A moeda continua a girar

Cadeira cativa
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A culpa é do Colin Chapman
22/01/2014

A história é cíclica: a atualidade, muitas vezes, se explica por algum fato(r) histórico.

Janeiro de 1987. O Grupo B, dos mais poderosos e assustadores carros de rally já fabricados, não mais existia. Dava lugar a carros mais seguros e comportados, oriundos de modelos de rua, e não mais de protótipos. Era a sentença de morte de modelos lendários como Audi Quattro S1, MG-Metro 6R4, Ford RS200 e Lancia Delta S4.

Esses modelos nunca mais correriam novamente. Exceto o Peugeot 205 T16 Evo II. A pedido de Jean Todt, ex-navegador de rali e diretor da Peugeot Sport, o carro bicampeão do mundial (1985-86) foi transformado em off-road, em apenas dois meses, para competir no rally então conhecido como Paris-Dakar. Após a Porsche vencer com o piloto René Metge o Dakar em 1986 com o modelo 959 (por insistência de Jacky Ickx), era um segundo grande movimento de uma equipe de fábrica a se envolver naquela corrida de loucos. E o carro era perfeito para a ocasião.

O sucesso foi imediato. No Dakar 1987, vitória de Ari Vatanen, experiente campeão de rally de 1981. Ele não pôde repetir o triunfo no ano seguinte porque seu carro foi sequestrado (!) por bandidos do Mali, que invadiram o acampamento na madrugada. O veículo foi achado, mas Vatanen foi desclassificado. Ainda assim, a vitória ficou com a Peugeot, para o companheiro de Vatanen, Jüha Kankkunen, um tetracampeão do rally.

A Peugeot gostou da brincadeira e desenvolveu para 1989 um novo modelo para a competição, desta vez esquecendo as linhas do hatch compacto em favor de um desenho baseado no sedã médio da marca. Um carro maior, e ainda mais competente para enfrentar o Saara: Peugeot 405 T16, nascido para vencer.

À disposição de Todt estava novamente Vatanen, e seu novo companheiro, Jacky Ickx – ele, também um vencedor de Dakar, o 1983, com um carro Mercedes particular. Logo nos primeiros estágios, Vatanen e Ickx abriram distância imensa para os demais competidores. A vitória estava com a Peugeot, era uma certeza. Com receio de se envolverem num duelo fratricida, Todt fez o que poucos chefes de equipe têm coragem de fazer: determinou qual seria o vencedor, e qual seria o escudeiro a comboiar o colega.

E a decisão de quem venceria foi realizada no jogar de uma moeda. Cara ou coroa. Vatanen foi o escolhido. E Ickx teve que chupar essa manga.

Janeiro de 2014. O nome não é mais Paris-Dakar, não ocorre na África, o time a ser batido agora é o alemão X-Raid e seu inquebrável Mini 4×4 turbodiesel, desenvolvido em parceria com a BMW. Esqueça Ickx e Vatanen: a moeda, desta vez imaginária, girou para os companheiros Nani Roma e Stéphane Peterhansel, ambos ex-campeões nas motos.

Roma foi rápido e consistente por toda a competição. Tomou a ponta no 3º estágio e manteve-se líder a maior parte do tempo. Peterhansel teve um importante atraso justamente na 3ª etapa, e em seguida na problemática 5ª, que minou as chances do terceiro grande nome do time, o qatariano Nasser Al-Attiyah, que tomou 60 minutos de penalty por ter perdido um dos checkpoints do caminho. A distância entre Stéphane e Nani chegou a ser de 39 minutos.

Peterhansel, em busca de um inacreditável 12º título, partiu à caça. Foi paulatinamente diminuindo a diferença com vitórias e outros bons resultados a cada estágio. No antepenúltimo, Sven Quandt, dono da X-Raid, ordenou a seus pilotos que a batalha pela vitória deveria cessar. O título, portanto, deveria ficar com Roma.

Peterhansel mostrou sua força e venceu o penúltimo estágio, ignorando a ordem. O francês finalmente superava o colega espanhol por míseros 26 segundos, após mais de 48 horas de trechos cronometrados. A última etapa, entre as cidades Chilenas de La Serena e Valparaiso, seria de apenas 157 km. Eles protagonizariam a mais apertada decisão do Dakar.

Não foi o que aconteceu.

Peterhansel parou seu carro no km 24 da competição, e chegou apenas 5min depois de Roma, deixando finalmente seu colega vencer pela 1ª vez entre os carros. Al-Attiyah completou o pódio, 56 minutos atrás. Não fosse o penalty, poderia ter sido ele o campeão – ou, ao menos, embolaria a cabeça de Quandt.

