E lá se foi a temporada 2019 da Fórmula 1, a qual, por vários motivos, acabei dispensando pouca atenção, uma hora dessas vou ter de me entender com isso…
O que retive da temporada? Uma imagem que só vi dias depois de ocorrida, pois preferi dormir durante o GP do Japão: Charles Leclerc seguindo, impávido, pela 130R enquanto segurava com a mão direita o espelhinho esquerdo do seu Ferrari, bambo após não-lembro-mais-o-que-aconteceu-para-deixá-lo-assim.
É verdade que, solto, o espelhinho podia provocar uma tragédia, até mesmo atingir o próprio Leclerc. Mas como não passou pela cabeça do monegasco levantar o pé, vimos aquela situação inusitada, humorística até.
Louvo aqui o desprendimento de Leclerc e me ocorreu que Gerhard Berger também mexia no espelhinho segundos antes de perder um pedaço da asa dianteira e se estatelar no muro da Tamburello, San Marino 89, transformando seu Ferrari numa assustadora bola de fogo. Berger, felizmente, escapou com queimaduras leves.
Voltando a Leclerc, espantou-me a docilidade do Ferrari, a ponto de poder ser conduzido apenas com a mão esquerda na provavelmente mais rápida curva da Fórmula 1 atual.
Eu já tinha manifestado o mesmo assombro ao ver o camera car de Lewis Hamilton em Paul Ricard 2018, em sua volta pela pole do GP, média de 233 km/h (Veja o vídeo em minha coluna “Madeleines”).
Lá, como em Suzuka, só pode me ocorrer um “é muito fácil” dirigir estes carros, mesmo sendo a potência deles provavelmente a maior jamais atingida na categoria. Ainda assim, podem ser conduzidos como um carrinho de parque de diversões, tal o apuro aerodinâmico, a qualidade dos pneus e da suspensão e a excelência no preparo, tudo resultando numa aderência granítica, o carro quase que percorrendo sozinho as curvas mais velozes.
Espiando de fora, não sujeitos às forças da gravidade nem às exigências de automatismo milimétrico nas reações (no caso de Lewis, é possível ver algumas microcorreções ao volante para manter o carro na linha), nos sentimos capazes de conduzir os Mercedes e os Ferrari. Certamente não nos sentíamos capazes de pilotar, muito menos com uma mão, os Williams e McLaren turbo dos anos 80 ou os Lotus e Tyrrel dos anos 70. Ali, as exigências pareciam sobre-humanas, demandando coragem, aptidão e masculinidade que, agora, parecem ter se tornado supérfluas.
Tornaram-se mesmo? Vemos, depois de mais de um século, um automobilismo esportivo menos másculo ou, visto pelo ângulo oposto, mais feminino?
Masculinidade é o que não falta em Ford vs Ferrari, o filme que relata a guerra entre as duas gigantes em Le Mans 66. Masculinidade tóxica, diga-se, que se socorre amiúde de martelos e socos na cara para resolver questões triviais e contra a qual tudo o que uma mulher podia fazer eram beicinhos, ofertas de cerveja e conforto após uma briga de rua e lágrimas disfarçadas de preocupação por homens de cabeça tão oca e tão dominados pela testosterona.
O filme é um amontoado de clichês masculinos, entre simplesmente chucros ou abertamente hilários, como os olhares enviesados entre os pilotos, quando ultrapassam uns aos outros. Assisti ao filme ao lado de Roberto Agresti e perguntei a ele se encarava desta forma os seus rivais nas retas de Interlagos, a bordo do seu galante Puma na categoria D2C. Ele desconversou…
Os clichês do filme têm, porém, a virtude de expor esta faceta pouco falada do automobilismo, uma atividade estritamente masculina, no mal sentido. Conduzir um carro era algo bruto, um sucedâneo mecanizado dos rodeios, dos duelos, das justas medievais. Músculos, coragem, desprendimento e pouca higiene pessoal eram indissociáveis do ato de domar um carro como o Ford GT 40.
Não é isso o que transparece na Fórmula 1 atual: sistemas eletrônicos abundantes, ordens de box chegando todo o tempo pelos fones de ouvido, tatuagens, cortes de cabelo, roupas fashion, contratos milimétricos – e carros potentes conduzidos com uma só mão…
Será – tenho me perguntado – que esta inversão de valores tão patente tem algo a ver com a progressiva perda de interesse dos mais jovens pela Fórmula 1, potencializada por um momento em que tanto se condena a masculinidade e se valoriza o feminino?
Ford vs Ferrari tem boas cenas de corridas, uma fotografia primorosa e a exibição de alguns dos mais belos carros jamais construídos, inclusive expostos em metal brilhante, tão típico dos anos 60, o mesmo metal brilhante do Starship, o foguete que Elon Musk está construindo agora e que me remete, não sei bem porque, a este universo masculino do passado.
Li recentemente, deliciado, uma série de três livros de ficção cientifica escritos pelo chinês Cixin Liu, O Problema dos Três Corpos, A Floresta Sombria e O Fim da Morte. Um dos personagens da trilogia hiberna por uns cem anos e acorda lá pelo ano 2 200, se não me falha a memória. Quando desperta, vê que os homens ao seu redor adquiriram hábitos de vestimenta e comportamento tipicamente femininos. Isso, explica o autor, foi saudado como algo positivo para a humanidade, a masculinidade sendo progressivamente trocada pela feminilidade, uma ideia com a qual, em sua essência, concordo.
A masculinidade pode ter sido importante para nos tirar das cavernas e nos trazer até aqui, posto que somos o que somos em boa parte por causa da violência inata aos homens. Mas talvez seja hora da humanidade desligar esta chave e deixar os sentimentos femininos dominar.
Paciência se isso nos custar a Fórmula 1, o automobilismo e aqueles lindos carros feitos em metal brilhante.
Com esta coluna, GPTotal encerra as suas atividades neste atribulado 2019. Retornamos em 13 de janeiro com republicações até dia 27, quando voltamos com colunas inéditas.
Bom Natal a todos, um Feliz 2020!
Eduardo Correa
1 Comments
Amigos,
o GP Total mais uma vez deu um show de bola em 2019.
Desejo a todos um feliz Natal e próspero 2010.
Salve o GP Total
Fernando Marques
Niterói RJ