Jamais vou me esquecer da experiência que foi assistir, praticamente dez anos atrás, à fantástica final do Australian Open de tênis de 2012, disputada até os limites da resiliência humana, durante mais de seis horas, por Novak Djokovic e Rafael Nadal. Naquele dia ambos conquistaram meu respeito irrestrito porque levaram seus corpos e seus espíritos muito além do que uma pessoa estaria disposta a ir quando motivada apenas por dinheiro, fama ou qualquer tipo de vaidade. Tanto mais quando estamos falando de jovens que, naquela altura, já haviam ganhado rios de dinheiro e estavam entre os esportistas mais respeitados no mundo todo.
O que vi naquele dia foram dois homens dispostos a morrer em quadra, e desde então tenho refletido a respeito dos fatores contextuais que, nas mais variadas modalidades, eventualmente excitam a natureza competitiva de esportistas a ponto de acessarem essas motivações mais primitivas, mais irracionais, indo além dos limites das etiquetas e dos protocolos, de ambições financeiras e mesmo do senso de autopreservação, proporcionando raros vislumbres do que poderíamos chamar de essência esportiva, aquilo que continua a existir em camadas escondidas abaixo do glamour, do show, da perfumaria.
Claro que existem exceções, porque naturalmente nem todos os atletas são feitos do mesmo material. Nico Rosberg, por exemplo, talvez encarasse a missão de igualar o pai e se tornar campeão mundial quase que como um fardo, a ponto de se aposentar prematuramente logo após tirar tal peso de cima dos ombros. Décadas antes, Bjorn Borg foi outro que teve a motivação triturada quando alcançou tudo que havia almejado e a manutenção do sucesso começou a cobrar um nível de esforço e estresse que, racionalmente, já não via motivos para entregar. Os verdadeiros competidores, contudo, parecem se alimentar de uma boa rivalidade, de um desafio hercúleo, eventualmente dando início a uma dinâmica na qual superam de tal forma o que seria considerado um esforço razoável, que simplesmente passam a não mais lidar com a possibilidade de derrota.
Vimos esse tipo de situação acontecer algumas (preciosas) vezes no esporte. Lembrando assim, quase que ao acaso, vêm à mente a fabulosa disputa entre o saudoso turco Naim Süleymanoğlu e o grego Valerios Leonidis pelo ouro olímpico no levantamento de peso nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996; as lutas potencialmente mortais entre Muhammad Ali e Joe Frazier (em especial a terceira); as guerras travadas entre o Chicago Bulls e o Detroit Pistons no fim dos anos 80; outras partidas de tênis como as finais de Wimbledon em 2008 (Nadal x Federer) e 2019 (Djokovic x Federer); a sensacional disputa entre Pieter van den Hoogenband e Ian Thorpe nos 200m nado livre nos Jogos de Sydney; a partida entre Brasil e Rússia pelas quartas de final do vôlei de quadra feminino em Londres, 2012; a temporada de 1983 das 500cc e a visita da MotoGP a Laguna Seca em 2008, entre muitos outros exemplos possíveis.
No automobilismo, claro, vimos essa dinâmica se desenvolver entre Ayrton Senna e Alain Prost, sobretudo em Suzuka, 1989, e o assunto só nos é pertinente agora porque, tantas décadas depois, estamos vendo a História se repetir com Hamilton e Verstappen nesta já memorável temporada de 2021.
Quanto mais reflito a esse respeito, mais concluo que o fator decisivo para que dois atletas (ou times) entrem em “modo kamikaze” é a sensação de merecimento, ou a crença do merecimento, que por sua vez pode ser provocada por diversos gatilhos. Antecipação de favoritismo; ódio em relação ao rival; preparação árdua nos bastidores; crença quanto a estar vivendo uma oportunidade única de vitória; e, acima de tudo, proximidade de desempenhos.
