por Márcio Madeira
Se é verdade que a velha discussão a respeito dos melhores pilotos em todos os tempos sempre esbarra no subjetivismo de eleger quais os critérios mais importantes de avaliação, é igualmente correto aceitar que a análise – quando limitada a cada um desses critérios, pode sim, aspirar ambições científicas. Existem informações para embasar, por exemplo, a afirmação de nosso amigo Lucas Giavoni, de que Nelson Piquet teria sido o test driver mais efetivo da F1, por mais que nenhuma conclusão possa se colocar acima de questionamentos.
Assim, do mesmo modo, nós podemos argumentar com algum embasamento que Ayrton Senna foi o mais eficiente piloto em pistas de rua em todos os tempos. Seu impressionante recorde em Mônaco, aliado aos desempenhos vitoriosos, ou ao menos vistosos, em Detroit, Phoenix, Dallas e Adelaide o credenciam a disputar esse título, com a mesma propriedade com que o Circuito da Guia, em Macau, terá de ser citado sempre que alguém quiser apontar os maiores traçados citadinos já desenhados.
Para além de opiniões ou simpatias pessoais, Senna e Macau são duas entidades que sintetizam muito do que de melhor existe ou já existiu no automobilismo de rua, em suas respectivas searas. E, como convém à História, os deuses do esporte cuidaram para que houvesse um – e apenas um – encontro entre os dois, numa prova disputada em duas baterias, que este mês completa trinta anos.
O resultado, claro, a maioria já conhece. Os meandros, nem tanto. Por sorte, tive a chance de ver a corrida na íntegra há poucos dias, com a narração do sempre lúcido Murray Walker, e posso afirmar que o evento foi perfeitamente coerente com tudo o que seria escrito nos anos seguintes, sobre pista e piloto.
Sob o ponto de vista técnico, as virtudes que tornam um piloto bom em pistas de rua são as mesmas que o favorecem quando em pista molhada ou em voltas de classificação. Com um asfalto muito mais ondulado e inconstante, o piloto jamais consegue completar efetivamente o ciclo da pilotagem em traçados de repetição, que tempos atrás dividi em três etapas. A pilotagem primária (quando o piloto vai à pista sem referências, e precisa pilotar por estimativas instintivas); a pilotagem secundária (iniciada a partir da 2ª volta, quando começa a sintonia fina em busca dos limites); e a pilotagem terciária (fase de repetição ou escolha do ritmo a partir do momento em que o limite é conhecido).
Numa pista de rua, assim como em condições de clima variável ou voltas limitadas de classificação, o piloto não chega à fase da repetição, e daí a vantagem para quem consegue se adaptar e encontrar os limites flutuantes mais rapidamente, e com menor margem de segurança. O desempenho destacado de Ayrton Senna sob essas circunstâncias, portanto, é perfeitamente coerente com sua grande habilidade com pneus frios e situações de pilotagem intuitiva.
Existem algumas referências importantes acerca do GP de Macau em 1983. Historicamente, esta foi a primeira edição da prova disputada em carros de F-3 (a última com carros da F-Pacific havia sido vencida por Roberto Moreno, em 1982). Do mesmo modo, pouca gente se dá conta de que aquela foi também a primeira corrida disputada por Ayrton Senna em um circuito citadino.
Na segunda-feira daquela semana, Ayrton estava testando a Brabham campeã do mundo, em Paul Ricard. Junto com ele estavam Pierluigi Martini e Roberto Guerrero, que também viajariam para Macau em seguida. Guerrero, no entanto, já conhecia a pista do ano anterior, ao passo que Senna ainda teve compromissos na Inglaterra, que o levaram a chegar ao hotel na China apenas na madrugada de quarta para quinta. Desnecessário dizer que sua forma estava longe da ideal quando a pista foi aberta, no dia seguinte pela manhã.
Trabalhando em outro fuso, estranhando o calor e ainda sofrendo severamente com o jet lag, Senna assumiu um dos três carros de Teddy Yip e foi conhecer o desafiador Circuito da Guia, sem qualquer preparação prévia. E aqui cabem algumas palavras sobre o palco.
Nenhuma pista no mundo é tão bipolar quanto Macau. Basicamente, num dos lados ela é tão rápida quanto Monza, e noutro é tão travada quanto Mônaco. Com um detalhe importante: em alguns trechos a pista é tão estreita, que admite a passagem de apenas um (!) carro.
Tudo, nessa pista, envolve compromisso. O acerto precisa considerar a velocidade final, e a sensibilidade dos pequenos motores de dois litros a qualquer grau excedente nas asas traseiras. Por sua vez, o carro precisa conservar alguma estabilidade mecânica para encarar os muitos esses em sequência, e dispor de boa tração para as saídas dos muitos cotovelos. Ao todo são mais de 6km de insanidade, com todo tipo de cambagem e variações de altitude. Uma pista, em suma, que leva tempo para ser aprendida. Não por acaso diversos bons pilotos voltam duas ou mais vezes a Macau, antes de conseguirem um resultado satisfatório.
Na primeira sessão cronometrada, Senna raspou o muro após míseras três voltas, estragando um aro. O carro não sofreu maiores danos, mas o tempo de pista foi perdido. Nessa altura, Roberto Guerrero – com dois anos de experiência na F1 e profundo conhecimento da pista – tinha o melhor tempo (2’22’’85), seguido por Brundle e Senna (empatados com 2’23’’47). Os três guiavam Ralts Toyota inscritos por Teddy Yip – e patrocinados nas tradicionais cores da Marlboro que mais tarde marcariam a carreira de Senna. O brasileiro guiava para a West Surrey e os outros dois para a Jordan. Na prática, os carros dos três eram idênticos.
Restava a segunda sessão, e nela Ayrton entortou um seletor de engrenagem, novamente perdendo tempo com os reparos. No fim, houve tempo para apenas outras três voltas, e foi isso. Com apenas seis voltas completadas ele havia assimilado os trechos cruciais da pista a ponto de conseguir a pole position para o GP, ainda que por uma margem bastante apertada (para seus próprios padrões): 2’22’02, contra 2’22’’18 de Guerrero e 2’22’26 de Brundle. Além do já citado Pierluigi Martini, o grid tinha outros nomes que se tornariam mais ou menos conhecidos no futuro. Entre esses, destaque para Gerhard Berger, largando na 5ª posição.
No dia da corrida Senna continuava sentindo-se mal fisicamente, a tal ponto que optou por dormir por 1h30 entre as duas baterias da corrida. Na largada ele teve problemas para engatar a segunda marcha, sendo assim superado por Guerrero. A primeira curva em Macau fica a cerca de 150 metros de onde o pole larga, e é um cotovelo de 90º à direita. Então, logo em seguida, outra curva semelhante completa o retorno que dá início à parte sinuosa do traçado.
Pois bem, ao tomar a 1ª curva na frente, Guerrero imaginava que só poderia ser atacado no fim da volta, na entrada do trecho de alta. Senna, no entanto, havia carregado enorme velocidade para esse trecho, de tal modo que conseguiu fazer a 2ª perna já na liderança. Uma manobra que não apenas surpreendeu o colombiano, como mereceu sua sincera admiração numa declaração futura: “Ele me passou na viela entre as duas curvas. Eu não podia acreditar no que ele conseguia fazer com pneus frios”, admitiu.
E então adeus. Absurdamente rápido nas voltas iniciais, Senna construiu na 1ª bateria a vantagem que o deixaria folgado no somatório dos tempos. No fim ainda tirou um pouco o pé, fechando a primeira perna com 5’’99 de vantagem. Atrás de Guerrero o surpreendente Berger, com motor Alfa Romeo, fazendo aquela que considerou a melhor corrida de sua vida, ao menos até ali.
httpv://youtu.be/2v0QEvQBZUI
O verdadeiro show, no entanto, viria na 2ª bateria.
Após tirar seu cochilo entre as provas, Senna estava de volta ao grid. E dessa vez, sem problema no câmbio, não foi ameaçado nem por um momento, apesar de vários conjuntos terem queimado a largada. Por ser demasiadamente grande, a pista não possuía câmeras em todos os trechos, de tal modo que os carros sumiam momentaneamente da transmissão. Ainda na volta inicial, quando eles retornaram ao vídeo, na “Dona Maria Bend”, Senna já tinha mais de 2s de vantagem sobre o restante do pelotão. Era mais uma de suas voltas iniciais arrasadoras.
A partir daí, dizer que essa foi mais uma vitória de ponta a ponta é um reducionismo que não faz justiça ao que aconteceu, porque o que Ayrton construiu nas voltas seguintes foi uma das maiores demonstrações de regularidade já registradas pela televisão. Numa pista enorme e complexa como o Circuito da Guia, ele girou em TODAS as voltas cujo tempo foi narrado por Murray Walker, com apenas duas exceções, em exatos 2’22’’2. Estou falando aqui de oito ou nove passagens no mesmo décimo de segundo, numa corrida de 15 voltas. E nas duas vezes em que o tempo variou, o cronômetro registrou 2’22’’4 e 2’22’’5. Infelizmente a narração não deu todos os tempos de volta, mas a amostragem basta para revelar a qualidade do piloto e sua atuação.
Por fim, com uma vantagem semelhante à da 1ª bateria, Senna tirou o pé para assegurar por 7’’32 uma vitória que conseguiu ser brilhante a despeito de ter sido aparentemente fácil. Ao todo, ele completou 30 voltas no melhor circuito de rua da atualidade. Esteve na liderança em todas elas, fez a melhor volta nas duas baterias, e largou na pole position.
Alguns comentários de Murray Walker ao longo da transmissão merecem a menção. Para começar, ele afirmou repetidas vezes que Senna “quase certamente iria pilotar para a Brabham em 84”, indicando a disposição inicial da equipe em tê-lo no 2º carro. Walker, claro, tinha as melhores fontes possíveis para sustentar suas declarações.
Sobre o piloto em si, Walker também fez uso de diversas expressões poderosas, como “Wonderman”; “destinado ao estrelato”; “o melhor piloto da Fórmula 3, e na minha opinião um dos melhores pilotos do mundo”; e ainda disse que se algum piloto parecia marcado para ser campeão mundial, esse era Ayrton Senna.
No próximo dia 17, Macau volta a sediar um GP da Fórmula 3. Em homenagem ao 30º aniversário da vitória de Ayrton Senna, a equipe Prema, cujos pilotos inscritos são Alex Lynn e Lucas Auer, correrá sob inscrição da Theodore, com as cores branco e vermelho.
8 Comments
Gostaria de ver um GP de F1 nas ruas de Macau, seria interessante!
Com relação ao texto do Marcio, por sinal sensacional, acho intrigantes alguns aspectos:
– a relação de afinidade que o traçado tinha pelo Senna
– creio que tal afinidade só existiu também com Sir G.Hill, então rei de Mônaco até o aparecimento de Senna
– e o fato de nenhum outro piloto brasileiro ter sido feliz no traçado além do Senna. Emerson, Piquet , Barrichello e talvez o MAssa (não tenho certeza) até subiram ao podium mas sem o triunfo maior … Acho que Pace nunca se deu bem lá …
Texto fantástico, amigo Marcio!
E realmente, Senna em pistas de rua era único.
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Márcio e amigos
sou um leitor voraz, gosto muito de ler, na brincadeira até bula de remédio leio inteira…rsrs.
Eu acredito como leitor que um escritor trilha um caminho muito espinhoso até conseguir chegar ao emocional de seus leitores, e Márcio você consegue a cada texto teu ,nos surpreender nesse sentido, se narrar uma corrida ou evento esportivo ao vivo e passar ao público a dose correta de emoção já é difícil, pela palavra escrita isso é mais ainda, parabéns!!!
Palavras bem dosadas e de forma singela ao mesmo tempo tocante, em que você descreve uma corrida que poucos de nós tivemos a oportunidade de assistir ao vivo e que lendo pude materializar imagens na cabeça tal a precisão descrita nos fatos, puxando pela memória acredito que não foi televisionada na época ,por isso você nos remete de forma fantástica ao evento.
Sobre a corrida em si o interessante é que nesses detalhes que você expõe os acontecimentos, pouca coisa foi comentada naquele ano nos veículos que trouxeram as informações, a primeira delas foram sobre os dias que antecederam a prova e as condições sob as quais Senna chegou e foi à pista nos treinos, as poucas voltas e a rapidez com a qual ele se adaptou a pista.
Lendo tua argumentação sobre os preceitos subjetivos para eleger Senna o mestre nas pistas de rua, achei muito bem embasados a ponto de já adota-los em minhas futuras conversas para palpitar que ele de fato pode ser considerado o “Rei das Ruas”.
Um fato me chamou a atenção e quero compartilhar minha opinião, quando voce fala da regularidade das voltas de Senna, onde em 8 ou 9 voltas das 15 da prova, ele consegue completa-las no mesmo tempo (2’22’’2), cabe ressaltar que não é apenas a regularidade que é posta a prova numa condição dessas, vale lembrar que sem reabastecer e sem trocar pneus o carro deve ter variado de características nessas voltas(peso e desgaste de pneus), pode ter sido pouca coisa, mas acredito que aconteceu, num caso desse a regularidade para ser obtida precisa que o piloto entenda essa variação de peso e de desgaste de pneu, a ponto de ir mudando gradativamente sua tocada para manter o mesmo ritmo. Isso não me surpreende se foi por essa razão, acrescentando ao título de Rei das Ruas , Senna também entra forte numa disputa com os grandes nomes, no quesito concentração para extrair da maquina e da sua pilotagem o máximo possível, ontem um canal de TV mostrou reportagem sobre a corrida de Donington 93, que é outra demonstração de gala do brasileiro.
Esse texto brinda de forma muito justa uma homenagem a essa edição do GP de Macau e ao feito de Senna .
Abraços
Mário
Com certeza, Mário. Quando se considera uma regularidade na casa do décimo de segundo em uma pista complexa e grande como Macau, todas as variáveis precisam ser consideradas. Ainda assim, as três principais flutuações acabam de certa forma se compensando durante um período de tempo, quando pensamos que a redução na velocidade decorrente do desgaste dos pneus acaba sendo reduzida pelo emborrachamento da pista (sempre mais sensível num traçado de rua) e pela redução no peso, através do consumo do combustível.
Ainda assim, é certo que houve compensações na pilotagem, que apenas confirmam a sensibilidade e a qualidade de Ayrton Senna ao volante. Especialmente sob essas condições, nas quais costumava sobressair bastante.
Abraço, meu amigo!
E o Massa hein!!!
Assinou com uma grande equipe da Formula 1 …
Para andar em ultimo ano que vem … rsrsrsrsrs
Se bem que o Reginaldo Leme pense ao contrário … ele acha que por causa do novo regulamento, do motor mercedez , de algumas contratações pedidas talvez pelo MAssa como seu engenheiro da Ferrari a Willians pode surpreender ano que vem … será?
Fernando Marques
Niterói RJ
é Fernando
vamos ao menos torcer, não dá para depositar todas as esperanças nessa possibilidade ainda mais pelo retrospecto que a Williams tem apresentado nos últimos anos, afinal quem garante que num regulamento incerto a Red Bull vai se dar tão mal e as demais equipes tão bem? eu até acho correto torcer para isso acontecer, mas não dá para garantir, fica sempre a possibilidade de 50/50, acredito que ninguém em sã consciência aposte e tenha argumentos para isso. Fiquei surpreso com o tempo acertado no contrato do Massa, aí sim ,talvez existam fatores que Massa saiba de ante mão que podem leva-lo a uma situação competitiva, ou o patrocínio quem vem com ele seja forte o bastante para deixar a equipe tranquila.
abraços
Mário
Mario,
concordo plenamente contigo … principalmente em relação a duração do contrato … se bem que quando o Barrichello foi para lá a situação parecia bem semelhante … inclusive na duração do contrato também …
Fernando Marques