Vamos relembrar as temporadas acontecidas nos anos terminados em 4: anos memoráveis e complexos, como se anuncia 2014.
Considerando apenas fatores como o desenrolar da maior das batalhas de Michael Schumacher, o início do ocaso de Bernie Ecclestone e a profundidade das mudanças estabelecidas pelo regulamento técnico, já se pode afirmar com segurança, antes mesmo do início da temporada, que 2014 será um ano histórico para a Fórmula 1.
E é justo que seja assim porque, quando olhamos para trás, o nível estabelecido pelos anos terminados em quatro não é brincadeira. Convido os amigos, então, a uma rápida viagem por sessenta anos de história, escritos e protagonizados por nomes como Juan Manuel Fangio, John Surtees, Jim Clark, Graham Hill, Emerson Fittipaldi, Niki Lauda, Ayrton Senna e Michael Schumacher.
Nossa primeira parada é em 1954, e nosso personagem principal é o grande Juan Manuel Fangio.
Tendo levado de forma heroica a Maserati à vitória em Monza ao fim do ano anterior, batendo no processo um dos conjuntos mais fortes já produzidos pelo automobilismo, Fangio começou em grande estilo a campanha que iria coroar seu bicampeonato.
Logo de início emendou duas vitórias incontestáveis na Argentina e na Bélgica, ainda guiando pela Maserati. E então fez as malas para a Mercedes, onde deu continuidade à incrível série de triunfos pessoais com uma dominante vitória em Reims.
Ao longo daquele ano fantástico, o argentino seria batido apenas duas vezes, sempre por pilotos da Ferrari. Primeiro, pelas mãos do amigo José Froilán González, na Inglaterra, e depois por Mike Hawthorn, na Espanha.
Analisado dentro de uma perspectiva histórica, o campeonato de 1954 foi aquele que devolveu Fangio ao ponto de número 1 do mundo, após o longo domínio de Ascari e sua Ferrari.
O grande feito de vencer por duas equipes diferentes dentro de uma mesma temporada seria igualado apenas uma vez no futuro, em 1966, por um obstinado inglês que, naquele ano de 1954, negociava com a Norton sua primeira temporada com suporte de fábrica no mundial de motovelocidade.
Dez anos depois da inesquecível campanha de Fangio e sua flecha prateada, o campeonato mundial estava dividido entre três pilotos britânicos.
A batalha entre o jovem campeão do mundo, o brilhante escocês Jim Clark da Lotus; o ex-mecânico e campeão mundial Graham Hill da BRM; e o fenômeno do motociclismo John Surtees, da Ferrari, durou até a última volta da última corrida e, conforme nos relembrou Marcel Pilatti em sua última coluna, foi decidida nos detalhes de uma complexa rede de fatores, em esferas que iam da mecânica à ética.
Todo verdadeiro fã de automobilismo sabe que Surtees é o único homem a ter conquistado títulos mundiais sobre duas e quatro rodas. A maioria, no entanto, não faz ideia do tipo de domínio que ele estabeleceu nas motos, antes de trocar de competição.
Bastaria dizer, por exemplo, que entre 1958 e 1959 ele disputou 25 corridas nas categorias 350cc e 500cc. E venceu todas elas! Nesses dois anos, e também no seguinte, Big John sagrou-se campeão mundial simultaneamente nas duas categorias mais importantes do mundial de motos. E então, apenas quatro anos mais tarde, o sujeito guiava uma Ferrari azul, em busca do título mundial da Fórmula 1.
Olhando em retrospectiva, a temporada de 1964 teve a propriedade de enaltecer diversos grandes talentos de sua era. Clark e a Lotus confirmaram a condição de conjunto mais rápido do mundo; Hill e a BRM mostraram muita combatividade, espírito esportivo, e somaram o maior número de pontos brutos; e John Surtees assinou, de forma um tanto controversa, é verdade, o maior de todos os feitos de um piloto no pináculo do esporte a motor. Sem jamais esquecer das duas importantes vitórias obtidas pelo talentoso Dan Gurney naquela mesma temporada.
Avançamos mais uma década, e nos deparamos com a consagração de Emerson Fittipaldi, e o surgimento de Niki Lauda.
Após a aposentadoria de Stewart e a triste morte de Cevert ao fim da temporada anterior, a intensa dança das cadeiras desenhou um cenário de muitas dúvidas para o ano que começava. Diversos conjuntos apareciam com boas possibilidades, criando aquele tipo de cenário favorável a pilotos de campeonato, como Emerson e, no futuro, Nelson Piquet.
Talvez por essa aparente falta de hegemonia, parte da imprensa internacional não dê a Emerson o devido crédito pela conquista do bicampeonato. Todavia, quando consideramos o feito de conquistar o primeiro título de uma equipe logo em sua primeira tentativa, especialmente num ano em que havia tantos conjuntos fortes que era muito fácil, por exemplo, terminar uma corrida fora dos pontos, a façanha de Fittipaldi começa a ganhar a dimensão que faz por merecer.
Ao todo foram três vitórias nas horas certas, e muito trabalho nos bastidores para compensar no acerto fino e no desenvolvimento do chassi a deficiência de potência em relação à Ferrari de Regazzoni e do promissor Niki Lauda.
No balanço final, foi a conquista lógica de um dos grandes de todos os tempos, que poderia ter vencido muito mais na carreira caso tivesse seguido caminhos diferentes. Um triunfo ainda mais saboroso para o Brasil, graças à presença de José Carlos Pace no pódio de Watkins Glen.
Ah, quanta coisa pode acontecer ao longo de dez anos…
Chegamos a 1984 e, enquanto Emerson Fittipaldi recomeça a carreira na Indy, e uma nova geração composta por nomes como Martin Brundle, Stefan Beloff e Ayrton Senna renova os ares da Fórmula 1, é o agora experiente Niki Lauda quem ascende ao topo do Olimpo ao fim do ano.
No intervalo de tempo entre a temporada em que conquistou a primeira de suas 25 vitórias e aquela que o consagrou como um dos maiores nomes do esporte, o austríaco abocanhou dois títulos pela Ferrari, flertou com a morte e renasceu das cinzas, aposentou-se, fundou uma companhia aérea, retornou às pistas pela McLaren, assumiu e desenvolveu o projeto do motor Tag Porsche, e lançou mão de toda essa experiência para enfrentar – e superar, pela menor das margens – a velocidade superior do jovem e brilhante Alain Prost.
Em termos históricos, o ano do Grande Irmão marcou o auge da pilotagem de Piquet, a preparação de Alain Prost para enfrentar um piloto mais rápido que ele no futuro, a confirmação ao mais alto nível dos talentos de Senna e Bellof e, acima de tudo, a elevação de Niki Lauda ao status de lenda da humanidade.
Avançamos mais uma década, e já não encontramos mais a exuberância de Bellof entre nós.
A fantástica geração dos anos 80 se desmantela com a aposentadoria de Piquet e Prost, e a transferência vitoriosa de Nigel Mansell ao automobilismo americano – onde enfrenta um ainda ativo e muito animado veterano chamado Emerson Fittipaldi.
Resta Ayrton Senna, maior nome do automobilismo mundial há alguns anos, agora diante do novo fenômeno alemão, Michael Schumacher.
A Fórmula 1 estava de volta aos reabastecimentos, e a crescente confiabilidade mecânica aproximava cada vez o ritmo de corrida das voltas de classificação. Senna, pole position nas últimas quatro provas que disputou, tinha pela primeira vez diante de si um regulamento focado em suas maiores virtudes.
Apesar das deficiências da Williams, do difícil início de ano e de toda a força do jovem Schummy, tudo indicava que o brasileiro poderia ter pela frente os melhores anos de sua carreira, com direito, entre outras perspectivas, ao recorde absoluto de vitórias.
Nunca, no entanto, expectativa e realidade se afastaram tanto numa temporada da Fórmula 1.
A morte voltou a assombrar o circo, cobrando os destinos de Roland Ratzenberger e Ayrton Senna num mesmo fim de semana, em Ímola.
Sem rival à altura, Schumacher finalmente marca sua primeira pole na corrida seguinte, e desponta como força a ser batida. Ainda assim, uma sequência de erros, algumas irregularidades comprovadas e a evolução do conjunto Damon Hill-Williams-Renault prolonga a batalha até um controverso final em Adelaide.
Historicamente, o ano fica marcado pela tragédia, dando ares gregos ao simbolismo da sucessão entre dois Grandes Senhores das Pistas, conforme excelente definição de Eduardo Correa.
Dez anos de saudades se passam até que, em 2004, é momento de ver o mesmo Schumacher alcançar de forma apoteótica seu sétimo e último título mundial.
O domínio da Ferrari é absoluto, com o alemão chegando a impressionantes 13 vitórias, somadas às duas de Rubens Barrichello, o vice-campeão.
Historicamente, além de marcar o encerramento da maior hegemonia já vista na categoria (cinco títulos de pilotos e seis de construtores consecutivos), o ano corresponde também ao ápice de desempenho dos carros.
Nessas voltas que o mundo dá, quem diria que começaríamos 2014 com o aposentado Michael Schumacher lutando pela vida num quarto de hospital francês, após um estúpido acidente de esqui?
Resta apenas esperar que, em meio a tantas mudanças e a todos os desafios no caminho dos tetracampeões Sebastian Vettel e Red Bull Racing, aquele outro alemão, protagonista de nossas duas últimas escalas nessa viagem cronológica, saiba se conformar com o papel de coadjuvante de luxo e recupere-se sem sustos a tempo de acompanhar, aos 55 anos de idade, as histórias que estaremos contando em 2024.
Ótimo feriado a todos e, por favor, tenham cuidado nas estradas.
8 Comments
O lado histórico de alguns fatos da F1 eu já conhecia. Mas o lado apaixonante deles estou conhecendo por meio das colunas do gepeto. Excelente coluna, assim como as demais. Vamos ver se 2014 se revelará como um ano marcante, tudo indica que sim. Abraços!
Obrigado pelo retorno, Rodolfo.
Abraço, e escreva sempre.
Belo Texto amigo Marcio!
E por histórias como essas que somos apaixonados pela F1!
Abraço a todos e um excelente carnaval!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Márcio
muito interessante essas situações envolvendo o número 4, nunca parei para pensar nessas possibilidades envolvendo esse número
-O primeiro e único campeão correndo em duas equipes diferentes e vencendo corridas com as duas no mesmo ano – Fangio 54
-O primeiro título vencido por um piloto que fez menos pontos que o segundo colocado em função de regulamento – Surtees 64
-O primeiro título da Mclaren – Emerson 74
-A menor diferença da história entre o campeão e o vice – Lauda 84
-A maior sucessão de senhores da pista da história – Schumacher 94
-A maior diferença em anos do primeiro ao último título conquistado (10 anos) de um piloto – Schumacher 2004
E para 2014 qual será a escrita? vamos acompanhar e torcer para se manter essa sina do número 4 , eu acho que do que é possível de inusitado seria a Mercedes voltar a ganhar um mundial 60 anos após seu primeiro título em 54
abraços
Mário
Muito legais tuas observações, meu amigo.
E depois que escrevi o texto, também me dei conta de que havia perdido a oportunidade de observar que, em 2014, dois de nossos personagens principais (Senna e Lauda), haviam se transformado em tema de filme comercial.
Abraço, e um ótimo feriado.
Em 2014 poderia ser o renascimento da Willians … é querer pedir muito?
Fernando Marques
Quem sabe, não é Fernando?
Com o motor Mercedes, não parece impossível não.
Obrigado por escrever, meu caro.
Marcio,
interessante a importancia dos feitos da Formula 1 nos anos de números terminado em 4 … 1954 nem era nascido e em 1964 acho que sequer nem falava ainda … mas em 1974, já fã incondicional do automobilismo e exatamente no dia 06 de outubro (data de meu aniversário) pude acompanhar pela TV a tarde o Emerson Fittipaldi conquistar seu bi campeonato e vibrar com o primeiro podium (creio eu que sim) do Moco na Formula 1, chegando em 2º lugar em suas primeiras corridas na Brabham. Vale lembrar que neste dia era também aniversário do Moco. Foi um domingo triplamente feliz para mim e inesquecível … e para mim certamente o ano terminado em 4 mais marcante … mais inclusive que o de 1984, ano do falecimento do Senna …
Bom carnaval a todos
Fernando Marques
Niterói RJ