Show tem que continuar?

O conceito de melhor vitória
30/03/2023
O que eu acho da… [Final]
05/04/2023

Em 1999 foi lançado o filme Um Domingo Qualquer (Any Given Sunday), que mostrava como o veterano treinador de futebol americano Tony D’Amato, interpretado por Al Pacino, encarava as mudanças do esporte. Principalmente fora dos gramados. Novos elementos estavam entrando no jogo, como a relação com novos dirigentes interessados unicamente nos negócios e também com a imprensa. Em certo momento do filme, D’Amato bebericava num bar, enquanto na TV o principal comentarista da cidade o criticava abertamente. Um dos seus técnicos, interpretado por Jim Brown (ex-jogador da NFL) se aproxima e relembra os ‘bons tempos’ com Tony e diz: a pureza do jogo acabou quando começaram a pagar por um comercial.

Voltando a 2023 e vemos o esporte cada vez mais imerso no entretenimento. Mais do que se preocupar em definir um vencedor, os promotores se preocupam com o engajamento dos fãs e quantas curtidas determinada hashtag ganhou ao final do evento. Com a F1 não é diferente. Desde que a Liberty Media assumiu a categoria, estamos vendo a parte esportiva ficando de lado a favor do entretenimento e se para termos um bom show o resultado de uma corrida seja afetado, a F1 não pensa meia vez em jogar um Safety-Car sem necessidade na pista ou mostrar uma bandeira vermelha marota.

O que vimos nesse domingo em Melbourne foi o recorde histórico de três bandeiras vermelhas durante a corrida, resultando em três largadas paradas e um Big One que destruiu a corrida de alguns pilotos, além de ter dado um senhor prejuízo às equipes, bem na semana em que os times preparam os relatórios para verificar o teto orçamentário.

A bandeira vermelha sempre existiu na F1, mas foi usado para a segurança dos pilotos, interrompendo corridas para fazer reparos na pista ou até mesmo para regaste de pilotos. Porém, para o bem do ‘show’, o uso da bandeira vermelha está sendo transvertido não para aumentar a segurança dos pilotos, mas para incluir um novo fato na corrida, principalmente se a prova estiver muito parada. O uso do Safety-Car resolveria os problemas dos dois casos em que o pano vermelho interrompeu o Grande Prêmio da Austrália desse ano, contudo, haveria menos ação na pista. Resumindo, o ‘show’ seria menor.

Olhando para os lados, a F1 ainda resiste bravamente à esses ‘ataques’ da turma do entretenimento. Ainda não há Play-Offs para definir títulos (Nascar), grids invertidos (F2, F3, Stock) ou Fan Boost (F-E). Se a F1 timidamente inclui corridas Sprint no seu calendário, com as equipes segurando a pressão da Liberty, a MotoGP deu um passo à frente colocando corridas curtas em todo o seu calendário. O número de corridas dobrou, assim como dobrou o risco de acidentes e como resultado disso o GP da Argentina da MotoGP realizada horas depois da bandeirada em Melbourne contou com o recorde negativo de dezessete motos no grid, pois há nada menos do que cinco (!) pilotos machucados, após apenas duas etapas. Ou quatro corridas.

Falando em MotoGP, essa semana surgiu a notícia de que Dorna e Liberty Media estariam negociando para um final de semana conjunto com F1 e MotoGP. Seria um sonho!  Porém, Stefano Domenicalli deu a brilhante ideia de usar um circuito de rua em Madri para esse evento.

Uma corrida de motos potentes num circuito de rua…

A corrida em Melbourne nessa madrugada de domingo não teve meio-termo. Ou houve caos, ou houve marasmo.  A corrida oceânica saiu do marasmo ao caos em vários momentos, apenas o vencedor não mudou nessa temporada: a Red Bull. Dessa vez não teve dobradinha, mas os austríacos comemoraram outra vitória dominante com Max Verstappen.

O sábado já tinha reservado a surpresa de um Sérgio Pérez tendo vários problemas e a Mercedes colocando seus dois carros nas duas primeiras filas, com Russell novamente superando Hamilton. O pouco espaço entre a linha de largada e a primeira curva não impediu que George Russell saísse muito bem no apagar das cinco luzes vermelhas e ultrapassasse Verstappen, que foi claramente cauteloso. Sabedor que seu maior rival e talvez único pelo título, Sérgio Pérez, estava num final de semana ruim, tudo que Max não queria era problemas e ele os evitou ao máximo, freando tão cedo na curva 3, que permitiu a ultrapassagem de Hamilton e trouxe um pouco de caos, com o toque de Leclerc em Stroll, que provocou o abandono do monegasco ali mesmo, além de inaugurar a série de Safety-Cars. Na primeira relargada, a dupla da Mercedes e Verstappen se destacou de Sainz e Alonso. A Mercedes tinha como trunfo ter seus dois carros contra Max e por isso segurou Russell para proporcionar o DRS à Hamilton e assim Lewis pudesse segurar as estocadas de Verstappen. Porém, essa tática durou pouco com o acidente de Alexander Albon, que largara muito bem e com os toques à sua frente, subia para um surpreendente sexto lugar.

Foi então que começou as táticas da FIA para melhorar o show. A Williams de Albon nem estava numa posição tão ruim assim e apesar de que a pista estivesse imunda, um SC daria conta do recado tranquilamente. Porém, ‘precisamos de um bom show’ e corrida foi parada por uma bandeira vermelha para lá de desnecessária.

À essa altura Russell e Sainz foram os grandes prejudicados, pois eles tinham parado no SC que veio a seguir ao acidente de Albon, mas com a bandeira vermelha, ambos perdiam o posicionamento e com os demais carros colocando pneus duros, qualquer vantagem dos dois fora para o espaço. O asfalto de Melboune não é muito abrasivo e por isso a estratégia de uma parada, com todos colocando os pneus duros, era a tática ideal e com a bandeira vermelha proporcionando a troca de pneus sem um pit-stop, as equipes estavam felizes com os carros indo até o final da prova sem mais paradas. Quem não deve ter gostado disso foram as pessoas nas arquibancadas, que quebraram recordes na Austrália, além das pessoas que ficaram na frente da TV, muitas vezes em horários inconvenientes. Como os pilotos teriam que levar seus carros até o final com aquele jogo de pneus, ninguém poderia forçar em demasia, levando ao marasmo. Verstappen rapidamente ultrapassou Hamilton e abriu a vantagem em que Max apenas administrou. Hamilton ficou para trás, tendo Alonso sempre menos de 2s atrás, enquanto Russell tentava a recuperação, ultrapassando de forma bonita Gasly, mas quando inglês pensou em se insinuar para cima de Alonso, o motor Mercedes abriu o bico, deixando George na mão. Gasly tinha se aproveitado bem da bandeira vermelha e mesmo ultrapassado por Sainz, o francês seguia a Ferrari sem maiores dramas. Sainz chegou a encostar no seu compatriota Alonso, mas mantendo os mesmos 1,5-2s que Alonso tinha de desvantagem para Hamilton. E assim permaneceu a corrida por longas e sorumbáticas voltas. Havia a tensão dos carros relativamente próximos, mas ninguém atacava ninguém, pois o objetivo era ver a bandeirada. Enquanto Verstappen saía rapidamente da pista na penúltima curva, Checo Pérez fazia uma corrida burocrática, bem longe da agressividade mostrada por Max em Jidá. O mexicano da Red Bull parecia não ter confiança e muitas vezes demorava em demasia para ultrapassar carros 2s mais lentos que o seu. Em condições normais, Pérez chegaria num sétimo lugar, talvez pressionando Lance Stroll, quando a corrida teve a guinada derradeira nas voltas finais.

Kevin Magnussen, pressionado pela boa atuação de Nico Hulkenberg, sempre mais rápido nos treinos e na corrida, brigava com Zhou pela décima segunda posição nas voltas finais da prova. O danes acabou errando e bateu forte na curva dois. O pneu traseiro da Haas ficou no meio da pista e com a suspensão quebrada, K-Mag abandonaria seu carro logo depois. Com o pneu de Kevin no meio da pista, tendo que retirar a Haas do acostamento e alinhar todo mundo atrás do SC, estava claro que a corrida não seria reiniciada apenas com o SC. Para quem acompanha a Indy e a Nascar, há uma clara imposição dos organizadores americanos: não se pode terminar uma corrida sob bandeira amarela. Na Nascar, surgiu a prorrogação. Na Indy, bandeiras vermelhas garantem a limpeza da pista e uma relargada. Com a Liberty cada vez mais empenhada em ter um ‘bom show’, seguiu os companheiros da Indy: bandeira vermelha. Outro fato interessante é que Michael Masi, o homem que provocou toda a polêmica de 2021, estava em Melboune nesse final de semana para uma visitinha. Com certeza olharam para Masi e recordaram do para sempre lembrado final de campeonato de 2021 e toda a polêmica que acarretou. Para que arriscar? Vamos ter um bom show. Bandeira vermelha!

