Território desconhecido

Fangio e sua vitória favorita
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Já contei essa história antes. Na edição de 1991 das 500 Milhas de Indianápolis tivemos nas voltas finais uma épica batalha de Michael Andretti, a bordo de sua Lola da Newman-Haas, contra Rick Mears e sua Penske.

Na relargada da volta 187, Andretti – que viria a ser o campeão da temporada e aliava velocidade e agressividade em níveis altíssimos – contou com ajuda de seu primo John para pegar vácuo e executar uma ultrapassagem perfeita, por fora, para surpreender Mears e tomar a liderança na curva 1. Manobra digna de aplausos.

Na volta seguinte, porém, algo de especial iria acontecer no Indianapolis Motor Speedway. Desta vez o caçador era Mears e ninguém é chamado de Rei dos Ovais à toa. Talvez ainda estivesse em sua mente a derrota para Gordon Johncock em 1982, naquela que havia sido até então a Indy 500 mais apertada da história. E resolveu que em 1991 tudo ia ser diferente.

Sua confiança, precisão e determinação na hora do ataque resultaram em uma manobra também por fora, na curva 1, mas bastante assustadora em relação ao giro anterior.

Michael entrou bastante rápido… mas Mears, mesmo com um carro com subviragem, ganhou tanta força por fora, saindo tão lançado, que o próprio rival, quase três décadas depois, afirma não saber de onde o rival tirou tanta velocidade. Se a manobra de Andretti merecia aplausos, a de Mears, que assumiu riscos inacreditáveis, era digna de uma ovação em pé até o baixar da bandeirada. Foi uma manobra mais que perfeita – e definitiva para Rick conseguir sua quarta e última vitória no principal palco do esporte a motor da América.

Mears conta que, após a vitória, analisou os dados de telemetria. E em nenhuma das 800 curvas que contornou naquele dia ele foi tão rápido quanto no momento da ultrapassagem, numa volta a 228 milhas por hora – uma coisa em torno de 367 km/h. E afirmou que entrou num território desconhecido ao executar aquela manobra, respirando fundo e esperando chegar ao outro lado.

Eis que, após essa longa introdução, chegamos ao que quero debater: o território desconhecido.

Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Colombo, Fernão de Magalhães, Thomas Cook, Irmãos Wright e Santos Dumont, Robert Peary, Roald Amundsen (e Robert Scott), Edmund Hillary, Chuck Yeager, Don Walsh e Jacques Piccard, Yuri Gagarin, Neil Armstrong, entre tantos nomes… o que eles têm em comum? Viraram nomes históricos por explorarem territórios desconhecidos.

No esporte a motor, mostras notórias de exploração do tal território desconhecido são famosas. E isto pode acontecer tanto em uma manobra de ultrapassagem isolada. Como no caso de Mears, quanto em um conjunto de voltas ou numa obra completa, o todo de uma corrida.

O que Fangio fez em Nürburgring, em 1957, se encaixa neste último exemplo – ele mesmo conta que começou a usar marchas mais altas nas curvas, numa época em que, se você errasse, a chance de morrer era consideravelmente alta – tanto que disse que jamais faria aquilo novamente.

Clark em Monza 67 teve o mesmo brilho, numa performance assustadora na qual foi uma enorme injustiça não ter vencido. Senna, nos treinos de Mônaco 88, tal como naquela ultrapassagem avassaladora em Wendlinger, na tão aclamada primeira volta de Donington Park, também fazem parte da lista, indiscutivelmente.

Como não dizer que Piquet entrou literalmente de lado, nas quatro rodas, em território desconhecido, para superar Senna por fora em Hungaroring 86? E Mansell sobre Berger, também por fora, na Peraltada (que Deus a tenha) do México, em 1990?O mesmo Mansell provaria, um ano depois, que era possível fazer ultrapassagem depois do túnel de Mônaco, e sua vítima foi ninguém menos que Alain Prost.

Jean Pierre Jarier resolveu fazer as curvas 1 e 2 da antiga Interlagos de pé cravado com sua Shadow: uma loucura que o transformou num dos maiores especialistas daquela saudosa pista. Schumacher foi chamado pelo rádio por Ross Brawn para fazer dezenas de voltas seguidas em ritmo de qualificação, numa tática arriscada de um pit stop a mais. Resultado? Vitória surpreendente na Hungria, em 1998.

Em todos os exemplos – e existem muitos outros; peço ajuda dos amigos leitores para elencar mais – pilotos assumiram riscos e encontraram aderência e velocidade para além do que se supunha, numa mistura perfeita de precisão e ousadia.É o tipo de situação pra se guardar com carinho na memória de quem assistiu ou leu sobre isso.

Por vezes tentar explorar o território desconhecido te transforma num Ícaro. Stefan Bellof estabeleceu o recorde do velho Nürburgring em 1983 nos treinos para destruir seu Rothmans Porsche 956 em corrida, quando liderava e, todos sabemos, estava acelerando forte. Senna fez praticamente o mesmo em Mônaco 88, só que bateu porque baixou a guarda. Nas duas ocasiões os pilotos foram do céu ao inferno sem escalas. Até os grandes podem tombar diante dela…

Um dos fatores que complicam o esporte a motor da atualidade é que essa janela para o território desconhecido está cada vez mais estreita, por uma somatória de motivos.

Em seus profundos estudos sobre conduzir um carro de competição, meu irmão Márcio Madeira elenca em três os estágios básicos: estimativaexperimentação e repetição. São passos auto-explicáveis, não há muito o que falar deles. No automobilismo atual, o estágio de repetição é alcançado de maneira cada vez mais rápida, enquanto o de experimentação está cada vez menor – e é lá que está a mágica do território desconhecido.

Para complicar ainda mais este cenário, tiveram a “brilhante” ideia de criar áreas de escape asfaltadas, em que os pilotos podem experimentar facilmente os limites, já que na eventualidade de exagerar na dose o retorno para a pista costuma ser bastante tranquilo. DRS? Sim, ele é um dispositivo que profana a busca.

O alicerce do esporte a motor é a busca por superação de limites, algo que vale até hoje, mesmo com o desvirtuamento de vários dos fundamentos do esporte. E quando falamos em limite, um dos principais a serem alcançados é o limite da aderência, que em conjunto com algumas outras variáveis, resultam em quem contorna uma determinada curva da maneira mais rápida e eficiente. Por vezes o limite hoje é menos que um décimo de segundo para uma volta inteira.

A questão aqui é que, sim, o objetivo ainda é alcançar os limites, mas convido a todos a pensarem no caminho em que isso é conseguido atualmente.

Hoje, especialmente quando o assunto é Fórmula 1, os engenheiros e pilotos conseguem simular com precisão satisfatória o que no passado seriaalgo a se explorar, tudo isso em carros que têm um comportamento muito mais previsível e neutro, apesar das incríveis acelerações envolvidas. Sempre haverá pilotos destacados, mas há um nivelamento evidente. Alonso contra Petrov em Abu Dhabi 2010 já é exemplo suficiente.

Não há espaço para mudanças radicais de configurações e as próprias simulações em computação dizem ao piloto que marcha usar e até mesmo quando frear, tudo somado às inúmeras horas em que pilotos passam em simuladores de corrida, aprendendo cada pentelhésimo de segundo de cada trecho. Alcança-se o limite daquele conjunto carro-piloto com mais facilidade e hoje a maior variável em jogo, ainda que burramente limitada, é a estratégia das trocas de pneus, que continuam a ditar a dinâmica das corridas.

Quando pensamos em entrar no território desconhecido é que conseguimos entender por que corridas com chuva se tornam tão atraentes. Elas demandam muito mais tempo de experimentação do que de tempo de repetição, dadas as condições variadas de aderência que os pilotos enfrentam. O longo Canadá 2011 foi maravilhoso por isto.

Dentro da filosofia de mudanças mais drásticas de regulamento a cada sete anos, a F1 se encaminha para muitas novidades para 2021. O carro, entre várias modificações aerodinâmicas, ganhará mais destaque para a geração de efeito solo, a fim de jogar ar menos turbulento para o carro de trás, na primeira vez em que a F1 faz estudos sérios a respeito.

A ideia é a de permitir que competidores consigam andar mais próximos entre si, com melhor uso do vácuo para as ultrapassagens. É uma premissa auspiciosa, tende a ser bom para a F1, até porque a solução eliminaria a necessidade do famigerado DRS.

Finalmente há uma mudança de pensamento. Até então dirigentes ficaram bitolados na ideia de que era necessário fazer a F1 voltar a ter ultrapassagens. O episódio Alonso x Petrov foi decisivo para a criação do DRS, que insisto dizer se tratar de um crime contra a isonomia esportiva. Finalmente acordaram e perceberam que não se trata de uma questão de quantidade, mas sim de qualidade.

Eu, aqui no meu canto, fico apenas na torcida para que essa grande mudança tenha como feliz efeito colateral uma maior abertura na janela do território desconhecido, hoje tão estreita.Os momentos proporcionados são aqueles que nos arrebatam, aqueles que merecem destaque. Já falei uma vez e repito: é de emoção que a gente vive quando olha para o esporte.

Um ótimo 2020 a todos! E um 2021 também!

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

4 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    show de bola a sua coluna.


    Rubergil,

    Zico não ganhou uma copa do Mundo, azar da Copa

    Bom natal e que todos tenham um grande ano de 201!!!

  2. wladimir disse:

    Boa noite, Lucas. Sempre se superando. Outro artigo excepcional!! Mas estou chateado porque até hoje você não concluiu a saga “Wing Wars”. Todos os pilotos citados foram brilhantes ao adentrar território desconhecido. Mas Rick Mears foi o melhor pois ainda arriscou tudo com uma séria lesão no pé direito.

  3. Rubergil Jr disse:

    Que foto linda essa primeira. Dá vontade de emoldurar e pendurar na parede… Vou falar uma coisa: o Michael Andretti nunca ter ganho as 500 milhas é mais ou menos como Zico nunca ter ganhado a Copa do Mundo.

    E a coluna em si é muito boa. Lembrei um outro exemplo de pilotagem além do limite: Senna segurando Mansell nas freadas do túnel em Monaco 1992, especialmente a penúltima volta onde ele põe o carro DE LADO pra frear.

    E quem terá sido o primeiro corajoso/louco a fazer a Eau Rouge de pé embaixo? Dando uma Googleada, vi que a primeira vez que ela foi feita “flat out” foi em 2000, mas não há registros de quem. Provavelmente todos já tinham testado no simulador e feito na pista.

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