Som e fúria

Micos brasileiros II
17/10/2008
Carta ao editor
12/12/2008

A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada.” A citação shakespeariana, de MacBeth, serve para emoldurar o que aconteceu na última curva, da última volta, da última corrida do Mundial de Pilotos de 2008. Décimo colocado no campeonato, tendo pontuado em apenas seis das dezoito corridas, com 25 pontos, o alemão Timo Glock era praticamente um nada. Um meio-de-pelotão, um esforçado piloto de uma equipe média, mordiscando posições aqui e ali, quase sempre beneficiando-se das sobras para subir (pouco) na tabela de classificação. Não seria nada diferente no GP do Brasil. Glock terminaria a corrida de Interlagos em um valoroso quarto lugar, graças principalmente à estratégia de duas paradas, enquanto todos os outros apostaram em três. Só que a opção de Glock – pneus para tempo seco – resultou em nada. Última volta, Glock perde 18 segundos para o quinto, Sebastian Vettel. E leva a ultrapassagem do compatriota, o que poderia significar nada, não fosse o fato de ser superado também por Lewis Hamilton. Glock e seu pneu na lona, dois nadas como tantos há em todas as corridas, na última curva, da última volta, arrancaram o título das mãos de Felipe Massa e o jogaram no colo do inglês.

Assim, a sangue quente, escrevendo na sala de imprensa do Autódromo de Interlagos, a idéia insinua-se na mente. Um lance de sorte. Injustiça. Imponderável. Como pode um Timo Glock, um nada no cenário da disputa pelo título, decidir a sorte do campeonato? Felipe Massa cruzou a linha de chegada campeão. Trinta e oito segundos depois, Hamilton cruzou a linha em quinto lugar, campeão. Entre uma cena e outra, o nada fez toda a diferença. Glock sucumbiu ao pneu desgastado na curva da Junção, a última curva antes da reta dos boxes.

Ainda que a decisão do campeonato tenha se dado de forma tão inusitada, como se narrada não pelo idiota de Shakespeare, mas por um roteirista maluco de Hollywwod, não é totalmente justo atribuir a Glock, e somente a ele, o frustrante destino de Felipe Massa e a consagração de Lewis Hamilton. Massa não perdeu o título apenas porque Glock escolheu a estratégia errada e ficou quase sem pneus na última volta. Massa perdeu o campeonato na Hungria, quando seu motor explodiu a três voltas do final. Perdeu em Cingapura, quando a Ferrari autorizou-lhe a saída do box com a mangueira de reabastecimento presa ao carro. Perdeu em Mônaco, quando a Ferrari errou na estratégia. Perdeu na Inglaterra, quando rodou seis vezes na pista molhada, ficando fora da zona de pontuação. Perdeu na Malásia, quando rodou e saiu da pista. Noves fora, Massa perdeu o campeonato principalmente pelos erros da Ferrari. Erros de uma equipe que não é a mesma Ferrari imbatível de anos atrás. A Ferrari, desde 2005, não é a melhor equipe da Fórmula 1. E aos que estranhem tal afirmação, um convite à reflexão: a Ferrari ganhou o Mundial de Construtores, no ano passado, pela desclassificação da McLaren, após o episódio da espionagem. E ganhou o Mundial de Pilotos porque a mesma McLaren preferiu competir como se fosse uma equipe bipartida, como duas equipes inimigas sob o mesmo teto – a McLaren de Alonso e a McLaren de Hamilton. Desde 2007, a McLaren tem um carro mais equilibrado, mais confiável e, ainda, uma habilidade maior para traçar estratégias eficientes.

Se é temerário dizer que Glock, e nada mais, determinou a derrota de Massa, também é inadequado dizer que o alemão, sozinho, construiu o título de Hamilton. O inglês não ganhou o título apenas na ultrapassagem sobre Glock, na última curva, da última volta. Hamilton ganhou o campeonato na Austrália, ao estrear com uma vitória segura em uma corrida conturbada. Ganhou com as vitórias sob chuva em Mônaco e na Inglaterra, e em outra corrida confusa, na Alemanha. Ganhou ao fazer uma corrida perfeita, sem adversários à frente, na China. Poderia ter ganho na Bélgica, não fosse o ímpeto de passar Kimi Raikkonen ao final da prova, envolvendo-se na mais polêmica manobra do ano, e sendo punido por isso. Poderia ter somado pontos que lhe facilitariam a vida no Japão, não tivesse feito uma largada desesperada, desastrada, levando outra punição e ficando fora da zona de pontos. Poderia ter conquistado um segundo lugar relativamente tranqüilo no Canadá, não fosse a vexatória batida na traseira de Raikkonen na saída do box. Hamilton errou e errou muito em 2008. A McLaren, por seu turno, foi eficiente todo o tempo. Não deixou o inglês na mão por nenhum tipo de quebra nem comprometeu o desempenho de Hamilton por conta de estratégias desastradas ou erros de procedimento.

Hamilton seguido por Trulli e Glock

A McLaren foi campeã, com Hamilton, apesar dos erros do inglês. Felipe Massa conquistou mais vitórias mas perdeu o título, fundamentalmente, pelos erros da Ferrari.

Não se levanta, aqui, a hipótese de que a Ferrari, deliberadamente, gaste seu tempo, recursos e energias para prejudicar brasileiros. A Ferrari simplesmente não é, hoje, a mesma equipe imbatível que foi nos tempos de Schumacher. Felipe Massa, irretocável em seu final de semana no Brasil, em nenhum momento aceitou vestir a pele do vira-lata. “Sei ganhar, como também sei perder”, disse logo após a corrida, para depois agradecer ao time pelo empenho de todos. Não era apenas ali, em Interlagos, que o campeonato seria ganho ou perdido. Desde que chegou ao Brasil, vindo do oriente, Massa bateu na mesma tecla – vamos fazer a nossa parte, mas infelizmente não depende só de nós. Ele estava consciente de que, a ele, restava apenas lutar pela vitória. O título viria se outros fatores contribuíssem. Ele pode até ter pensado em uma quebra de Hamilton, em mais uma manobra afoita do inglês, na falta de tranqüilidade de Lewis para agir sob pressão. Mas não deve ter pensado, nem por um momento, que do piso molhado de Interlagos emergisse a face obscura de um ator coadjuvante, alçado na bruma de novembro à condição de personagem principal. Glock, décimo colocado no Mundial. Fiel da balança. Um quarto lugar tornado sexto, cinco pontos minguados em três. Na última curva, da última volta. Um pneu. Um erro. Nada.

Alessandra Alves
Alessandra Alves
Editora da LetraDelta e comentarista na Rádio Bandeirantes desde 2008. Acompanha automobilismo desde 83, embalada pelo bi de Piquet e pelo título de Senna na F3.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *