LEMBRANÇAS DO RALLY DOS SERTÕES – 1
Por Tiago Torricelli
Tiago Torricelli reapareceu!
Nosso amigo, jornalista da Rádio CBN, participou Rally dos Sertões como navegador do Mitsubihi n. 141, pilotado pelo também jornalista Tiago Brant, do Sportv.
Torricelli havia prometido enviar despachos periódicos para o GPTotal e de fato o fez mas a maioria deles acabou se perdendo pelo caminho, vítimas da precariedade das comunicações em pleno sertão brasileiro.
De volta a São Paulo, ele editou suas anotações e produziu um longo e emocionado relato, que vamos publicar hoje e quarta-feira. E já vamos começar a torcer pelos dois Tiagos estarem de volta – e mandando reportagens em 2004. (EC)
Da próxima vez ….
Quando recebi o convite para participar do Rally, meu pensamento era o de fazer um bom trabalho jornalístico, passando qual era a sensação de ser competidor de um Rally do porte do Sertões. O que eu não contava era o tal botãozinho – que eu até já comentei a respeito aqui mesmo no GPTotal, mas é que achei a história tão verdadeira que resolvi falar dela mais uma vez. Vou explicar. Segundo Roberto Gardano, que foi o chefe de equipe da categoria imprensa, e é um cara super experiente no automobilismo, tanto em off-road quanto em fórmula. – foi , por exemplo, chefe de equipe do Felipe Massa – todos, sem exceção, têm um botãozinho na cabeça, que é acionado quando se coloca o capacete. Daí em diante a vontade não é a de apenas participar, mas sim a de disputar. Observe bem a diferença sutil entre as palavras , mas a grande diferença em seus significados.
Santo botãozinho!!!
E pude constatar que realmente não foi só em mim que o danado do botãozinho foi acionado, mais uma vez, seguindo à risca as sábias palavras de Gardano, todos foram “ativados”. Mariana Becker (TV Globo) – franca favorita. (3o Sertões dela). Luciano Kdera (ESPN), Denis (JT), Ricardo (Universo Rally), Tiago Brant (SporTV), Fernando Solano (Rádio Eldorado), André (EPTV), Roberlena (4×4) e Ranimiro (TV Record).
Me lembro muito bem da primeira vez que vi o carro com o qual eu e Brant iríamos correr. Ainda em Goiânia aquela L200 RIII parecia um brinquedo para “gente grande”. Tudo acertadinho. Desde os adesivos dos patrocinadores até o posicionamento do GPS, do hodômetro, da bancada de navegação, tava tudo lá.
Entramos no carro no dia seguinte deste encontro memorável. Foi a disputa do prólogo. Para os menos acostumados com a nomeclatura do Rally, seria o mesmo que o treino classificatório da F-1, também com direito a apenas 1 volta. Ficamos em 77o, entre os 86 participantes. Fomos o 5o da imprensa, entre os 5. Diria eu após o resultado – “número cabalístico!” O consolo foi que ficamos a frente do JR Duran na geral !!
Amanheceu finalmente o primeiro dia de competição. Um trecho inicial de deslocamento até Pirinópolis, onde aconteceria a largada de verdade, não a promocional como a de Goiânia.
Largamos. Cinco segundos após a largada eu estava completamente perdido. Esqueci de zerar o hodômetro, não liguei o GPS, me confundi todo com a planilha, não sabia se olhava para baixo ou para a trilha. E lá se vai o Duran. Desastre ! Nos perdemos antes do primeiro Km de competição. É meu amigo, que sufoco passei. Brant me perguntava pra que lado seguir, e eu só respondia que não tinha idéia para onde. Estava completamente perdido. Com essa “brincadeira” perdemos o carimbo. Guarde bem isso!! Nunca perca o carimbo em um rally !!! Saberíamos depois, que a punição era de 1 hora adicional no nosso tempo total.
Passada a afobação dos primeiros metros e alguns minutos… tá bom, dezenas de minutos …, me localizei. A verdade é que aprendi a mexer com a aparelhagem de navegação na prática, e não erraria mais tão feio durante todo o resto do Rally. Pelo contrário, acertaria até onde as dificuldades eram enormes e onde até os mais experientes navegadores erraram. Podem acreditar !
Chegamos ao destino final da primeira especial e fomos até o ponto de encerramento do dia ainda no estado de Goiás. Essa noite seria a etapa Maratona, ou seja, somente os competidores poderiam mexer nos carros, sem ajuda externa alguma. Sem mecânico ou coisa parecida. Os carros ficaram no parque fechado e só sairiam de lá no dia seguinte para a largada do segundo dia. Fizemos o básico – óleo de motor, da direção hidráulica, tiramos a barra estabilizadora (quebrada) e beleza. O carro 141 estava novo !!
Segundo dia de prova. Acordamos cedo e fomos ao parque fechado. Comentário do meu piloto: “que galera preguiçosa, só a gente e mais aqueles dois mexendo no carro” (se referindo a outra dupla desavisada que mexia em outro veículo) Mal a frase acabou, entra no parque fechado o diretor de prova nos perguntando qual o número do nosso carro. Adivinha ? Outra punição. A verdade não é que o pessoal era preguiçoso, e sim que era proibido entrar no parque fechado naquele horário !! O nome parque “fechado” não era à toa!!
Com duas punições nas costas, decidimos fazer “nossa prova’, sem pensar nos resultados, não tínhamos mais nada a perder !!
E foi aí que começou nossa ascensão! Como que ressurgindo das cinzas, o glorioso carro 141 terminou o dia na 14a colocação na geral. Mas como éramos muito sortudos, o final do trecho especial foi cancelado por causa da queda de um carro numa ponte e no “briefing” da noite ,o diretor da prova resolveu cancelar todos os tempos acima do oitavo – igualando-os todos ao nono tempo.
Vai dizer que não somos muito “sortudos” ?!?!?
O “show” não pode parar ! Conseguimos na sequência dos dias um 25o lugar , depois um 23o. E nesse meio tempo nossos “adversários” jornalistas foram passando por problemas. Chegamos até em uma etapa a destombar o carro ocupado por André (EPTV) e Ricardo (Universo Rally) e em outra, a tirar do fundo de um mata-burro o carro de Denis (JT) e de Ranimiro (TV Record). Na classificação estávamos subindo, mesmo com as punições levadas nos primeiros dias. Quanto ao nosso carro, ele parecia indestrutível.
Até que em uma etapa quando estávamos muito rápidos, furamos 2 pneus, de uma vez só, ambos do mesmo lado. Na verdade, o pneu traseiro do lado do motorista se rasgou inteirinho. O dianteiro escapou da roda. A cena da troca foi de comédia pastelão. Não havíamos praticado isso antes. Parados na trilha tentamos erguer o carro, não sem antes o Brant ler todo o manual de instruções que vem colado em uma das laterais do macaco hidráulico. Gastamos ali uns 40 minutos. – A dupla campeão do Rally dos Sertões 2003 nos carros – Guilherme Spinelli e Marcelo Vivolo – gasta 1´50´´ entre descer do carro, trocar o pneu e voltar ao veículo.
Nos trechos finais da etapa eu ia avisando a equipe de apoio que precisávamos de mais estepes já que os nossos 2 haviam sido utilizados.Boa precaução!
Tínhamos ainda mais uma especial a frente, e não é que mais 2 pneus furaram !! Com uma diferença na troca – agora estávamos preparados ! Poderíamos voltar a São Paulo e abrir uma borracharia, oferecendo um serviço de troca rápida de pneus. Não chegamos nem perto do tempo da dupla campeã, mas entre 10 e 15 minutos os pneus foram trocados.
No deslocamento entre as duas especiais passei um dos grandes sustos no Rally, com o cinto (4 pontas) solto e sem estar com capacete, o carro escapou um pouco em uma curva , subiu um degrau de terra na lateral e quase tombou. Foi aí que me lembrei que todos os graves acidentes no Rally, inclusive, os que resultaram em morte, aconteceram nos deslocamentos. É justamente quando os competidores ficam mais a vontade e sem os aparatos de segurança e daí se dão mal. Ainda bem que minha hora ainda não tinha chegado e continuamos o trecho de deslocamento mais espertos.
Mesmo com esses problemas, continuamos bem na prova. Nas etapas que se sucederam largamos a frente de Kléver Kolberg, Edio Fuschter e outros pilotos de ponta. Estávamos bem na parada , e eles, tendo problemas. Em outra especial, até ajudamos a retirar de um buraco o carro de Ingo Hoffman !! Chegamos em uma posição legal na penúltima etapa, acreditávamos até na vitória na categoria imprensa. Estávamos perto da líder Mari Becker. Foi aí que o Rally novamente mostrou sua cara.
Não percam o próximo capítulo, quarta-feira.
Tiago Torricelli
LEMBRANÇAS DO RALLY DOS SERTÕES – 2
Por Tiago Torricelli
No meio da primeira especial do dia (teríamos duas especiais) o motor pareceu perder a potência. De imediato achamos que fosse a turbina, pois só o nosso carro não havia demonstrado esse problema ainda Por sinal, ele estava ótimo. No dia anterior não havíamos reclamado de nada para os mecânicos.
Mas, além de perder a potência, o carro .. de repente .. parou ! Descemos e vimos óleo por todos os lados do motor. O carro não tinha mais ignição. O nosso 141…indestrutível …precisava de ajuda!!
Como estávamos no meio da trilha esperamos que outro carro da imprensa chegasse até nós e nos rebocasse – liderávamos a etapa entre os jornalistas. Fomos puxados primeiramente pela Mariana e depois pelo André.
Fomos deixados em um lugar onde só se podia observar uma casa de pau a pique no meio do nada. Moravam na casinha, uma mulher, 5 homens e 7 crianças. Viviam de modo muito simples; sem luz elétrica, sem nada perto. Banho ? Só com a água barrenta retirada por uma balde de um buraco na terra. Mesmo assim, essa mulher, de nome Maria, nos chamou para “merendar” um prato de arroz com ensopado de carne de porco. Depois, nos ofereceu uma rede para descansar e lá esperamos pelo reboque da nossa equipe. Quatro horas se passaram. Gardano surgiu, olhou o motor e nos explicou o acontecido. O nosso parachoque dianteiro estava amassado para dentro bem no meio, devido a batida de frente que demos em uma árvore no dia anterior. A parte amassada ficou o tempo todo raspando na mangueira de óleo do radiador, até que a rasgou, fazendo com que o óleo do motor vazasse todo. Não tínhamos mais o indicador de óleo no painel, por isso rodamos um tempo ainda sem oléo e com isso o motor acabou fundindo.
Tínhamos a partir de então uma corrida contra o tempo. Cerca de 300 Km nos separavam da equipe de apoio. Tínhamos de ser rebocados por todo esse trajeto e torcer para dar tempo da troca de motor.
Foram 300 Km de reboque por trilhas perigosas e escuras, chegamos a Barreirinhas as 3 horas da manhã … infelizmente, nosso rally terminava ali. Não havia mais tempo hábil para a troca do motor. Nosso 141 havia morrido. Ele que por tantos dias nos fez parecer invencíveis, não agüentou. Morreu. Mas foi um bravo enquanto viveu.
Cansados e deprimidos fomos para a pousada. Eu sou um otimista convicto. Acordei e fui de macacão ao boxe da equipe – tinha a esperança de encontrar nosso carro reavivado. Mas isso não aconteceu. Lá estava ele, no mesmo lugar onde o havíamos deixado na madrugada. Sujo. Morto.
Foi dolorido ver nossos “adversários” se preparando para a última etapa – os lençóis maranhenses – trecho de dunas. Totalmente diferente das etapas anteriores.
Com um carro “normal”, fomos por estrada “normal” até São Luis, acompanhar a chegada dos competidores no final do Rally.
Através de um arco inflável armado em frente a praia do Calhau, as primeiras motos começaram a chegar, logo depois chegariam os primeiros carros. Nossos corações estavam apertados. Doía muito assistir a tudo aquilo como mero espectador – os carros chegando, os competidores “completando a missão” … sendo aplaudidos pelo grande público que recepcionava a todos.
Em um momento decidi me isolar, enquanto Brant gravava entrevistas para a Sportv de um lado, fui para outro. Tinha que remoer um pouco a dor de não conseguir chegar ao final do Rally, ter sido vencido por ele.
De repente, ao longe , vi o primeiro carro da categoria imprensa chegar. Não conseguia ver de quem era. Resolvi chegar mais perto, e, como uma fila de 5 carros havia se formado antes da travessia do arco, consegui chegar ao carro antes desse momento.
Só quando cheguei bem perto é que consegui ver, ou melhor acreditar no que enxergava, mas parecia não entender.
Era o grande 141 !! O nosso carro !! O qual por terrenos perigosos e difíceis havia nos levado. Havia resistido bravamente !! Viveu e brigou como nenhum outro !! Tinha sido nossa fortaleza por tantos dias !! Ele chegava rebocado por um carro de apoio. No volante, um dos mecânicos. Não resisti … entrei no carro. Fui ao meu lugar, o de navegador. Aquele espaço onde eu tão bem já conhecia.
Iria atravessar o arco de chegada … no carro. Rebocado sim, mas de cabeça erguida. Só que estava faltando algo. Brant tinha de estar junto. Não poderia cruzar a linha de chegada após 4 mil Km sem o companheiro de tantos problemas, frustrações e vitórias. A poucos metros do arco de chegada, Brant aparece ao lado do carro, viu o carro a distância e não resistiu. Como eu, ele cruzaria a linha de chegada.
Novamente o time estava reunido – o 141, Brant e eu. Finalmente cruzamos a linha de chegada, rebocados, mas a alegria foi grande. Nos sentíamos de certa forma com o dever cumprido. Chegamos inteiros ao final. Naqueles poucos metros enquanto atravessávamos o arco de chegada pensei em tudo o que passamos.
O que fica do “Sertões” ?
O que fica não é um sentimento de tristeza por não ter conseguido disputar a última etapa pelo motor fundido. Pois, sei que fizemos o máximo possível. Beiramos abismos a 100 Km/h, descemos trilhas estreitas de pedras que terminavam com curvas fechadas e escorregadias. Aceleramos em retões que não sabíamos como terminavam, e isso, a mais de 130 !! Passamos por trechos onde as valas laterais e os buracos de erosão engoliriam um carro. Fizemos ultrapassagens às cegas, atravessando uma poeira que teimava em ficar suspensa.
O que fica sim é uma vontade e uma certeza –
DA PRÓXIMA VEZ , EU TERMINO O “SERTÕES” !!!
Tiago Torricelli