No fundo, estamos falando de algo que tem origem em nossos instintos mais básicos. Um animal se comporta de maneira diferente quando combatendo dentro ou fora do território que acredita ser seu. É exatamente a respeito da mesma coisa que estamos falando aqui. Acreditar, ou não, que a vitória ou o título lhe pertencem por direito.
No esporte e na vida, certamente o caminho mais fácil para conquistar uma vitória é entrando na cabeça do rival o quanto antes, quebrando suas esperanças ainda no início da disputa, mostrando-se “dono do território”, colocando-se, desde sempre, na condição de vencedor iminente. Porque a outra opção é deixar os adversários sentirem o cheiro de sangue na água e começarem a acreditar, também eles, que podem vencer, e aí o que teremos é uma disputa selvagem e imprevisível.
A atual temporada tornou-se algo maior a partir de vários desses estímulos. De imediato, temos um campeão como Lewis Hamilton que acostumou-se a vencer sem muito esforço, e de repente se vê questionado como nunca anteriormente, por um jovem rival tão rápido quanto ele e determinado a colocar em xeque o lastro de todo o sucesso amealhado ao longo da mais longa hegemonia já estabelecida por um piloto e uma equipe. De outro, temos um jovem talento que chegou à F1 com reputação de fenômeno e que havia vencido tudo por onde passou, mas que teve de sobreviver de migalhas ao longo de seis longas temporadas antes de finalmente ter uma chance de ser campeão lutando contra o conjunto que foi dominador nos últimos anos – e que pode perfeitamente ser a única oportunidade, considerando a radical mudança de regulamento prevista para o próximo ano.
A honra de Lewis e a urgência de Max, todavia, não teriam bastado para nos trazer até onde estamos. Para isso foi preciso que o equilíbrio de forças se alterasse diversas vezes ao longo do ano, mantendo vivas as esperanças de ambas as equipes e ambos os pilotos. Fazendo-os acreditar. E fomos ainda além, porque numa certa altura, quando a disputa parecia estar sendo aniquilada por Verstappen e a Red Bull, tivemos o controverso acidente em Silverstone, que transferiu 32 pontos para a conta do heptacampeão mundial. E então tivemos a Hungria, a postura provocativa de Hamilton nos treinos, a batida de Norris em Max (causada por Bottas), e o resultado evidente é a crença, tanto por parte de Max quanto por parte de seu time, de que se o título for perdido, terá sido em consequência dessas batidas provocadas por pilotos da Mercedes. E a Mercedes, por sua vez, vem sentindo-se prejudicada por decisões de cunho político, além de afirmar que a Red Bull quebrou um “acordo de cavalheiros” ao protestar a asa traseira do W12 no Brasil.
Ora, ora, não é preciso ser nenhuma especialista para perceber que essa aí é uma mistura para lá de explosiva, como os aperitivos em Monza e Interlagos trataram de deixar claro. Parece evidente que Max se sente prejudicado e com crédito para jogar duro em disputas diretas, na base do “é aceitar ou bater”, tanto mais agora, nessa reta final, quando a Mercedes fez valer o poderio de seu parque industrial e as vantagens de construir o próprio motor para municiar Lewis Hamilton com um carro dominante, que em suas mãos vem se mostrando imbatível. Basta dizer que o motor mais nervoso, utilizado na vitória em Interlagos, foi poupado em Losail para voltar a rugir na prova na Arábia, que desde já promete ser eletrizante.
Depois de épicos como os GPs dos Estados Unidos e do Brasil, a visita da Fórmula 1 a Losail, no Qatar, foi como o dia sereno que antecede uma grande tempestade.
Houve um momento de tensão pouco antes da largada, quando foram anunciadas as punições a Verstappen (cinco posições) e Bottas (três posições) por terem desrespeitado bandeiras amarelas durante a sessão classificatória. Max, afinal, passaria a largar atrás de Valtteri, abrindo a possibilidade de jogos de equipe imprevisíveis por parte da Mercedes. Dada a largada, contudo, mais uma vez ficou claro que este é um campeonato de apenas dois pilotos. Max não precisou de mais de cinco voltas para alcançar a segunda colocação, onde permaneceria até o fim, ao passo que Bottas, em mais uma largada sofrível, caía para fora da zona de pontuação.
Com as duas posições bem estabelecidas desde o início, as emoções deste primeiro GP do Qatar ficaram dividias em duas frentes paralelas.
A primeira delas se deu em razão da belíssima exibição do grande Fernando Alonso, que aproveitou-se dos erros e das deficiências de Pérez e Bottas para levar a Alpine a uma sólida e impressionante terceira colocação, retornando ao pódio depois de um jejum de sete anos. Tempo demais, para um piloto tão especial.
E a segunda ficou por conta da dura batalha travada entre Lewis e Max pela volta mais rápida da corrida, e consequentemente por um ponto que se revela importante demais. Afinal, todo mundo sabe e sente que a temporada atual tem grande chance de vir a ser decidida numa disputa além dos limites da esportividade, e que chegar à prova final liderando a tabela de pontos torna-se crucial para o caso de um toque eventualmente encerrar a corrida de ambos os pretendentes ao título.
Pois bem, caso tivesse marcado a melhor volta, Hamilton iria para a Arábia tendo apenas seis pontos para descontar e dependendo apenas de si mesmo para vencer e evitar que Max chegasse a Yas Marina liderando o campeonato. Contudo, como foi Max quem assinalou a volta mais rápida no Qatar, essa distância sobe para 8 pontos. E então, qual o cenário que temos?
Simples: caso Hamilton vença e assinale a melhor volta na Arábia, com Max em segundo, ambos chegariam a Yas Marina empatados em pontos, mas Max continuaria levando vantagem vantagem num eventual toque por ter 9 vitórias, ante 8 de Hamilton. Ou seja: para Hamilton, a única chance de chegar a Abu Dhabi liderando é contar com Bottas ou alguma outra interferência que impeça Max de terminar na segunda colocação. Cabe registrar que ao longo de toda esta temporada ele terminou sempre em 1º ou 2º, exceto na Hungria, onde correu com o carro avariado, ou no Azerbaijão e na Grã-Bretanha, onde abandonou.
Fato é que a disputa evoluiu para uma questão de honra para ambas as equipes e pilotos, de um modo como não víamos desde 1990. É notório como Hamilton jamais quis tanto um título mundial, e nossa torcida fica para que pilotos e equipes tenham a consciência de que estão escrevendo uma temporada que será lembrada daqui a muito tempo, e que qualquer atitude antidesportiva será uma nódoa indelével na carreira dos envolvidos.
Torçamos para que a disputa seja decidida na pista, dentro dos limites da esportividade, com o brilhantismo que seus protagonistas são capazes de entregar.
Afinal, não basta ganhar. É preciso ganhar do jeito certo. Automobilismo não é uma disputa para ver quem é mais louco ou corajoso, mas quem mais se aproxima dos limites sem os ultrapassar.
Em tempo: a partir da próxima prova, um punhado de combinações de resultados envolvendo problemas com Lewis Hamilton já podem ser decisivas para o campeonato.
Algumas palavras sobre a a MotoGP em 2021.
A exemplo do que havia acontecido no ano anterior, a temporada 2021 da categoria de topo da motovelocidade internacional se desenrolou em meio a uma sensação de vácuo de poder, ainda que com menor intensidade do que no período em que Marc Márquez esteve afastado.
Num apanhado rápido, a história da categoria rainha é contada por períodos de dominação de um piloto (Geoff Duke, John Surtees, Mike Hailwood, Giacomo Agostini, Michael Doohan, Valentino Rossi e Marc Márquez); por períodos dominados por uma geração de grandes talentos contemporâneos (Phil Read, Barry Sheene, Kenny Roberts, Freddie Spencer, Eddie Lawson, Wayne Rainey, Kevin Schwantz, Casey Stoner, Jorge Lorenzo), e por anos de aparente vácuo de referências, com campeões mais ou menos ocasionais, como os casos de Nicky Hayden, Álex Crivillé ou Kenny Roberts Junior, para citar apenas três.
