donos de equipe a confiar a ele as negociações comerciais e técnicas primeiro com os donos dos autódromos, depois com as autoridades esportivas e emissoras de TV. Em troca, Bernie pede uma participação crescente nas receitas que conseguisse obter. Combinando lances de esperteza rapina, suborno, truques contábeis de todos os tipos e desleixo generalizado das equipes, que nunca conseguiram se articular para tomar dele as rédeas da categoria, Bernie tornou-se um dos homens mais ricos do mundo e segue exercendo o seu poder de maneira tirânica, em combinação com personagens menores mas igualmente abjetos como Mosley, Jean-Marie Balestre e florido elenco.
Na medida em que enriquece, Bernie se torna mais truculento, imperial e indiferente às opiniões e pressões externas. Se notabiliza por jogar telefones na parede e semear o terror entre funcionários e eventuais concorrentes. Homem de poucas luzes e nenhum estudo, administra a Fórmula 1 como uma agência de carros usados de bairro. Documentos, contratos, contabilidade, tudo fica prioritariamente na cabeça dele e apenas eventualmente no papel. Bernie persegue esta informalidade com as mesmas motivações de um mafioso, sabendo que o que está documentado poderá, mais tarde, ser usado contra ele. Não muda esta postura na medida em que os negócios vão crescendo e, por isso, vai acumulando problemas com as autoridades, as equipes, os sócios. Torna-se neurótico a ponto de não permitir que auditores que tentavam ajuda-lo na tentativa de abrir o capital das suas empresas copiem ou retirem do seu escritório os poucos documentos existentes. É por isso, em última instância, que Bernie só consegue entabular negociações com empresários tacanhos como ele. É por isso também que vimos no passado tantas mudanças de nome nas suas empresas – FOM, FOA etc. Ele as ia criando e descartando na medida em que tropeçava em um novo problema.
Como um toque de humor negro, ponteia a história de Bernie o seu complexo de inferioridade resultante da baixa estatura e a sua sabujice a Slavica, uma mulher de origem nebulosa, sujeita a chantagens frequentes decorrentes da sua vida pregressa mas que nunca se furtou a agredir física e moralmente o marido, mesmo na frente da filhas. A relação humilhante com a agora ex mulher compete com a sucessão de mutretas negociais como a parte mais deprimente do livro.
Não sou especialista em negócios, contratos e finanças mas tenho convicção que o autor de Não Sou Um Anjo, Tom Bower, não conseguiu penetrar nos segredos de Bernie além de um certo limite – mas o que ele levantou já basta para compor um retrato assustador do homem que construiu, em grande parte, a Fórmula 1 atual.
Costumamos admirar, respeitar e louvar o “instituto assassino” dos nossos pilotos preferidos – Ayrton Senna e Michael Schumacher talvez o tenham em grau maior do que todos os demais grandes campeões. O que se vê na trajetória de Bernie Ecclestone – admito isso com alguma tristeza – é este mesmo instinto dirigido para a cobiça material ilimitada e as ambições de poder e vaidade igualmente desmedidas. Todo grande empresário é assim, alguns mais outros menos, alguns durante períodos de tempo mais longos, outros mais curtos, e parece não haver outra forma de construir uma grande fortuna, da mesma forma que parece impossível construir uma carreira de sucesso nas pistas com um espírito cordato e temperado.
Mesmo entendendo e aceitando isso, termino o livro repugnado e gostando menos da categoria pela qual me apaixonei 43 anos atrás. Pense nisso, caro leitor, antes de ler Não Sou Um Anjo.
Pedindo desculpas pelo tema sombrio, desejo a todos um Feliz Natal e um 2012 cheio de paz, amor e saúde.
Eduardo Correa
10 Comments
Olá a todos, vi o livro a pouco e fui buscar referencias e o texto esta de parabéns. Lamentavelmente e sabemos disto êh sujeira atras de sujeira a vida do anão circense do automobilismo, mas nao temos como negar que conseguiu amarrar seus contratos como ninguém pois todos criticam e a mesmo tempo veneram. A pergunta êh se devemos ou nao comprar o livro passa se teremos estômago e fígado para digerir. De quer forma gostaria muito de saber dos colegas da coluna e do Eduardo quais sao os livros que conseguimos achar de pilotos publicados no Brasil . Título e autor se possível. Abs a tds e boas festas.
Seu texto é muito bom, mas não concordo com esse fatalismo de dizer que todo empresário ou pessoa bem sucedida dever ter um “espírito assassino”. Muitos vencem pelo talento e esperteza para não cairem em armadilhas.Porém, o que se vê na F1 e outros setores sociais (política brasileira por exemplo) é a paranóia absoluta e a falta de pudor em situações que exigem bom senso e equilíbrio, como diz você, “tempera”. Machiavel, no século XIV, retratou uma Itália tumultuada e dividida em que o “príncipe” visava os fins em detrimento de qualquer escrúpulo moral. Mas ele pensou em uma ação prática que fortalecesse a Itália e com isso se formariam as leis e instituições que estabeleceriam regras de convivência. Hoje o que temos são bandidos poderosos que não podem ser confundidos como “líderes” com grande senso “prático” porque instabilizam mais do que estabilizam. O que está acontecendo na F1 não é o fortalecimento da categoria através de um grande “líder” mas sim o desmantelamento do esporte… Essa é a minha opinião e parabéns pelo site…
Olá Amigos do GPTotal
Grande coluna Edu!
Eu já escrevi, acho que no ano passado, um pequeno texto comentando os atos de Little Ecclestone, e que ele parece estar querendo matar a F1.
Ele já tem mais de 80 anos, e parece querer levar a nossa amada F1 junto com ele quando o sedã branco estacionar na sua frente.
Pretendo ler esta biografia, e também concordo com o amigo Marcio Madeira, pois as biografias de pilotos, são muito melhores de ler.
Mas, como amante da F1, não posso deixar esta biografia de Little Ecclestone de fora da minha coleção.
A todos os amigos do GPTotal, um Feliz Natal, e um próspero 2012.
Abraço a todos!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Grande Edu !
Que feliz resenha voce fez ! Este ser desprezível, tal qual um anão do mal, ainda faz das suas, macomunado, como bem disse voce, com seus iguais (ou piores) e por isto, a Fórmula 1 está cada vez pior em termos técnicos, de competitividade, no surgimento de verdadeiros pilotos e na supremacia do dinheiro sobre o talento …
Um grande abraço a voce, a todos os amigos do GP Total e um Feliz Natal e Feliz 2012 !
Olá Edu,
Como estou terminando de ler “O Muro”, de Frederick Taylor, provavelmente sei que Dresden também deverá ser tão bom e comprarei em breve.
Como sempre, lhe desejo um ótimo Natal e que 2012 seja de muitas felicidades!
Caro Edu,
Que bom que você se sente enojado com tudo isso. Sinal de que você ainda guarda certos valores que tem se tornado muito raros hoje em dia. Infelizmente muitos leitores leêm este tipo de matéria e pensam coisas tais como: “O cara é esperto!” “è desonesto e podre moralmente mas cresceu muito na vida”!
Parabéns pelo seu ponto de vista!
Com relação aos pilotos mencionados porém, existe uma direrença notável. Parece que o Ayrton teve de enfrentar de VERDADE este sistema corrupto para mostrar que ele tinha uma talento verdadeiramente superior aos demais.Ele era esperto, inteligente e sabia “jogar” é verdade. Mas parecia valorizar certos valores morais.
Com relação ao Schumacher, fica sempre aquela impressão de que ele precisou de uma “ajudinha” para enfrentar seu adversário de inicío de carreira, pois sabia que no mano a mano não podia com o Ayrton. E Schumacher sempre deu a impressão de se beneficiar com todo este sistema podre que você mencionou, relacionado ao Bernie Eclestone e Fia, embora isto não signifique que ele não tenha sido um dos melhores pilotos da história do automobilismo.
O FATO É QUE O SISTEMA É PODRE MESMO. ESTA É A REALIDADE!
Abraços, Costajunior
|Montes Claros-MG
Caro Edu,
Que bom que você se sente enojado com tudo isso. Sinal de que você ainda guarda certos valores que tem se tornado muito raros hoje em dia. Infelizmente muitos leitores leêm este tipo de matéria e pensam coisas tais como: “O cara é esperto!” “è desonesto e podre moralmente mas cresceu muito na vida”!
Parabéns pelo seu ponto de vista!
Com relação aos pilotos mencionados porém, existe uma direrença notável. Parece que o Ayrton teve de enfrentar de VERDADE este sistema corrupto para mostrar que ele tinha uma talento verdadeiramente superior aos demais.Ele era esperto, inteligente e sabia “jogar” é verdade. Mas parecia valorizar certos valores morais.
Com relação ao Schumacher, fica sempre aquela impressão de que ele precisou de uma “ajudinha” para enfrentar seu adversário de inicío de carreira, pois sabia que no mano a mano não podia com o Ayrton. E Schumacher sempre deu a impressão de se beneficiar com todo este sistema podre que você mencionou, relacionado ao Bernie Eclestone e Fia, embora isto não signifique que ele não tenha sido um dos melhores pilotos da história do automobilismo.
O FATO É QUE O SISTEMA É PODRE MESMO. ESTA É A REALIDADE!
Abraços, Costajunior
Salve Edu.
Rapaz, eu estive em vias de adquirir o mesmo livro em sua versão original “No Angel”, em meio a um grande pacote de aquisições bibliográficas, quando resolvi ler uma crítica antes de fechar a compra. E os comentários especializados que encontrei foram bastante negativos – não apenas em relação à história em si, mas ao livro mesmo. Ao que parece, este não foi o melhor livro escrito a respeito da vida de Bernie, e em inglês existem pelo menos outros três.
Se vale um conselho do amigo, compre uma boa biografia de piloto – acabei de ler a de James Hunt e recomendo -, curta as merecidas férias, e volte com a paixão renovada em 2012.
Aquele abraço, e tudo de bom.
Não tenho dúvidas de que sem o Bernie a F-1 não seria como é hoje. Provavelmente seria bem melhor, pois quando começa a circular muita grana num esporte, este deixa de ser esporte e vira negócio (mafioso). Aconteceu o mesmo com o Futebol, e acontece com qualquer esporte.
Fiquei quase um ano sem acessar o site, gostei da nova cara dele, e a qualidade do conteúdo foi mantida, parabéns, boas festas e Feliz 2012 para todos nós!
Luizinho – SP
Caro Edu,
Como seria a a Formula 1 sem o “todo poderoso” B. Ecclestone nestes anos que se passaram? Dá para imaginar alguma coisa diferente ou seria uma evolução como realmente se deu?
As Brabhams, principalmente vermelhas e com motores Alfa Romeu eram simplesmentes lindas …
Aproveitando o ensejo … bom Natal e prósperos 2012 …
Fernando Marques
Niterói RJ