Com todos os pilotos calçados com pneus macios e podendo forçar à vontade para pouquíssimas voltas, estava na cara que ia acontecer uma merda. Porém, será que os promotores da F1 pensaram nas possíveis consequências esportivas de uma relargada tão no final, com os pilotos propensos a ir para um ‘all in’? Certamente não! E a merda anunciada veio.

A terceira largada parada do dia foi uma carnificina. Verstappen posicionou seu carro mirando Lewis e foi assim que o piloto da Red Bull manteve a primeira posição. Porém, a freada da primeira curva foi caótica, com Gasly freando tudo para não bater em Alonso, Sainz tocando no seu compatriota, Pérez saindo da pista e quando Gasly retornava à pista, bateu em… seu companheiro de equipe Ocon, destruindo a corrida da Alpine. Para completar, Tsunoda já tinha batido em Bottas, enquanto Sargeant se tocou com De Vries e Stroll, que poderia ter subido para terceiro, mostrou seu ‘talento’ e passou reto na terceira curva. Sobrava poucos carros e uma terceira bandeira vermelha apareceu, dessa vez de forma necessária, por causa dos inúmeros detritos na pista e os vários carros a serem retirados. Fico imaginando como devem estar felizes os chefes de equipe com vários carros danificados. De forma estranha, a FIA ainda queria mais e anunciou uma nova largada, quando a TV mostrava claramente que todas as 58 voltas tinham sido completadas.

Para sorte de Alonso, que com o toque recebido na primeira curva tinha saído da zona de pontuação, e alguns pilotos, como a terceira bandeira vermelha foi mostrada antes do primeiro setor ter sido completado, a largada tinha sido cancelada e por isso, os pilotos retornariam às posições de antes da largada. Claro, com exceção dos pilotos envolvidos em acidentes pelo Demolition Derby proporcionado pela terceira largada. Como os carros tinham que receber a bandeirada de qualquer jeito, já que terminar a corrida com os carros estacionados nos pits não ficaria bem para o espetáculo, a quarta relargada do dia foi dada apenas para Verstappen receber a bandeirada com o carro em movimento. Com a saída dos carros da Alpine e a punição à Sainz pelo toque em Alonso, vários carros que não pontuariam entraram na zona de pontos. A Aston Martin subiu para terceiro e quarto, ganhando bons pontos no Mundial de Construtores, Hulkenberg marcou seus primeiros pontos em seu retorno, a problemática McLaren pontuou com seus dois carros e Tsunoda saiu do zero. Pérez ainda salvou um quinto lugar num dia nada auspicioso para o chicano.

Com esses resultados, Max Verstappen já começa a abrir uma vantagem interessante em cima de Sergio Pérez, mostrando que falta ao ótimo piloto mexicano ‘eye of tiger’ para brigar pelo título, ainda mais com alguém como Max Verstappen, que não se importa em ser o FDP do paddock.

Mercedes, Aston Martin, Ferrari e até mesmo Alpine brigam logo a seguir, com Alonso mostrando sua magia com o terceiro pódio consecutivo e levando o bom carro da Aston Martin nas costas.

Aqui no GPTotal já foi falado várias vezes dos pilares esportivos da F1 e como alguns deles estão sendo atacados e outros já foram ao chão. A corrida de hoje mostrou que mesmo a F1 teimando em manter alguma esportividade, está difícil resistir à pessoas como Domenicalli e a chamada ‘Geração Drive to Suvirve’. Esses ataques contra a esportividade muitas vezes são sorrateiros, não sendo tão explícitos como em outras categorias.

O que a Liberty precisa equalizar é que a cada novo fã ávidos por ação, mesmo que de forma forçada, há também os velhos fãs, aqueles que gostam de corridas puras, sem maiores intervenções externas. Esse fã é a base dos 73 anos da F1, mas ele pode acabar bebericando num bar, relembrando quando a F1 era pura…

Abraços!

João Carlos Viana

JC Viana
JC Viana
Engenheiro Mecânico, vê corridas desde que se entende por gente. Escreve sobre F1 no tempo livre e torce pelo Ceará Sporting Club em tempo integral.

1 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    JC,

    perfeito a sua análise sobre a corrida.
    E incrivel como a sua analise da corrida tem tudo a ver com a coluna do Mario Salustiano na releitura do Conceito da melhor Vitória.
    Na coluna do Mario deixei um comentário a respeito do tanto de mimimi que tem na Formula 1 hoje em dia. Creio que o GP da Australia exemplifica mais do nunca esses mimimis.
    E para terminar o mimimi GP, o Verstappen ainda reclamou da ultrapassagem que Hamilton fez sobre ele. Aí eu pergunto: é proibido ultrapassar o Holandes?
    Conclusão: este regulamento esportivo em vigor na Formula 1 é uma merda.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *