O pior do erros

Segundo ato
13/02/2015
A âncora
20/02/2015

Le Mans 55: 78 mortos e 94 feridos depois de um erro de Mike Hawthorn. Ao final, ele venceu a corrida - e comemorou a vitória tomando champagne

Já escrevi aqui algumas vezes sobre os erros cometidos nas pistas, por pilotos e engenheiros. Hoje*, quero tratar daquele que foi, certamente, o pior erro jamais cometido no automobilismo esportivo e também aquele que cobrou o maior preço: o acidente nas 24 Horas de Le Mans de 55, provocado por Mike Hawthorn, que se tornaria campeão da Fórmula 1 três anos mais tarde.

Nas vésperas da corrida, tudo fazia prever um tríplice e sensacional embate entre Jaguar, Ferrari e Mercedes, animada pela extraordinária vitória, semanas antes, nas Mil Milhas italianas.

A Mercedes levou para Le Mans três carros modelo 300SLR, que incorporavam avanços tecnológicos que as demais equipes sequer sonhavam. Um deles seria pilotado por Juan Manuel Fangio e Stirling Moss, o que seria o mesmo que juntar num mesmo carro, hoje, Michael Schumacher e Fernando Alonso.

Outro Mercedes foi inscrito para a dupla John Fitch e Pierre Levegh, este um francês de 50 anos de idade, dono de um feito memorável em Le Mans: em 1952, ele conduziu seu Talbot por 22 horas seguidas, recusando-se terminantemente a passar o carro ao co-piloto – e estava em 1o lugar quando o motor do carro quebrou.

A corrida começou no sábado, 11 de junho, às 16h, sob céu azul. Uma multidão estava presente, separada da pista por não mais do que grades de madeira e pequenos montes de terra.

A largada foi dada no estilo tradicional de Le Mans: carros desligados e estacionados em 45 graus do lado interno da pista, com os pilotos do outro lado. Dada a bandeirada, os pilotos atravessavam a pista correndo, saltavam para dentro dos carros, davam a partida e arrancavam.

Fangio, ao pular para dentro do seu 300SLR, enfiou a perna da calça no câmbio! Até se desvencilhar, perdeu muitas posições. Eugenio Castellotti, com Ferrari, liderou as 15 primeiras voltas, seguido por Mike Hawthorn com um Jaguar D-Type. Fangio passou na primeira volta em 14º mas estava reduzindo a desvantagem para os líderes de forma brutal. A pole havia sido marcada por Castellotti com 4m14; Fangio fez várias voltas em 4m10 de forma que, na volta 12, já corria em 2º lugar. Na altura da volta 28, os líderes marcavam tempos em torno de 4m6.

Algumas voltas mais tarde, Fangio e Hawthorn passam Castellotti, os três voando pela pista a uma média de 200 km/h, chegando a 300 km/h nas Hunaudières, como se fosse um GP e não uma corrida de 24 horas.

Hawthorn estava pisando tudo, sem deixar nenhuma reserva. Ele contou, depois, que estava determinado a impedir a vitória da Mercedes. “Maldição. Por que um carro alemão deve vencer um carro inglês?”, pensava. Talvez as feridas da II Guerra ainda não estivessem de todo cicatrizadas.

O acidente aconteceu na volta 34, com pouco mais de duas horas de prova e dia claro, portanto. Hawthorn estava na liderança e se aproximava dos boxes para seu primeiro pitstop. Naquele tempo, chegava-se à reta dos boxes sem que fosse necessário passar pela chicane que se vê hoje.

Vinha-se por uma reta que dobrava à direita em direção aos boxes, numa curva de uns 30 graus, que certamente os pilotos percorriam com aceleração plena. Detalhe: não havia muro dos boxes. Pista e boxes eram separados apenas por uma faixa no chão, como na absoluta maioria dos autódromos daquela época.

Querendo perder o menor tempo possível, Hawthorn trouxe o seu Jaguar do lado esquerdo da pista para o direito no último momento possível, menos de 100 metros antes da entrada para os boxes – e então freou violentamente.

Nesta manobra, ele ultrapassou o Austin-Healey do inglês Lance Macklin, já cinco voltas atrasado e que, vendo a aproximação dos líderes, levou seu carro prudentemente para a direita. Mas, com a manobra de Hawthorn e a súbita redução de velocidade do Jaguar, equipado com poderosos freios a disco, apenas uns dez metros à frente, Macklin percebeu de imediato que não conseguiria evitar a colisão com a traseira do Jaguar.

Assim, sem sinalizar com as mãos ou com a lanterna traseira, ele cravou o pé no freio, suas rodas travando brevemente, e não teve alternativa que não voltar para o centro da pista, num trecho que não comportava muito mais do que três carros lado a lado.

Neste momento, dois Mercedes se aproximavam em máxima velocidade: o de Levegh, que estava tomando uma volta dos líderes, e o de Fangio, que certamente passaria o companheiro de equipe diante dos boxes.

A tragédia ia começar.

Tudo aconteceu num piscar de olhos.

A frente do Mercedes de Levegh, correndo a quase 300 km/h, colheu a traseira do carro de Macklin, que corria a não mais do que 180 km/h. Não foi um choque pleno mas lateral contra lateral, o que contribuiu para fazer com que o Mercedes decolasse, voando uns 50 metros e depois quicando repetidas vezes sobre os montes de terra reforçados por madeira colocados à beira da pista por mais uns 50 metros, até atingir uma estrutura de concreto que dava acesso a um túnel sob a pista.

A cena é dantesca. O carro de Levegh projeta pedaços em meio ao público a cada nova quicada, até se desintegrar, o motor, a suspensão dianteira e partes do chassi espalhando-se entre o público amontoado à beira da pista e fazendo, aí, a maior parte das vítimas, várias delas degoladas. Há uma explosão de chamas, logo controlada. Atingida pelos destroços, uma mulher é arremessada para dentro da pista, onde jaz morta, o corpo horrivelmente queimado pelas chamas do Mercedes. Atordoados, alguns policiais não veem coisa melhor a fazer do que envolver o corpo da mulher numa faixa de publicidade e arrastá-lo para os boxes.

httpv://youtu.be/RMoh5hZAaZk

Naturalmente, houve pânico entre o público, que corria em direção aos portões de saída, não sendo poucos os casos de pessoas que morreram pisoteadas.

Encerrada a corrida, anunciou-se o trágico balanço, de longe o pior da história do automobilismo: 78 pessoas haviam morrido, entre elas Pierre Levegh, cujo corpo foi lançado a mais de 70 metros. 94 ficaram feridas. Macklin escapara sem ferimentos a despeito de seu carro ter atropelado duas pessoas antes de parar. Fangio, prevenido por um desesperado sinal de braço de Levegh, pode reduzir um pouco a velocidade e achar uma brecha entre os carros, seguindo na corrida.

Numa decisão discutida até hoje, Charles Faroux, diretor da corrida, decidiu pela sua continuação. A justificativa era de que interromper a prova apenas atrapalharia o trabalho de socorro às vítimas, já que as estradas ficariam congestionadas, atrasando o trânsito das ambulâncias. De minha parte, diria que é uma boa justificativa para a alegação suprema de quem promove alguma coisa: o show deve continuar.

Os Ferrari não resistiriam por muito tempo ao ritmo da corrida e, quando a noite caiu, estão fora. O Mercedes de Fangio e Moss liderava com grande vantagem, sendo seguido por três carros da Jaguar. Nas precárias ligações telefônicas da época, o diretor da equipe Mercedes, Norbert Neubauer, debate com seus chefes, na Alemanha, se a equipe deve ou não continuar na corrida. Uma decisão é finalmente tomada por volta da meia noite: a equipe se retiraria em sinal de luto pelos mortos.

Cavalheirescamente, os diretores da Mercedes caminham até os boxes da Jaguar e comunicam sua decisão, imaginando que os ingleses talvez quisessem fazer o mesmo. Ouvem como resposta que a equipe não considera Hawthorn responsável pelo acidente e que não tem a menor intenção de abandonar a prova.

Ainda na liderança, Moss estaciona nos boxes à 1h45 do domingo, deixando escapar uma vitória certa, tendo colocado três voltas de vantagem sobre o 2o colocado. Apesar de serem dois dos maiores pilotos de todos os tempos, Fangio e Moss nunca venceram em Le Mans. 55 foi certamente a maior oportunidade perdida por ambos.

Sem oposição, Hawthorn e seu companheiro de equipe, o novato Ivor Bueb, seguem tranquilos até a bandeirada.

Num encontro horas depois da corrida, Fangio diz a Macklin que, pelo bem do automobilismo, seria melhor que não se apontasse um culpado pelo acidente. Macklin concorda. Este era um ponto de vista comum à época, quando a morte na pista era uma constante (basta dizer que, naquele mesmo ano, o automobilismo já havia perdido um dos seus maiores pilotos, o italiano Alberto Ascari). A cada nova morte, ressurgiam as pressões contra as corridas. Melhor, portanto, não dar mais espaço para elas.

Dois dias mais tarde, Macklin diz à polícia que Hawthorn certamente “cometeu um erro” mas não o considerava responsável pelo acidente. Responsabilidade, se havia, era da alta velocidade dos carros.

A imprensa inglesa e a Jaguar, numa reação que vi repetida na morte de Ayrton Senna, inicialmente tangenciaram o assunto e depois negaram qualquer responsabilidade de Hawthorn, preferindo insinuar a culpa de Levegh, uma sugestão bastante conveniente, seja porque estava morto, seja porque pilotava um carro alemão.

Mais tarde, soube-se que, nos momentos seguintes ao acidentes, Hawthorn teve o que alguns descreveram como uma crise histérica, dizendo que tudo havia sido culpa sua e que ele nunca mais pilotaria. Uma das pessoas que ouviu isso foi Rob Walker, a quem Hawthorn explicou que manobrara daquele jeito porque queria parar nos boxes antes de ser ultrapassado por Fangio. Cercado por amigos e protegido da imprensa, Hawthorn se acalmou e voltou à pista. No pódio, comemorou a vitória tomando champagne, o que foi considerado um ato indigno pelos franceses.

Uma semana depois, Hawthorn e Fangio disputavam o GP da Holanda, pela Ferrari e Mercedes, respectivamente. Fangio venceu e Hawthorn, com problemas de câmbio, terminou em 7º.

Mas a tragédia de Le Mans teria desdobramentos mais sérios. Quatro GPs de Fórmula 1 foram cancelados, assim como várias outras provas, e a Suíça decidiu proibir corridas em seu território, decisão que vale até hoje.

Eduardo Correa

*Texto publicado originalmente em 5 e 7 de junho de 2006

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

13 Comments

  1. João disse:

    “reação que vi repetida na morte de Ayrton Senna”… vc diz da imprensa inglesa inocentar Williams-Head-Frank-Newey e tentar imputar ao piloto ou ao autódromo o problema?

    • Edu disse:

      Sim, João. Tenho lembranças mais nítidas de comentários nessa direção na revista Autosport e também em um jornal português especializado em F1, algo do tipo “não venham culpar o automobilismo; foi um acidente” etc.

      Abraços

      Edu

  2. Rafael Carvalho disse:

    Desde os primórdios, sempre quando há mortes no automobilismo os caras dão um jeito de esconder.

  3. Lucas dos Santos disse:

    Do texto: “Nesta manobra, ele ultrapassou o Austin-Healey do inglês Lance Macklin, já cinco voltas atrasado e que, vendo a aproximação dos líderes, levou seu carro prudentemente para a direita”.

    Seria por essa razão que, atualmente, tanto na WEC como nas 24 horas de Le Mans, os retardatários são orientados a não dar passagem aos líderes, deixando que estes encontrem por si só um lugar para passar?

    • Fernando Marques disse:

      Lucas,

      acho que neste acidente faltou espelho retrovisor … aliás acessório mais que dispensável naquela época …

      Fernando Marques

  4. Fernando Marques disse:

    Esta tragedia é prova mais que concreta de como era perigoso as corridas de automóveis naquela época. Não só para os pilotos, quanto para o publico presente.

    Fernando Marques

  5. Rodolfo César disse:

    Foi com essa tragédia da qual foi pivô que Hawthorn venceu em Le Mans e com um ato generoso de Moss que foi campeão na F1. Há marcas que borraram sua carreira, as quais de certo modo a resume.

  6. Robinson Araujo disse:

    Realmente o amadorismo prevalecia nos tempos românticos do esporte a motor. Este episódio fez a Mercedes se desligar do campeonato mundial de F1 por mais de cinco décadas até retornar e se tornar dominante novamente. Hawthorn sagraou-se campeão em 1958 pilotando uma ferrari e viria a falecer pouco tempo depois, sendo este o último título de um bólido com motor dianteiro.
    Agora imagine como deveriam ser os GPs do início do século!!! Pena termos tão poucas imagens e vídeos.
    Uma boa semana a todos amigos do GPto.

  7. wladimir duarte sales disse:

    Sobre a tragédia de Le Mans/55: Mesmo sofrendo com a culpa Hawthorn foi campeão de F1 três anos depois, inclusive testemunhando a morte de seus dois colegas de equipe (Luigi Musso e Peter Collins) na mesma temporada. Morreu num acidente banal de estrada e, não fosse isso, estava condenado a uma morte precoce antes dos 35 anos por conta de uma doença renal (é fato que o agravo de muitos males do corpo tem fundo emocional). Imagino que devia também estar magoado com “il commendattore” pelo descaso secular deste pelos pilotos e o maldito comportamento maléfico e doentio de semear a discórdia entre os mesmos. Mas e quanto a Monza/78, que nos privou de outras 3 ou 4 temporadas de performances inspiradas de Ronnie Peterson (que talvez fosse protagonista das primeiras vitórias dos modelos MP4 da McLaren ao lado de Niki Lauda)? Patrese cometeu dois erros: ser pego de surpresa pelo afunilamento da pista e ser tema das murmurações de James Hunt (que convenceu outros pilotos veteranos a fazer Patrese de bode expiatório). Mesmo inocentado e com a consciência limpa nunca mais foi competitivo como naquele ano de 1978 e foi preterido pela Ferrari até o fim da carreira. Alguém saberia dizer se Patrese em algum momento foi reclamar ou brigar com algum dos seus acusadores, especialmente Hunt? Pois, pelo que sei, o único que se retratou com o italiano foi Jody Scheckter que percebeu que o erro foi do diretor de prova que ficou confuso e apavorado com um novo sistema de largada (semáforo) e autorizou a saída com metade do grid em movimento. Respondam rápido, por favor, antes que publiquem nova coluna.

  8. wladimir duarte sales disse:

    Bom dia a todos!
    Fernando, não sei se você percebeu. O conceito da Ferrari parece ser uma releitura do carro-asa. Notei isso comparando-o com fotos do Lotus 79, Williams fw07 e Renault re10 (especialmente os detalhes do aerofólio traseiro). A maior inovação é tornar aerofólios e chassi um conjunto inteiriço e deixar os pneus semicobertos para evitar entrelace com os de outros carros. Espero que os dirigentes cabeças-duras sejam mais flexíveis e permitam alterações menos tímidas e mais espetaculares como essa.

  9. Mauro Santana disse:

    Pois é, foi uma Tragédia Terrível.

    Certa vez, li um texto de um jornalista(cujo nome não me recordo) que estava neste dia em Le Mans.

    Ele contou que a sala de impressa ficava localizada nas tribunas que ficavam de frente aos pit, e que o acesso aos pits/tribunas se dava por meio de um túnel que passava por de baixo da pista.

    Numa dessas travessias, ele estava bem no túnel quando ocorreu o acidente, e o barulho foi tão intenso que ele achou que era uma bomba que havia explodido na pista, visto que a segunda guerra ainda era algo fresco nos sentimentos das pessoas naquela época, e quando ele chegou nas tribunas viu aquela cena terrível, a maior carnificina já vista numa pista de corridas.

    Até hoje eu lembro mais do Hawthorn por ter causado este desastre em Le Mans, do que por ter sido campeão na F1.

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  10. Fernando Marques disse:

    Que tal o Fomula 1 conceito da Ferrari?
    Muito mais bonito que os carro atuais

    http://globoesporte.globo.com/motor/formula-1/noticia/2015/02/ferrari-apresenta-conceito-de-carro-com-visual-futurista-para-formula-1.html

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Lucas dos Santos disse:

      Achei o visual “carregado” demais – como em todos os carros-conceito com apelo “futurista”. Seria algo para se acostumar com o tempo…

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *