O preço da Segurança

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Minha mãe, do alto de sua sabedoria maternal, costuma dizer que para tudo na vida há que se pagar um preço – inclusive, para se fazer o bem.

Minha mãe, do alto de sua sabedoria maternal, costuma dizer que para tudo na vida há que se pagar um preço – inclusive, para se fazer o bem. Sinto-me inclinado a concordar com ela quando olho para tudo que envolveu a revolução da segurança no esporte a motor e, em meio aos infinitos benefícios, consigo identificar algumas perdas necessárias, ainda que doídas.

Este é um assunto minado, e por isso faço questão de me posicionar, antes de prosseguir. Os que me conhecem há mais tempo sabem que sou irrestritamente favorável à segurança nas pistas e no trânsito. Perdi um tio num acidente besta, há anos mantenho coluna na revista Êxito Rio a respeito de direção defensiva e manutenção preventiva, e poucos meses atrás manifestei toda minha indignação após as mortes consecutivas de Dan Wheldon e Marco Simoncelli num texto escrito no calor da emoção. Sinto-me, portanto, seguro o bastante para poder analisar o preço que se paga por este benefício.

De imediato, o advento da segurança exerceu impacto decisivo sobre a dinâmica do mercado de pilotos, tornando-o muito menos flexível. A “expectativa de carreira”, se é que podemos chamar assim, tornou-se muito mais desigual e concentrada do que antigamente. Quatro décadas atrás, por exemplo, eram raras as carreiras que superavam a marca de 10 anos na F-1, por diversas razões ligadas direta ou indiretamente à segurança. Primeiro, obviamente, era grande a chance do piloto ter a trajetória interrompida momentânea ou definitivamente por conta de uma batida mais forte. Paralelamente, a rotina constante de viagens representava risco muito maior que na atualidade, não tendo sido poucos os pilotos mortos em acidentes aéreos ou rodoviários entre uma e outra prova. E por fim, mesmo para quem eventualmente sobrevivia a tudo isto, a pressão de sustentar tamanha intimidade com a morte acabava, muitas vezes, murchando o interesse pela competição, e levando a aposentadorias prematuras. Era difícil encontrar razões ano após ano para justificar tamanho risco, tanto mais quando no íntimo crescia a sensação de estar abusando da sorte.

Por outro lado, o menor tempo de estadia por parte dos principais talentos acabava abrindo vagas para que pilotos menos atraentes pudessem também desenvolver suas carreiras no topo do esporte, ao longo de um punhado razoável de anos. Pilotos de reposição eram necessários, e efetivamente utilizados com grande frequência. A rigor, diversos campeões mundiais tiveram seus caminhos acelerados por conta de acidentes em suas órbitas, e Emerson Fittipaldi é um bom exemplo deste tipo de situação.

E mesmo para aqueles que conseguiam se aposentar, muitas vezes ainda restava o último suplício de uma condenação íntima, pelo fato de terem sobrevivido, enquanto tantos amigos tinham ficado pelo caminho. Trauma de guerra mesmo. Atualmente, no entanto, não existem muitas razões pelas quais um piloto queira se ver livre da F1. Os carros são os mais rápidos e seguros, o dinheiro sempre chega por uma via ou por outra, a exposição não encontra paralelo e, para quem curte um pouco de boemia, as oportunidades continuam lá. Por isso mesmo, a relação entre pilotos e equipes sofreu uma mudança em seu eixo, e atualmente o interesse parece ser maior por parte de quem guia. É uma questão de oferta e procura, e os retornos de gente como Räikkönen e Schumacher comprovam a tese. Hoje em dia, mesmo times pequenos se dão o direito de selecionar pilotos, muitas das vezes exigindo experiência, rapidez, e patrocínios!

Tal cenário não apenas contribuiu para a composição de um dos grids mais fortes de todos os tempos, como também gerou o efeito colateral de uma lista de desempregados igualmente forte. Nomes como Barrichello, Lucas di Grassi e Adrian Sutil ficam à espera de cadeiras vagas, como antes ficaram Grosjeans, Hulkenbergs, Villeneuves e Cia. Tudo isso sem mencionar Petrov, Heidfeld, Alguersuari, Buemi…

Na prática, passa a existir quase que um monopólio das melhores vagas, entre os pilotos mais atraentes esportiva e/ou comercialmente. Entre para este seleto grupo, e sua carreira poderá durar (e prosperar) enquanto seu nome estiver na lista. Caia para o segundo grupo, e trate de proteger o pescoço, pois a briga de foice jamais esteve tão quente.

É, portanto, uma situação antagônica. De um lado, permanecer na categoria nunca foi tão difícil. De outro, nunca foi possível permanecer na F1 por tanto tempo. No que parece ser uma ironia, o mesmo contexto que acabou propiciando a plataforma para que Rubinho ficasse por 19 anos na F1, mostrou-se decisivo para que ele não mais encontrasse lugar, apesar da competência, da vontade e dos investidores que angariou.

Pilotos de ambos os grupos, no entanto, compartilharam do mesmo “prejuízo” quando o aumento da segurança roubou-lhes parte daquela aura meio James Dean, que tanto fascinava o público em geral (e as moças, em particular). Rebeldes sem causa, jovens que arriscavam a vida (e que vida) em nome de uma atração quase karmática à autodestruição. Pilotos que se permitiam fumar, beber, usar drogas e varar noites em festas das mais variadas conotações, pelo simples fato de que a própria profissão que exerciam era, sozinha, mais perigosa do que todos estes fatores somados. Até porque, naquela altura, sexo era algo razoavelmente seguro.

E se a vida podia ir embora num estalo, então não fazia muito sentido ficar fazendo planos para o futuro, ou para uma vida de aposentado. Imagine a filosofia Carpe Diem traduzida para um talibã, com muito dinheiro no bolso. A vida de alguém como James Hunt foi mais ou menos isso…

Claro que o fator risco foi uma mola a impulsionar os ganhos financeiros dos pilotos, antes da cobertura midiática como a conhecemos hoje. Da mesma forma, havia entre os chefes de equipe uma crença nem sempre declarada de que os melhores pilotos eram aqueles que não haviam constituído família, pois estes tinham menos a perder na hora de calcular os riscos a cada nova freada.

Toda uma forma de pensar o piloto de corridas que, se não desapareceu por completo, ao menos modificou-se bastante em função dos avanços em segurança.

 

A maior das perdas, no entanto, recaiu provavelmente sobre as pistas (não) utilizadas mundo afora. Templos como Nürburgring, Spa, Clermont Ferrand, Zeltweg, Hockenheim, Monza, Interlagos e tantos outros viram-se abandonados, mutilados ou “domesticados” em nome dos riscos que ofereciam, e das dificuldades geradas para a necessária transmissão televisiva.

Quanto às tevês, hoje em dia já seria possível transmitir corridas até mesmo em Nürburgring (Nordschleife), sem a ampla utilização de tomadas aéreas, como antigamente. Já no que toca a segurança, o buraco é um tanto mais embaixo. Apesar de vermos que é possível espalhar unidades de atendimento através dos 13 km de Le Mans, o caso com o inferno verde seria um bocado mais complicado por conta do enorme diâmetro do traçado, e da ausência de pistas internas de apoio. Ainda que os patamares de segurança possíveis sejam muito maiores do que aqueles disponíveis em pistas consideradas seguras nos anos 70, tais níveis já não seriam toleráveis nos dias de hoje.

Ainda assim é uma pena que certas pistas menos radicais tenham sido mutiladas, quando poderiam ter apenas adotado traçados alternativos. Atualmente seria perfeitamente possível correr na Interlagos antiga, ou na maravilhosa Österreichring dos anos 70, caso tais traçados tivessem sido preservados. Felizmente as curvas inclinadas de Monza continuam lá, à espera de algum visionário e um bom punhado de euros.

Por fim, a proliferação dos chamados “Tikódromos”, com suas fartas zonas de escape asfaltadas, terminou por nivelar por baixo a própria definição de pilotagem. Se antes havia o radicalismo extremo de colocar a própria vida – e eventualmente o futuro dos filhos – em jogo no momento de julgar a velocidade a cada curva, hoje o prejuízo já nem mesmo se traduz num eventual abandono de corrida, ou numa visita aos boxes. Na maioria das vezes, o pior que poderá acontecer será perder um punhado de segundos, e uma ou duas posições, antes de retornar à pista e seguir como se nada tivesse acontecido.

Esse tipo de contexto obviamente favorece pilotos de julgamento menos preciso, e termina por reduzir a diferença entre gênios e bons pilotos.

 

Como se vê, até mesmo para a obtenção de algo excelente como a segurança nas pistas, diversos sacrifícios esportivos tiveram que ser feitos. Inúmeros bons pilotos tiveram suas chances comprometidas na F1, e muitas vezes as disputas não foram tão excitantes ou espetaculares quanto poderiam ou deveriam ter sido.

Ainda assim, a luta pela segurança continua a ser o melhor “negócio” já feito pelos dirigentes automobilísticos em todos os tempos. Oxalá tivéssemos pago este preço muito antes, e pudéssemos hoje topar com figuras como Clark, Rindt, Cevert, Pryce, Williamson, Peterson, Depailler, Gilles ou Senna nos festivais de históricos mundo afora.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

10 Comments

  1. Italo Rocha disse:

    Acompanho sempre as colunas no site, e quando o assunto envolvendo segurança é discutido, minha atenção e interesse em questão dobra. Esse texto traduz tudo o que perdemos com a segurança e o que ganhamos. Infelizmente perde-se a emoção aquele brilho de competitividade mas os principais donos do espetáculo não ficam a mercê de correr pensando se vão voltar a ver as famílias ja que a segurança atual dos circuitos e dos carros lhes dão respaldo pra se sentirem mais a vontade do que em tempos de outrora. Ótimo texto!

  2. Annibal Affonso disse:

    tema muito interessante Marcio !!!
    para não me alongar muito, citarei apenas a questao da desfiguração ou o abandono dos circuitos historicos pela F1 em particular
    Acredito que seja possivel realizar corridas nestes traçados sem mutila-los, Interlagos é um bom exemplo, houve um projeto que o preservava das modificações que foram impostas. Prevaleceu o pensamento reinante no país – o interesse pela novidade.
    Caso semelhante está ocorrendo com o maracanã.
    Tempos atras fiquei imaginando a questão nos EUA, apesar das tragedias, optaram pela manutenção dos ovais. Acredito que seja inconcebivel uma 500 milhas em fora do lendario travado – preservaram a alma da prova

  3. Allan disse:

    Realmente as pistas foram as maiores vítimas. Apenas a atualização e maior área de escape seriam suficientes em algumas, mas veja Ímola, que atrás da Tamburello passava um rio (como Berger falou em um documentário sobre Senna), então não tinha o que fazer ali (mas quando fizeram, fizeram errado – sempre achei que faixas mistas de asfalto e brita são melhores do que só asfalto, por exemplo).

    Mas os carros – tema não abordado nesta coluna – também sofreram. Os bicos foram demasiadamente alongados para proteger as pernas dos pilotos (na verdade, a integridade física inteira, vide Paletti cuja barra de direção ficou enterrada no seu peito, sendo esta sua causa mortis). Os carros ficaram horríveis, parecendo ter motores dianteiros em linha, extremamente esquizofrênicos. Tenho mais de 100 miniaturas de F1 na escala 1/43, e não consigo olhar para as pós-94 com a mesma admiração daquelas de 70 a 93 – especialmente as do início da década de 80, com bico extremamente curto, sem asas dianteiras, aerofólio pequeno e destacado, traseira alongada, larguíssimas bitolas, rodas dianteiras menores que as traseiras… Ou mesmo o que veio imediatamente depois, os carros-flecha turbinados, mais curtos, sem extensões laterais, aerofólios enormes, etc.

    • Concordo contigo, Allan. As áreas e escape asfaltadas são as mais eficientes quando o carro se encontra em perfeitas condições, pois a aderência dos pneus dá conta de reduzir a velocidde sem traumas e em pouco espaço. No entanto, no caso de pneus furados, suspensões quebradas ou falha nos freios, a brita continua sendo muito mais eficiente.
      Quanto aos carros, certamente a beleza deles foi afetada negativamente pelos requisitos de segurança. No entanto, essa culpa deve ser dividida com as experiências aerodinâmicas, e com o regulamento restritivo que reduz as áreas nas quais ainda é posível obter diferenciais de desempenho.
      Abraço!

  4. Muito legal o texto… Não me recordo se foi de Dennis Hulme ou Bruce McLaren a frase: É melhor ter uma pista mais segura e menos excitante, do que ir a um enterro de um amigo na terça-feira…

  5. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    O Jackie Stewart, Emerson Fittipaldi e o Niki Lauda nos anos 70 certamente foram os precursores pela segurança na Formula 1.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  6. Lucas R disse:

    Belíssimo texto do Márcio Madeira (faltou assinar a coluna).

    A segurança que se vê em um esporte tão perigoso como o automobilismo é quase inacreditável. A evolução foi muito grande e os resultados idem, ainda que tenha custado muitas perdas.

    E, se não estou enganado, fora Jackie Stewart o grande precursor disso lá pelos anos 70.

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