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Outubro mal começou, mas já parece seguro afirmar que o espetacular título de Marc Márquez na MotoGP será a grande história, o grande feito do esporte a motor em 2025. E, verdade seja dita, não faltam justificativas para isso.

Olhando meramente pelo aspecto esportivo – e, dadas as circunstâncias, ele é certamente o menos relevante aqui – já seria possível elencá-lo entre os maiores da carreira de Márquez, por uma série de fatores. O fato de ter sido obtido por uma marca diferente, após os anos de hegemonia na Honda, e de ter sido conquistado de maneira tão dominante já na primeira oportunidade, ante a concorrência de um companheiro de equipe que já havia vencido dois campeonatos pela mesma Ducati, só não basta para encerrar o debate pelo fato de que em seus anos de Honda houve momentos nos quais Marc enfrentou concorrência decididamente mais forte, sobretudo em termos de material humano. Por outro lado, independentemente da concorrência que derrotou nesta triunfante temporada de 2025, resta sempre uma pergunta no horizonte, que em última análise deveria fornecer a referência final a respeito de desempenhos assim, tão descolados dos adversários mais próximos: teria sido possível fazer mais do que ele fez?

Em termos de erros, sim, haveria algum espaço para melhorar pontualmente, em especial quando olhamos para o evitável tombo que lhe custou a vitória em Austin. Quanto ao desempenho entregue, no entanto, é muito difícil encontrar qualquer coisa que o eneacampeão pudesse ter feito melhor do que fez. Se no fim não teve adversários à altura, isso não muda o fato de que ele operou no limite e entregou o máximo que poderia entregar, não deixando dúvidas de que, após tudo que passou nos últimos anos, sua motivação era essencialmente pessoal, responder para si mesmo se ainda seria capaz, se ainda seria competitivo o suficiente, se ainda poderia vencer.

Como dissemos, contudo, o aspecto esportivo – por mais contundente que esteja sendo – acaba ficando em segundo plano diante da grandiosidade da jornada humana que o título coroou. Guiando pela Honda, Marc sagrou-se campeão em seis das primeiras sete temporadas que fez na MotoGP, formando um conjunto praticamente imbatível, derrotado apenas no polêmico e controverso ano de 2015, de ecos ainda bastante perceptíveis tanto nas arquibancadas quanto nas redes sociais.

Olhando em retrospectiva, e lançando mão da confortável e fácil análise filosófica de quem está protegido no sofá e diante da tevê, alguém poderia sugerir que o peso da invencibilidade tenha derrubado Márquez. E talvez esse não seja um ponto tão distante assim da realidade, no frigir dos ovos. Afinal, aos resultados espetaculares somavam-se, a cada fim de semana de competição, uma série de “salvadas” quase milagrosas e de tombos plasticamente assustadores, quase sempre sem maiores consequências. A bravura do piloto era tão evidente quanto sua autoconfiança, mas por vezes também parecia haver algo a mais e um tanto perturbador ali, uma pitada pouco evidente de desrespeito pelo perigo, talvez inevitável após ter se safado de tantas quedas, ter se habituado a conviver com certas dores, ou depois de ter visto ele próprio e tantos companheiros de volta ao guidão em tempos inacreditavelmente curtos após sofrerem fraturas ou lesões de considerável gravidade. Aos olhos desse tipo mais filosófico de observador, restava a sensação de que Márquez pudesse estar esticando os limites, quase que os testando, ainda que o fizesse de maneira certamente inconsciente e involuntária. Era sua natureza, afinal. E vinha dando mais do que certo.

Mais uma vez, parece fácil dizer agora que o que se passou em Jerez, 2020, talvez tenha até demorado a acontecer, diante do nível e da constância dos riscos que vinham sendo assumidos, mas isso seria ir longe demais. Havia, é claro, possibilidades de que pudesse acontecer a qualquer hora, e também de que tudo continuasse a dar certo, e talvez ele pudesse concluir a própria carreira livre de maiores dramas, com números certamente inigualáveis, ao menos na categoria rainha.