Não há lições para se tirar desse episódio, simplesmente porque ele não é novo. É mais uma ocorrência daquilo que já vimos muitas vezes no esporte a motor: a interferência da equipe na disputa entre pilotos. Não vai ser a primeira, nem a última vez que isso vai acontecer. A moeda, real ou virtual, vai continuar a ser jogada.

Campeonatos, ora, são feitos de equipes e pilotos. Muitas ordens de equipe são de pura sapiência, para otimizar esforços ou simplesmente evitar catástrofes. Outras são apenas impopulares. Como neste caso, em que havia três carros na liderança, todos com campeões do Dakar e altamente experientes.

Ficamos sem saber se Nani poderia ganhar no braço, ou se Peter ia levar seu 12º título heroicamente descontando quase 40 minutos de desvantagem. Ou se os dois iriam se estrepar de tanto correr e deixar a vitória com Al-Attiyah – um final surpreendente e que ainda garantiria título para a X-Raid.

No fim das contas, só sabemos que 11 dos 11 Minis da equipe X-Raid que largaram conseguiram chegar, com sete deles no Top-10, incluindo os três do pódio. O que eles vão fazer com essas informações? O departamento de marketing do grupo BMW que se vire com isso, deve servir para aumentar as vendas do Mini Coutryman. Para os fãs infelizmente não sobrou muita coisa, a não ser a convicção de que Nani, Stéphane e Nasser são três grandes cavalheiros e estão acima disto.

O Dakar continua grandioso, majestoso. Mas o final foi bastante blasé. Esperamos mais do esporte a motor em 2014.

Aquele abraço e ótimo começo de ano a todos!

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

6 Comments

  1. Ronaldo disse:

    Não sei, pra mim Peterhansel se mostrou um tremendo chorão. Não posso afirmar mas apostaria um ano de salário que ele mesmo já tenha sido beneficiado por acordo semelhante alguma vez no passado. Todt teve a decência de jogar uma moeda, Ickx não teve a arrogãncia de querer ainda mostrar que era o mais rápido. No nosso caso mais recente acho que faltou cavalheirismo aos envolvidos.

    Mas me lembro de episódios com os também grandes Despres e Coma em anos passados que seriam mais que suficientes para manchar seus nomes, mas os interesses fazem que nossa memória registre apenas o quanto foram geniais; e talvez seja até melhor assim.

    • Lucas Giavoni disse:

      Oi Ronaldo!

      Jamais classificaria como chorão. O cara é competidor, quer vencer. Ninguém neste sistema solar sabe melhor que ele o que é vencer um Dakar.

      A tomada de liderança no penúltimo estágio foi um recado de “sim, eu posso vencer, mas vou fazer o jogo de vocês”. Não faltou cavalheirismo porque Peter disse que Roma era seu amigo, e que apesar de estar frustrado pela ordem da X-Raid, estava contente pelo colega vencer após 10 anos. E uma das fotos que ilustra o texto é bem clara: Peter levanta as mãos de Roma, reconhecendo que ele fez um bom trabalho.

      Por outro lado, não vejo decência na atitude de Todt, mas sim de comodidade e de falta de confiança em seus pilotos: deixe que a sorte escolha logo o vencedor, e não a competência e senso de limite de cada um.

      Sobre Despres e Coma, desde que Roma ganhou nas motos em 2004, só eles venceram o Dakar. Eles são geniais, mas sim, ganharam a custa de pilotos-suporte, e alguns episódios obscuros… Infelizmente.

      Abração!

      Lucas Giavoni

  2. Fernando Marques disse:

    Um bom começo de 2014 para todos do GEPETO também … pouco pude acompanhar do Rally Dakar deste ano … mas é sem duvidas uma prova sensacional …

    Fernando Marques
    BNiterói RJ

  3. Mauro Santana disse:

    Bela coluna Lucas!

    O Dakar ainda tem sua magia.

    E a respeito do extinto Grup B de Rally, olha, aquilo era louco demais da conta, e toda vez que leio uma nota informando que Robert Kubica sofreu mais um acidente, fico imaginando se este polonês tivesse nascido em outra época que lhe proporcionasse fazer parte do quadro de pilotos de Rally do início dos anos 80…

    Eu sempre achei os navegadores que participam das provas de rally pessoas corajosas, mas os que atuaram na época do Grup B eram loucas mesmo!

    Segue dois vídeos.

    http://www.dailymotion.com/video/xty1w4_bbc-madness-on-wheels-rallying-s-craziest-years_shortfilms

    http://www.youtube.com/watch?v=bAbv07cJC9A

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

    • Lucas Giavoni disse:

      Sim, amigo Mauro, Grupo B era uma loucura.

      Melhor nem imaginar o que ia ser do pobre Kubica se ele pilotasse uma Lancia S4…

      Abração e obrigado pelos vídeos!

      Lucas Giavoni

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