Luis Fernando Ramos |
Pilotos são verdadeiros heróis. Guerreiros de uma batalha contra o tempo, onde todas as previsãos estão contra si. Mestres em bailar sobre a tênue linha que separa uma curva perfeita de uma escapada vergonhosa. Sobre-humanos ao desafiar fogo e morte pela glória de ser o vencedor. Gladiadores que bradam suas espadas sobre o asfalto e enfrentam verdadeiros leões sobre quatro rodas.
Era assim que eu via os pilotos de Fórmula 1 na minha infância. Claro que ficava admirado ao ver no cinema o Super-Homem fazer o mundo girar ao contrário para voltar o tempo, mas sabia que era tudo fantasia. Por isso que meu sangue fervia ao ver as derrapadas controladas de Gilles Villeneuve. Sabia que aquilo era real e meu coração trepidava ao vê-lo no limite de uma brincadeira perigosa, como se aquele sujeito franzino que eu vira antes entrar no cockpit tivesse pele de titânio e visão de raio-x.
O tempo passou e o olhar infantil foi ganhando embasamento. Pude entender melhor como funcionava tudo, como os carros foram desenvolvendo segurança e se transformando em verdadeiras armaduras, o que aumentava cada vez mais as peripécias de seus comandantes.
Meu ofício de jornalista me deu a oportunidade de ter um contato maior com estas figuras controversas que são os pilotos da Fórmula 1. Falo aqui de geração de Michael Schumacher para frente, que fique bem claro. A F1 dos milhões, da ajuda eletrônica de pilotagem e dos intermináveis e repetitivos compromissos com mídia e patrocinadores.
Pilotos são gente desprezível. Mimados por família, amigos e mesmo desconhecidos a vida inteira, costumam ser infantis mesmo quando a ocasião sugere o contrário. Orgulhosos, arrogantes, mulherengos, traíras. Os fãs são normalmente um estorvo, nunca um motivo de alegria. Falsos, desbocados, mal-educados e, quase sem exceções, sujeitos de formação cultural e pessoal limitadíssimas.
Antes que me crucifiquem, a visão acima é geral e superficial. Comigo, alguém que está ali trabalhando como eles, os casos de antipatia irremediável foram minoria até agora. Especialmente entre os brasileiros, há muita gente simpática. Mas daí para extremamente amigáveis e leais há um enorme abismo.
Sou da opinião que o dinheiro e os carros praticamente indestrutíveis causaram mudanças irremediáveis na personalidade dos astros do show. Antes havia um enorme clima de companheirismo, até porque o risco era altíssimo e o colega que tomou café da manhã com você podia morrer na próxima sessão. Hoje a batalha já começa muito antes da largada, no terror psicológico, em saber que o menor erro vai deixar patrocinadores insatisfeitos, engenheiros de cara fechada e adversários atirando palavras cortantes e negativas.
Mas, graças a Deus, o limite continua lá e continua altíssimo. Ainda me deslumbro como antes ao ver na pista a excelência de um Michael Schumacher, o espírito de luta de um Kimi Raikkonen e o arrojo de um Juan Pablo Montoya. Ok, como pessoas devem ser uns caras chatos. Mas não será com eles que vou degustar minha cervejinha no final do dia. Então não me importa a mínima qual é a do sujeito que se esconde atrás daquele capacete.
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Não tive a chance de conviver com os pilotos brasileiros da “geração de ouro” da Fórmula 1. Não sei dizer se tenho inveja de quem os conhece, assim fica na memória os feitos deslumbrantes nas pistas e no esquecimento as atitudes controversas fora delas.
Mas confesso que fiquei louco de vontade em entrar na máquina do tempo ao entrevistar, no último GP da Áustria, o inglês John Watson, que estava em Zeltweg como um dos homenageados no jubileu de prata do evento. Foi um papo rápido com alguém surpreendentemente atencioso e com pensamentos concisos. Conversamos sobre os quatro brasileiros vencedores de corridas com quem ele conviveu, e pincei alguns de seus pensamentos abaixo:
Emerson Fittipaldi – “Uma de minhas primeiras recordações como piloto de Fórmula 1 foi em Monte Carlo, em 1974, quando marquei meu primeiro ponto, com um 6° lugar e Emerson foi o 5°. Tivemos uma pequena briga naquele corrida, o que foi incrível para mim afinal se tratava de um campeão do mundo. Lembro também que ele decidiu fazer seu próprio negócio no fim de 75 com a Copersucar-Ford, o que foi um passo muito ambicioso e corajoso. Acho que é uma decisão difícil para um piloto se tornar ao mesmo tempo proprietário de equipe, piloto, chefe de equipe e ainda procurar patrocínio. Depois da Fórmula 1, ele ainda conseguiu sucesso na América dirigindo na Fórmula Indy e vencendo as 500 Milhas de Indianápolis. Uma carreira fantástica e também um grande embaixador, tanto para o esporte a motor como para o Brasil. Emerson era alguém da minha geração então éramos simplesmente amigos, estávamos sempre trabalhando pelos circuitos e era uma amizade interessante, típica daquela época.”
José Carlos Pace – “Carlos tinha uma personalidade diferente do Emerson. Não em termos de habilidade, que era fantástica e se tratava de um grande piloto. Mas ele era um brasileiro ainda mais relaxado que Emerson. Só fomos colegas de equipe por um tempo curto. Era um cara para quem o esporte não tinha política, essas bobagens de hoje. Era só uma pessoa legal, alguém gostoso de conversar. Carlos era muito popular na Brabham, amigo muito próximo de Bernie Ecclestone, e me lembro de estar em Brands Hatch quando chegou a notícia de sua morte que ele tinha morrido num acidente de avião. Foi um choque muito grande para toda a equipe, alguém abaixou o portão da garagem e ficamos vivendo um momento muito, muito triste.”
Nelson Piquet – “Não posso dizer que realmente conheci o Nelson. Ele era da nova geração de pilotos e eu tinha mais contato com o pessoal da minha geração. Era uma pessoa muito reservada e às vezes difícil de entender. Eu achava este lado meio fechado algo estranho para um brasileiro, mas ele também era um menino muito, muito levado! Como piloto, obviamente foi fantástico, um tricampeão. Acho que alguns destes títulos são injustamente menosprezados. Dizem que ele tinha o melhor carro, mas é o mesmo que acontece com Michael Schumacher e a Ferrari. A razão pela qual Nelson foi bem-sucedido residia na sua relação fantástica dentro da Brabham, O tipo de química que existia entre Gordon Murray, Nelson, membros da equipe e Bernie é o que torna um piloto tão bem-sucedido, na minha opinião.”
Ayrton Senna – “Quando eu era criança, meu herói era Juan Manuel Fangio, pela maneira que era capaz de vencer tantas corridas. Quando Ayrton chegou na Fórmula 1, eu o conheci um pouco através de amigos e ele tinha algo que eu nunca havia visto em nenhum outro piloto. Havia a força mental, a boa preparação física, mas tinha algum outro fator que eu não sei o que era. Eu sei que ele dizia que era sua fé profunda em Deus e que ele sentia que Deus estava ali o protegendo, mas tinha algo mais. A maneira física com que ele era capaz de pilotar um carro, as poles que ele fazia – especialmente em carros turbo –, vê-lo numa volta de classificação, tudo isso formava uma das visões mais fantásticas que já vi na Fórmula 1. Senna fazia o carro dançar. Havia comprometimento total, auto-confiança, habilidade e orgulho. Ele era um homem incrivelmente complexo, mas ao mesmo tempo uma pessoa incrível. Todo que mundo que conheceu Ayrton pode se dizer um privilegiado.”
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Interessante ver uma opinião mais ou menos neutra sobre a personalidade dos quatro maiores pilotos brasileiros na história da Fórmula 1. Coloco com tranqüilidade José Carlos Pace acima de Rubens Barrichello porque dez entre dez pessoas que viram o Moco correr compartilham da minha opinião.
Para mim, trabalhar no circo da Fórmula 1 hoje é como ser um repórter em Gotham City na minha infância. E para o bem do exercício profissional, é sempre bom saber mais sobre o lado humano destes quatro brasileiros, heróis pelo que fizeram nas pistas, mas tão cheios de coisas boas e coisas ruins como você e eu.
(Luis Fernando Ramos é jornalista e escreve quinzenalmente sobre automobilismo no GPTotal. Iniciou sua carreira no Jornal da Tarde, pelo qual participou da cobertura de diversas corridas de Fórmula 1, CART e Motovelocidade no Brasil. Foi o pesquisador de textos e imagens do livro “História do Automobilismo Brasileiro” e há quatro anos é o coordenador editorial do Anuário AutoMotor Esporte, ambas publicações de Reginaldo Leme.)