Ocorre, no entanto, que números e estatísticas correm o risco de se tornarem redundantes quando refletem pouco mais do que a longevidade de um período dominador, sob circunstâncias favoráveis e em grande medida imutáveis. Os quatro títulos de Verstappen ou Vettel, ou os últimos quatro de Hamilton, por exemplo, foram obtidos em sequência, como reflexo de um período hegemônico duradouro. E, por melhores que tenham sido, guardam profundas diferenças em relação aos três títulos de um Nelson Piquet, que precisaram ser construídos um a um, em contextos absolutamente diversos. Valentino Rossi e Emerson Fittipaldi são bons exemplos acerca desta compreensão, tendo sido pilotos que nas fases mais vitoriosas de suas respectivas carreiras tiveram a grandeza de abrir mão de máquinas e estruturas competitivas em favor de desafios que certamente renderiam menos números e estatísticas, mas aumentariam o valor de cada conquista. Qualquer comparação numérica, portanto, que não leve em conta tais contextos, jamais poderá reivindicar qualquer valor informativo minimamente justo.

No caso de Márquez, tal mudança contextual não se deu por iniciativa própria, ao menos no primeiro momento, mas por força das circunstâncias. Na prova inaugural da temporada 2020, longamente adiada em razão da pandemia de Covid-19, o espanhol atrasou-se ainda nas primeiras voltas em razão de um tombo, para a seguir protagonizar mais uma de suas espetaculares corridas de recuperação. Ele já ocupava a terceira posição a poucas voltas do fim quando finalmente sofreu o tombo que mudaria sua história. Atingido pela roda dianteira sofreu uma fratura no úmero, mas na semana seguinte, após ser operado, já estava de volta à moto, naquele que considera o único arrependimento de toda a sua carreira. Habituado a vencer sob circunstâncias extremas, e tomando a conquista do título mundial quase como uma obrigação renovada ano após ano, Marc assumiu o risco de pilotar ainda no início do processo de recuperação, sofreu uma ruptura na placa que segurava o úmero fraturado, e mergulhou num período de imenso sofrimento e de muitas frustrações, durante o qual contabilizou nada menos do que 108 quedas.

Dali até o fim de 2023 seu número de vitórias seria igual ao de cirurgias: três. A aposentadoria chegou a ser seriamente considerada em diversos momentos nesse período, que incluiu alguns episódios de diplopia, mas uma dúvida persistia em sua mente, uma daquelas com as quais alguém competitivo como ele, um “animal de pista” na melhor acepção do termo, simplesmente não suportaria conviver pelo resto da vida, por melhores que fossem as condições que o aguardassem tão logo pendurasse o capacete: “será que eu ainda sou o melhor? Ainda sou capaz de vencer?”

O fato de ter um irmão pilotando para a Ducati certamente o ajudou a equacionar prós e contras e a tomar a medida drástica de abandonar um contrato com a HRC que lhe renderia mais de 20 milhões de euros anualmente em troca de assumir um lugar numa equipe satélite, pequena e sem salário, sem qualquer garantia de que isso lhe valeria uma vaga na equipe de fábrica, ou ao menos uma moto atualizada no futuro próximo.

E aqui é preciso falar sobre a Ducati, mais precisamente na pessoa de Luigi “Gigi” Dall’Igna, que em dado momento no decorrer de 2024 se viu diante de uma escolha de Sofia: promover à equipe principal o talentoso Jorge Martin, que terminaria por conquistar o título de pilotos no ano passado, abrindo mão do marketing e do brilhantismo de Marc Márquez em favor da segurança de poder contar com um piloto campeão por muitos anos; ou promover Marc Márquez, àquela altura já com 32 anos, sem saber exatamente o quão recuperado poderia estar, mas ciente de que tal opção quase que certamente jogaria Martin ao colo de alguma equipe rival?

Dall’Igna, todos sabemos, optou por Márquez, e não foram poucos os que o criticaram ou questionaram em razão disso. Um ano depois, todavia, nem mesmo o mais otimista dos fãs de Márquez poderia imaginar que a aposta pagaria tantos dividendos. Ao chegar a Motegi, Márquez havia vencido nada menos que 11 das 16 corridas disputadas (sete delas de forma consecutiva, entre Aragón e a Hungria), e 14 das 16 sprints. Martín, por outro lado, no momento em que estas linhas estão sendo escritas já coleciona 18 fraturas desde que se mudou para a Aprilia, tendo disputado apenas seis provas ao longo do ano.

A combinação entre a longa e dolorosa jornada de superação, a disposição para trocar a Honda por uma equipe satélite, e o massacre imposto aos adversários nesta temporada de 2025 é naturalmente muito poderosa, daquelas que dão a certeza imediata quanto a estar testemunhando a história sendo escrita.

No entanto, momentos tão carregados de simbolismos e significados costumam também representar um desafio a analistas, tanto mais em tempos tão propensos a premiar manchetes chamativas. Convém lembrar que o campeonato mundial existe desde 1949, e que a história do motociclismo de velocidade é muito rica e especialmente pródiga em casos de sofrimento, bravura e superação. O atual feito de Márquez certamente se assegura na mais alta prateleira das voltas por cima no esporte a motor, e deve ser celebrado de maneira condizente, com os louros que fez por merecer. Mas não está sozinho no panteão de feitos heroicos. Não devemos, jamais, esquecer das grandes histórias de superação do passado, como por exemplo a de Mick Doohan, que chegou a enfrentar um caso de gangrena e iminente amputação de uma das pernas antes de conquistar seus cinco títulos mundiais, para citar apenas um exemplo.

Por fim, cabe observar que Márquez não obliterou sua concorrência de maneira tão arrasadora como reflexo de sua velocidade superior, mas especialmente de sua janela mais ampla de desempenho. Parece importante registrar que a evolução da Ducati para 2025 tornou a moto menos amigável, restringindo a confiança da maior parte dos pilotos quanto aos limites de seu desempenho. A forma como Pecco Bagnaia voltou a performar no Japão a partir do momento em que lhe entregaram uma moto híbrida, com vários componentes retirados da moto 2024 de Morbidelli, não deixa dúvidas de que o italiano poderia ter sido muito mais rápido e forte se acaso estivesse em harmonia com seu equipamento, como esteve em anos anteriores. Assim, se a moto de 2026 seguir rota semelhante à de 2024, é de se esperar uma disputa muito mais próxima nos domínios de Borgo Panigale, ainda que, óbvio, Márquez continue a ser o favorito à conquista do emblemático décimo título mundial.

De todo modo, tal observação em nada diminui os méritos do campeão mundial. Ao contrário, antes ela chama atenção para o fato de que uma história tão grandiosa só foi escrita graças à combinação entre um talento arrasador que lhe permite ser rápido onde outros não sentem confiança, e uma força de vontade inquebrantável, maior e mais forte do que qualquer obstáculo que a vida foi capaz de apresentar.

A história do esporte a motor se fez maior graças ao retorno triunfante de Márquez, oferecendo o melhor e mais nítido contraponto possível às recentes declarações de Lando Norris, quando afirmou que a conquista do título mundial não é sua maior prioridade.

Obrigado por ser tão diferente disso, Marc Márquez.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

3 Comments

  1. CARLOS disse:

    Grande texto! Marcio quando sai o livro sobre o Moreno? qual editora?

  2. Rubergil Jr disse:

    Belíssimo texto e reflexão!

  3. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    O que posso querer ou tentar falar mais alguma coisa sobre Marc Márquez depois de me deleitar com a sua coluna.?

    Apenas aqui registrar que a mesma emoção que senti lendo a sua coluna ,foi a mesma pela forma como foi festejado a conquista dele logo após o término da corrida em Montegi

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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