Segundo piloto natural

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ou “Reavaliando Gerhard Berger”

A sina de Valtteri Bottas já toma ares cômicos: eventual autor de pole-positions ou de voltas mais rápidas na corrida, o finlandês sabe que a vitória é improvável nas condições normais de temperatura e pressão – ainda mais com pitstops milagrosos. O título, uma quase impossibilidade: só não se pode dizer impossível porque pode ser que Hamilton quebre o pé jogando futebol com os amigos ou que participe de uma passeata e sofra algum tipo de fratura ao correr em meio à multidão quando a polícia jogasse bomba de gás lacrimogênio.

Não poucas vezes, Bottas é chamado, de maneira pejorativa, de “Novo Barrichello”. O curioso, nesse caso, é que a alcunha pode ser tomada como elogio — afinal, ninguém o comparou a Irvine, Massa ou Coulthard, pilotos que foram servis de verdade, mesmo que com seus brilhos pontuais (os três contabilizam vice-campeonatos!). Lembrar de Barrichello, para mim, deveria ser uma forma de dizer “você tem o melhor carro, você tem capacidades para vencer, mas do outro lado, com equipamento igual, está alguém consideravelmente superior”.

Em comum entre Bottas e Barrichello o fato de ambos terem demorado a aceitar (ou mesmo não aceitado, de fato) essa condição de “segundo piloto natural” – Schumacher era e Hamilton é muito superior, punto y basta! Parece rondar a cabeça de ambos uma falsa ilusão de possibilidade de triunfo no médio-longo prazo, uma certeza de que, quebradas certas barreiras e escancaradas certas adversidades, a distância irá diminuir a ponto de se tornar um simples passo à frente.

Em recente entrevista, via podcast, Barrichello voltou a falar dos assuntos e, embora nada de novo, falou algumas coisas sobre sua relação com Schumacher. E insistiu, novamente, que não havia no seu contrato que fosse segundo piloto.

Já escrevi extensa coluna, anos atrás, falando a respeito da temporada de 2002, ano no qual Barrichello melhor andou na Fórmula 1, quando mais chegou perto do que seria “incomodar” Schumacher (ainda que a tabela final de pontos possa enganar), não à toa foram necessárias algumas interferências da equipe, além de azares diversos.

Bottas nunca chegou perto disso: é verdade que, depois de um 2018 constrangedor, ele venceu 4 GPs em 2019 (e chegou a liderar, em algumas etapas do início – coisa que Barrichello nunca fez), mas não se comparam ritmo de prova e influência no acerto do carro. Além disso, as vezes em que Rubens e Michael “disputaram” em 2002 foram em maior número do que Valtteri e Lewis fizeram, dois anos atrás.

Ainda, a favor de Rubinho o destaque para boas temporadas em 2003 e 2004, quando novamente teve grandes momentos vistosos, mas nunca de forma consistente. Já Bottas, parece ter se tornado uma sombra de si mesmo depois de 2019.

Uma diferença importante entre Schumacher (e Barrichello) e Hamilton (e Bottas) é que o alemão não se importava muito com as críticas sobre seus privilégios, nem fazia questão de valorizar Rubens publicamente no sentido de dar mais lastro às suas conquistas/virtudes: Lewis, por outro lado, vive exaltando Bottas, seja pra dizer que “ele não facilita nada pra mim” ou para “elogiar” (?) seu lado mental .

No comparativo com Schumacher, Hamilton leva vantagem nas suas dificuldades: enquanto o inglês, em sua primeira metade de jornada, lidou com Alonso e Button, o alemão foi um verdadeiro diretor de RH após a aposentadoria de Piquet: Brundle, Patrese de saída, Verstappen pai, JJ Lehto e Johnny Herbert. Há também o denominador comum, Nico Rosberg, que bateu a ambos com mais ou menos intensidade, ponderando-se as fases da carreira de cada um, obviamente.

Na soma, resulta que Schumacher e Hamilton tiveram vidas muito parecidas para empilharem seus recordes: com dois segundos pilotos bons, mas sem a capacidade de se firmar no topo, além do trabalho logístico e de desenvolvimento todos voltados para si.

Além de Barrichello e Bottas, vou lembrar aqui outro caso clássico de piloto que ficou à sombra de seu companheiro de equipe (como os parceiros de Rubens e Valtteri, integrante do grupo de melhores da história), que também tem um sobrenome iniciado pela letra B e que terminou com feitos semelhantes aos dos mencionados: Gerhard Berger.

Antes de partir para o mote principal desta coluna, vale lembrar alguns feito importantes da trajetória de Berger, para colocá-lo em perspectiva.

Berger terminou sua carreira com os seguintes números: 210 GPs, 10 vitórias, 12 poles, 48 pódios e 21 voltas mais rápidas em corrida. Nenhum vice, mas duas terceiras colocações no quadro geral de pilotos (1988 e 94). Uma carreira sólida, com números totais bastante parecidos aos de Barrichello e Bottas – e também aos de Massa e Coulthard.

No entanto, olhando-se para a concorrência do austríaco — e aqui não se trata de exaltar as gerações passadas em detrimento das recentes –, percebe-se que foram mais dificuldades, em disputas mais ferozes. Talvez apenas na temporada de 1990 possa-se dizer que Berger dispôs do melhor equipamento (e ainda assim uma superioridade muito dividida com a Ferrari), o que nos leva a dar ainda mais crédito ao piloto numa análise cuidadosa.

Berger venceu com 4 motores diferentes: BMW, Ferrari, Honda e Renault. Recorde na F1, ao lado de Fangio, Moss, Lauda e Prost. Esses 4 motores eram parte de três equipes distintas, Benetton, Ferrari e McLaren. Somente 4 pilotos (Moss, em 5, Fangio, Stewart e Prost, com 4) na história venceram a bordo de mais times.

Mais? Entre a primeira vitória de Berger (no México, em 1986) e sua última (Alemanha, 1997) há uma distância de quase 11 anos – 10 anos, 9 meses e 15 dias, para ser exato -, o que representa a oitava melhor marca da história da F1 (Kimi, Schumacher, Hamilton, Prost, Piquet, Lauda e Vettel são os 7 primeiros). Por fim, Berger venceu pelo menos uma corrida em 8 temporadas distintas (1986, 87, 88, 89, 91, 92, 94 e 97), feito somente superado pelos seguintes cidadãos: Schumacher, Hamilton, Prost, Piquet, Vettel, Senna, Alonso e Kimi.

[Para quem lembrar que a vitória de 1991 foi no Japão, num jogo de equipe, basta mencionar o GP de San Marino, no mesmo ano, quando Senna tinha problemas e foi solicitado a Berger que não o ultrapassasse. E teve Canadá-90, quando Berger ganhou mas não venceu.]

Em suma, os feitos de Berger supramencionados são, invariavelmente, somente superados pelos melhores e maiores de todos os tempos. Tudo isso, repito, com uma concorrência absurda (no primeiro terço enfrentando Piquet, Senna, Prost, Mansell, depois Senna, Mansell, Prost e Schumacher e, por fim, Schumacher, Hill e Villeneuve, sem contar os Alboretos, Patreses e Alesis), com recursos muito distintos — a Benetton com o motor “mais potente de todos“, em 1986, e aquela com bico tubarão e Renault cliente, em 1997, eram universos separados — e raramente dispondo de equipamento de ponta.

Não quero, óbvio, tratar Berger como um “Fangio sem grife”, mas percebo que ele é o menos respeitado desses segundos pilotos – e pode ter sido o melhor deles (eu só o colocaria abaixo de Barrichello, provavelmente).

Já assistiram ao filme “Bastardos Inglórios”? Se sim ou se não vale (re)ver.

A cena inicial da película me remete muito à história de Gerhard Berger. Sem spoilers, Pierre LaPadite é o dono de uma chácara onde acolheu judeus, fugidos do terror nazista. Certo dia, ele recebe a visita de Hans Landa, coronel do exército alemão que ficara famoso na região pela alcunha de “Caçador de Judeus”.

