Escrevo essas linhas de dentro de um ônibus, enquanto cruzo a BR-040 voltando de Brasília para o Rio de Janeiro, ainda sob o impacto de ter passado ontem, dia 28 de abril, aproximadamente quatro horas em companhia de Nelson Piquet em sua famosa garagem na Capital Federal. Na primeira metade deste encontro estive sozinho com o tricampeão, e na segunda metade recebi a preciosa companhia de Vinicius Chaer, que já emprestou sua sensibilidade a vários textos aqui no GPtotal, e também de seu compadre, o médico Leonardo Sara da Silva, que tive a satisfação de conhecer no local.
Não visitei Nelson para entrevistá-lo, nem em razão de qualquer compromisso profissional. Fui simplesmente porque a fase de minha vida não é das mais felizes e quis me dar um presente, quis estar na companhia de alguém que se tornou um amigo e que tem muitas histórias legais para contar, e experiências para dividir. Não levei equipamento de gravação, portanto, e a maior parte das coisas que ele me disse ficaram guardadas apenas em minha mente. Mas, enquanto vejo a paisagem mudar pela janela à minha esquerda, relembro o tanto de informação que absorvi, e me dou conta de que preciso registrar e compartilhar ao menos algumas delas, para que não se percam no tempo.
De imediato, é muito bom constatar que Nelson está bem. A cabeça segue boa, as lembranças das histórias mais marcantes permanecem nítidas e com os detalhes preservados. O humor também continua o mesmo, assim como o desapego material e o coração grande e generoso. Nelson definitivamente não tem a menor noção do tamanho da sombra que projeta, ou simplesmente não se interessa por isso. Estar com ele é estar com um amigo como qualquer outro, que por qualquer motivo venceu três campeonatos mundiais de maneiras absolutamente distintas, protagonizou alguns dos momentos e episódios mais elevados do esporte a motor, e mais tarde usou as mesmas qualidades para prosperar como empresário e compor aquele que, muito provavelmente, é o espaço mais precioso dedicado a carros, motos, e memorabilia automobilística no Brasil inteiro.
De fato, sua simplicidade é tão grande, que volta e meia é preciso recordar a si mesmo quem, de fato, é aquela pessoa à sua frente.
O uber me deixou no ponto errado, ainda que perto da entrada de sua casa. Eu iria a pé, mas Nelson se ofereceu para me buscar. O local onde eu estava era cercado por um alto muro, de tal forma que eu não podia ver os carros que passavam no asfalto logo ao lado. Alguns minutos depois, no entanto, ouvi um ronco absolutamente diferente de tudo que circule habitualmente pelas ruas, e na mesma hora soube que ele estava chegando. Alguns segundos depois surge um lindo Mutang vermelho, tendo ao volante um dos maiores pilotos de todos os tempos. E estava ali para me buscar.
Por um momento imaginei o que o Márcio de 20 ou 25 anos de idade sentiria numa situação como essa, ou se alguém lhe dissesse que esse tipo de coisa aconteceria no futuro.
Capacetes
Quando o questionei a respeito da utilização de um capacete “especial para classificações”, mais leve (e frágil) que os demais, veio uma resposta surpreendente.
“Não só para classificações. Os capacetes eram muito pesados, e eu fiz praticamente minha carreira inteira na Fórmula 1 usando capacete irregular. No início eu cheguei a os raspar, para que ficassem mais leves.”
E também falou sobre a pintura. “Não foi nada planejado. Um amigo de Brasília fez o desenho original, com as três gotas em laranja e a faixa preta, quanto eu ainda usava o nome escrito de forma errada para esconder do meu pai que estava correndo. Depois meu pai faleceu e eu falei com o pessoal da Volks e corrigi o nome, e aí mantive o sobrenome de minha mãe, que já vinha utilizando. Muitas vezes, no início da carreira, eu mesmo pintava os capacetes, e cometi alguns erros, como trocar do laranja para o vermelho, e uma vez, na Itália, esqueci de isolar a faixa preta e acabei pintando de vermelho. O resultado final foi surgindo assim, sem planejamento.”
Preparação física
“Eu era atleta, jogava tênis, corria muito bem. Em meus tempos de escola sempre vencia as corridas de 100, 400 e 1.500 metros. Apenas nos cinco mil metros havia uma rapaz que sempre ganhava de mim. Mas eu tinha um ótimo condicionamento físico sim.”
Patrocínio de Arno e Brastemp
A história de que o fundamental patrocínio de Arno e Brastemp surgiu a partir de contatos estabelecidos em partidas de tênis no Guarujá, em 1976 é razoavelmente conhecida. Nelson todavia, me contou que as dificuldades técnicas para que conseguisse divulgar seus resultados em 1977 eram enormes, e que ao fim do ano executivos o chamaram para uma reunião e educadamente disseram que o retorno não havia compensado – o que poderia ter encerrado ali mesmo sua carreira internacional.
“Que pena, porque neste ano vou vencer dez corridas”, respondeu Piquet, com muita confiança.
O patrocínio em questão girava em torno dos 40 mil dólares, ao que um dos executivos respondeu: “Dez corridas, é? Quatro mil dólares por vitória?”
Provavelmente o tal executivo estava apenas pensando alto, mas Nelson farejou ali a oportunidade de que precisava. Rapidamente, antes que qualquer considerações pudesse ser feita, levantou-se e estendeu a mão para sacramentar o acordo. E assim foi feito, ele receberia 4 mil dólares por cada vitória na F3 Britânica, tendo negociado um adiantamento equivalente a duas vitórias. E o resto é história.
“Venci 14 corridas naquele ano”, completou o tricampeão, com um sorriso no rosto.
Indianápolis
Um dos temas mais legais de nossa conversa girou em torno de Indianápolis. Ponderei, logo após uma pergunta feita por Chaer, que Nelson havia estreado na Brickyard justamente no pior ano possível, 1992, quando a combinação entre meteorologia, pneus e velocidade dos carros rendeu muitos acidentes sérios. Mas Nelson, honesto como sempre, logo me cortou.
“Se eu não tivesse batido naquele dia, ia bater em algum outro. A verdade é que eu não respeitei Indianápolis.”
“Eu adorei aquela pista. Era muito legal ver como o acerto do carro mudava ao longo do dia conforme a temperatura subia e descia, e eu sempre fui bom nisso, era bastante sensível para esse tipo de coisa. Eu estava andando muito forte lá, fazendo tudo de pé embaixo, já na terceira volta de cada saída eu estava andando no limite. Aquilo era fácil para mim, eu estava acostumado a uma pilotagem muito mais difícil na Fórmula 1. Ali era tudo de pé cravado. No ano seguinte eu voltei e continuei enfiando o pé.”
Sobre o acidente, Nelson explicou que surgiu a luz amarela indicando que os pilotos deveriam reduzir a velocidade, e como ele já estava completando a volta, entre as curvas 3 e 4, quis retornar aos boxes sem precisar dar mais um giro. Ao tirar o pé do acelerador, já em curva, o carro rodou de uma vez só, e não havia meios de o controlar.
Outro relato interessante foi a respeito de como sua mente criativa já estava trabalhando em Indianápolis, sendo uma grande pena que o acidente tenha ocorrido antes que pudéssemos ver até onde sua engenhosidade poderia levá-lo.
“Os carros em Indianápolis não tinham diferencial. Em vez disso eles usavam uma regulagem assimétrica, inclusive com pneus maiores no lado externo, de forma que na reta o piloto precisava compensar no volante para manter o carro reto. Eu olhei para aquilo e pensei em todo o tempo que estava perdendo nas retas, e já havia determinado que ia instalar um diferencial no dia seguinte.”
É evidente que a pista de Indianápolis só é simples na aparência, e que há muito a se aprender e respeitar, como o próprio Nelson logo aprendeu e foi capaz de reconhecer. Ainda assim, parece óbvio que sua experiência como maior test driver que a Fórmula 1 já viu teria provavelmente muito a acrescentar ao desenvolvimento dos carros, não sendo nada difícil concluir que Piquet tinha potencial mais que suficiente para se tornar um piloto de enorme sucesso na Indy, inclusive nos ovais. Curiosamente, talvez sua história por lá tenha sido curta justamente em razão da empolgação que esta perspectiva lhe causou, fazendo a curva de aprendizado parecer menor do que de fato era.
Espírito criativo
Dar atenção a Nelson Piquet é concluir que ele provavelmente teria obtido sucesso em qualquer área a qual se dedicasse, como de fato ocorreu nas pistas e nos negócios, por uma série de razões.
A principal delas, contudo, parece ser a falta de qualquer hesitação, de qualquer burocracia entre ter uma boa ideia e buscar os meios para aplicá-la. Foi assim que ele trocou de chassi em meio à temporada da Fórmula 3 em 1977, foi assim que concebeu meios de aquecer seu carro e seus pneus na Fórmula 3 britânica, ou desenvolveu uma forma de alterar o balanço dos freios ou a regulagem da barra estabilizadora de dentro do cockpit, entre tantas outras invenções. Foi assim também que transformou uma boa ideia – uma daquelas que empresários mais ambiciosos costumam chamar de “unicórnios”, ideias que podem render algo na casa do bilhão – numa empresa que segue prosperando após mais de 30 anos, em meio a inúmeras mudanças no cenário tecnológico.
Em sua coleção há um exemplo que parece sintetizar tudo isso. Em meio a tantas joias da indústria há uma moto visivelmente modificada, a ponto de não ser possível, somente ao olhar, identificar que um dia já foi um exemplar convencional da mítica Amazonas, de motor Volkswagen. Nelson naturalmente ampliou seu desempenho até o limite do possível, tendo hoje algo em torno de 200 cavalos e um som tão brutal que eu não seria capaz de descrever aqui.
O mais curioso, no entanto, é notar que Piquet a anexou a um side car, mas quando o serviço ficou pronto não gostou de seu comportamento dinâmico. “Parecia um caminhão, não era fácil de virar, não estava legal.”
A característica provavelmente seja própria de qualquer side car, uma vez que se torna uma moto que já não pode mais ser inclinada para fazer curvas, o que é em alguma medida antinatural.
Nelson, todavia, não estava satisfeito. E então pensou, pensou, e desenvolveu um engate – certamente único no mundo – que lhe permite fixar ou liberar a angulação da moto em relação ao carrinho lateral. Agora, ao girar de uma trava, ele pode conduzir o side car de maneira convencional, ou pode, como prefere, conduzi-lo inclinando a moto a cada curva.
Enquanto ele me mostrava sua invenção eu via, à minha frente, o mesmo espírito que o levou a conquistar três campeonatos mundiais em contextos tão distintos entre si. Nada poderia deter alguém com tamanha capacidade criativa, num tempo em que os regulamentos ainda não eram tão restritivos quanto os atuais.
Houve muitas outras histórias, como o momento em que Paul Rosche chegou a Monza trazendo um novo modelo de turbo que havia encomendado à Holset, e que logo nos primeiros metros após ser instalado deu a Nelson a certeza de que seria campeão em 1983; ou a forma como descontou mais de 40 segundos(!) na última volta da corrida que venceu sob chuva no traçado completo de Nürburgring; ou do primeiro teste pela Brabham, também sob chuva, no qual colocou tempo em Lauda e Watson, e que lhe rendeu a oferta por um contrato de três anos, mas tais relatos não caberiam numa única coluna.
O mais importante, no fim das contas, é o impacto que fica após sermos expostos à presença de uma pessoa a um só tempo tão simples e tão especial. Ao deixar a casa de Nelson e fazer minha longa viagem de volta me percebi olhando para minha própria vida de maneira diferente, e pensando no tanto de boas ideias que deixei de executar, no tanto de oportunidades que deixei de aproveitar, no quão longe eu tenho vivido de meu próprio potencial, mesmo que, ao contrário dele, nunca tenha descoberto qualquer talento que me colocasse entre os melhores do mundo no que quer que fosse.
E esse talvez seja o maior privilégio de conversar com Piquet. Sem qualquer discurso motivacional, apenas através do exemplo, ele te faz desejar ser alguém melhor, te faz perceber que muito do que sustenta um empreendimento de sucesso pode ser aprendido, e que ter atitude às vezes importa tanto quanto ter aptidão.
Só posso agradecer e desejar que Nelson tenha muita saúde e possa continuar entre nós por muitos e muitos anos. Porque, além de tudo que é e representa, há muito que pode ser aprendido com ele.
Um ótimo dia a todos.
1 Comments
Grande Marcio,
que coluna … que inveja boa eu tenho de vcs por poderem, sejam apenas como amigo ou mesmo como jornalista, desfrutar de um momento tão especial como estar com Nelson Piquet na casa dele, na garagem mais que especial que a meu ver temos no Brasil, sem desmerecer em nada os grandes colecionadores de carros espalhados pelo Brasil. Penso aqui comigo ser um luxo poder ler que voce viveu esse momento
A essência do Nelson Piquet como pessoa e esportista está super bem descrita por vc nessa coluna … e é isso que sempre admirei na pessoa dele como um fã incondicional … é TOP 1 da Formula 1 para mim …
E o Candango … Meu avô era um pequeno agricultor de laranja em Itaboraí nos anos 70 … ele teve um Candango que talvez seja umas das maiores lembranças de muitas boas que tenho do sitio dele na minha infância … meu avô me botava no colo dele para dirigir e eu só rindo a toa dirigindo …
Conta mais relatos desse momento tão especial … O GEPETO merece e clama por isso
Show de bola
Fernando Marques
Niterói RJ