Joan Mir, campeão de 2020, esteve longe de brigar pelo título e parece ter lugar reservado nesta mesma prateleira dos campeões ocasionais. Fabio Quartararo, por sua vez, apresenta momentos de brilhantismo que o credenciam como principal aposta da nova geração para rivalizar com Marc Márquez, e talvez um piloto capaz de brigar por títulos de maneira mais consistente, agora que acaba de conquistar o primeiro. E já que falamos em Márquez, importa registrar que ele recuperou parte da força e da confiança ao longo do ano a ponto de vencer três corridas, antes de sofrer nova lesão séria que mais uma vez levanta dúvidas a respeito de suas possibilidades de competir no mais alto nível em futuro próximo. Sua vitória na Alemanha, em especial, deveria ser lembrada como um dos grandes feitos do esporte a motor neste século.
Ainda no campo dos pilotos, Francesco Bagnaia terminou a temporada em grande fase, com boas perspectivas de crescimento a curto prazo. Resta, em resumo, a sensação de que podemos ter uma boa geração a caminho, embora ainda se faça notar a ausência de uma figura dominadora, como foram Rossi e Márquez em seus melhores anos.
Sobre as motos, no entanto, as perspectivas são as melhores possíveis. O ano foi marcado por grande proximidade entre todas as fabricantes, com o benefício de tal proximidade ter sido construída a partir de soluções distintas, que se refletem em hierarquias flutuantes a partir das características de cada circuito. Dito isso, ao fim da temporada a impressão que resta é de que a Ducati tem o melhor pacote sobre o qual se debruçar para construir o foguete do ano que vem.
E, claro, a aposentadoria de Valentino Rossi merece uma coluna exclusiva, que publicaremos em breve.
Forte abraço, e uma ótima semana a todos
Márcio Madeira
3 Comments
Grande Márcio!
Nesta lista de grandes rivalidades, eu gostaria de acrescentar estas duas feras do Mundial de Mountain Bike, que é o brasileiro(e ídolo) Henrique Avancini e o suíço(e Lenda) Nino Schurter.
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Belo texto Márcio.
Tomara que esta temporada termine melhor que a fantástica temporada de 1990, sem mais batidas entre os postulantes ao título.
Marcio,
como não aplaudir a sua coluna … está simplesmente bom demais da conta …
Algumas de suas indagações a respeito da disputa entre Verstappen e Hamilton veremos nestas duas ultimas etapas … a principal delas é se veremos uma disputa limpa dentro das pistas … “um toque não ocasional” se existir será por parte do Versttapen, que não teria nada a perder … será que o Holandês , que várias vezes cansou de dizer que entre ser ultrapassado ou jogar seu adversário pra fora da corrida, prefere a segunda opção, vai jogar limpo? Será que Verstappen vai continuar com cara de embabacado (Brasil) ou fingindo que está tudo bem (Catar) se continuar tomando poeira na cara como ele tomou do Hamilton nessas ultimas duas etapas?
Confesso que achei que a Mercedes tinha jogado a toalha na Turquia, mas me enganei … a minha torcida pelo Octa Campeonato do Hamilton cresceu novamente. Recordes existem para serem quebrados. A conquista de um oitavo titulo seria o maior recorde da história. Quero ser testemunha ocular desse recorde.
Vamos aguardar os dois últimos capítulos e que Vertappen não peça conselhos ao Prost.
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Quanto a Moto GP … perfeito a sua análise …
Ser campeão em 2020 e 2021 sem Marc Marquez em forma levanta muitas duvidas …
Mas a minha torcida é que em 2022 voltemos a ver ao Marquez em plena forma, com F. Quartararo e F. Bagnaia mostrando serviço como mostraram em 2021 … será uma temporada inesquecível …
Aguardo ansioso pela coluna do Doctore
Fernando Marques
Niterói RJ