Ao entender de quem se tratava, LaPadite procura conduzir a conversa com extrema frieza, acreditando que não seria algo tão difícil quanto se imaginava, principalmente ao notar a cordialidade de Landa e seu aparente despojamento – recusou vinho e pediu leite.

Sem mais delongas, cito “Na reta de chegada”, excepcional livro de Gerhard Berger – para mim, leitura obrigatória a qualquer fã de F1, junto ao livro do Edu, alguns de Cristopher Hilton, Tom Rubython e outros.

Eu era ingênuo, descuidado e estava feliz quando me tornei colega de Senna. As boas vibrações que sentíamos um do outro só facilitaram as coisas pra mim. Nossos apartamentos em Monte Carlo ficavam próximos – eu e ele costumávamos sentar em seu terraço e falar sobre dinheiro, na realidade com um frequência surpreendente. Na época eu ganhava quase o mesmo que ele, o que me dava tranquilidade. Nossa primeira corrida na mesma equipe foi em Phoenix; eu consegui a pole e me senti o máximo. A corrida em si foi totalmente diferente. (…) Senna em cima de mim e a sensação de que eu tinha de segurá-lo. Assim, guiei no limite, desgarrei e acabei numa barreira de pneus. (…) Ele pôs uma pressão mortal sobre mim no momento certo, uma pressão que nem ele conseguiria aguentar por muito tempo. (…) Naquele momento tomei tudo como uma derrota pessoal e, pela primeira vez, concedi a Senna o status que o mundo do automobilismo já lhe tinha dado. (BERGER, Gerhard. “Na Reta de Chegada”. Ed. Globo. 1999)

Berger é LaPadite, Senna é Landa.

Bottas – como acontecia com Barrichello – tem enfrentado, além do Hans Landa atual, a constante especulação de sua saída da Mercedes e substituição por jovens e promissores talentos. Berger pouco enfrentou isso, em 1993 retornando para a Ferrari, onde se sentia em casa e era amado. Mas de onde seria escorraçado novamente, ao final de 1995, quando Schumacher chegou com o pacote completo – o que incluía um segundo piloto de facto, do tipo subserviente e nada desafiador.

A chave foi aceitar que não podia enfrentar Senna de igual pra igual, e buscar extrair o máximo possível das oportunidades que se lhe surgissem. Terminou 1992 vencendo o GP da Austrália e com um ponto a menos do que Ayrton — a 7 do vice.

Se conselho fosse bom seria vendido, como diz o ditado. Mas este seria meu conselho a Valtteri Bottas: “Leia Na Reta de Chegada. Sua vida, nas pistas e fora dela, será mais fácil“.

Abraços,
Marcel Pilatti

***

Conheça mais sobre a história de Berger em “Os Austríacos“, de Lucas Giavoni.

Marcel Pilatti
Marcel Pilatti
Chegou a cursar jornalismo, mas é formado em Letras. Sua primeira lembrança na F1 é o GP do Japão de 1990.

5 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Marcel,

    fantástica a sua coluna … excelente o tema … mas vou fazer uma resenha …

    1) Não sei quem foi que disse isso, mas já li que piloto vence corridas na Formula 1 é por que ele é muito bom … mas para ser campeão tem que ter um algo a mais … acho que Berger, Barrichello, Couthard, Ervine, Bottas não tiveram ou possuem esse algo a mais … não incluo o Felipe Massa nesse caso pois ele não foi campeão em 2008 por causa da Ferrari … aquele motor estourado na Hungria … aquele pit stop em Cingapura … Massa não teve culpa nestes episódios … ao contrario o titulo de 2008 seria dele … ele foi superior ao Hamilton … depois não … Massa virou piloto 1B …com relação ao Barrichello ele teve uma excelente oportunidade de mostrar que tinha este algo a mais em 2009 na Brawn. E não mostrou … os demais citados nunca tiveram mesmo esta possibilidade de ter algo a mais .

    2) Com o acidente do Schumacher na Inglaterra, em 1999 Irvine teve a sua grande chance de poder ser campeão … mas não vi muita vontade da Ferrari e Schumacher em ajuda-lo neste sentido … Schumacher fazendo papel de escudeiro ? … ainda mais ele sendo dono do RH da Ferrari? … impossível … Barrichello não pode negar que mesmo não estando no contrato, sabia que na prática ele seria um segundo piloto … Irvine deixou isso bem claro em 1999 …

    3) Esta questão do Schumacher ser dono do RH da Ferrari … a meu ver Hamilton depois que Rosberg se aposentou conseguiu este cargo na Mercedes … e sinceramente se ele renovar seu contrato, Bottas renova também … Russel pode esperar mais um pouquinho …

    4) Por que Hamilton não conseguiu o RH da Mercedes com Rosberg … simples … quando ele chegou, Rosberg já estava lá desde 2010 … estava com boa moral … a Mercedes permitiu que ambos lutassem pelo titulo … Rosberg só conseguiu 2016 por ter mostrado muito algo a mais mesmo … gerou tanto desgaste no sujeito que ele se aposentou logo depois …

    5) A melhor opinião que ouvi sobre o Berger foi do Piquet … nunca fez por onde pra ganhar alguma na Formula 1 e mesmo assim durou muito tempo no circo …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Marcel Pilatti disse:

      Oi, Fernando!

      Sempre boas as suas resenhas. Muito gratos por sua presença.

      Vou comentar alguns tópicos:

      1) Sobre Massa em 2008, já publiquei uma coluna em três partes e também fiz um video, dando minha opinião sobre o tema. Não acho que Massa tenha perdido somente por aqueles episódios (mangueira/motor), muito embora sem eles, sim, ele teria sido campeão. Mas ele cometeu MUITOS erros que lhe custaram os mesmos se não mais pontos do que nesses dois erros da Ferrari – Malásia, Mônaco e Inglaterra -, além de ter sido beneficiado por estranhas punições ao Hamilton e pelos azares do Kimi (que foram maiores que os de Massa, inclusive em erros semelhantes da Ferrari).

      2 a 4) assino embaixo.

      5) Piquet sempre foi muito ácido, muito crítico, desdenhoso até, de todos do circuito. Mas note o seguinte: nunca vi ninguém (nem Rubinho nem Berger) insistir tanto nos efeitos de um acidente como o Piquet fez com relação a Imola 1987. Piquet fala que perdeu UM SEGUNDO e ninguém parece questionar. Será que Berger e Barrichello não perderam muito de suas sensibilidade, profundidade e, em alguma medida, o destemor?

      De novo, acho que Berger deu grandes demonstrações, especialmente nas pistas de altíssima velocidade (méxico e hockenheim antigos), além de ter segurado broncas na Ferrari numa época em que a equipe era claudicante.

      Abraços!

      • Fernando Marques disse:

        Marcel,

        1) lembro da sua coluna, entendo que Massa tenha lá cometido erros, mas não tão cruciais como os citados da Ferrari. Aliás, nunca vi em Massa um piloto pra ser campeão na fórmula 1. Mas em 2008 ele guiou melhor que o Hamilton.

        5) Quanto ao que Piquet falou do Berger, vejo a crítica pelo lado técnico e talvez pelo fato dele ser pouco chegado aos treinos como Piquet falava do Mansell. O Berger era bom piloto, não nego. Também era simpático em relação a sua pilotagem.

        Obrigado pelo carinho

        Fernando Marques

  2. Mauro Santana disse:

    Grande Marcel, coluna fantástica mais uma vez!

    Nos anos 80, eu torcia pra Senna e Piquet, mas também torcia por Berger pela maneira que ele guiava a Ferrari, e eu sempre acreditava que ele poderia ser campeão.

    Mas, a concorrência era muito alta, e ele fez o que poderia fazer.

    Abraço!

    Mauro Santana

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