O pensamento social, político e econômico atual beira o abismo, a pandemia sendo apenas um elemento a mais a nos empurrar em direção a ele. É uma boa hora para se pensar o impensável, de suspender inibições e caminhar no fio da navalha em busca de ideias que possam nos colocar numa posição menos extrema, reduzindo desigualdades, preconceitos, tensões e ódios. Tentemos, ao menos tentemos, abandonar nossas instalações luxuosas no Grande Hotel Abismo e procurar um lugar mais seguro e justo para nossos filhos e netos viverem.
A Fórmula 1 também merece este exercício. Ela está igualmente à beira do abismo.
A hegemonia Lewis-Mercedes que, creio eu, não será abalada sequer pela mudança de regulamento em 2022 (uns 35 GPs até lá, com boas possibilidade de vencerem todos…), patamares altíssimo de exigências técnicas e comerciais, o colapso financeiro iminente de várias equipes, o rápido esgotamento da fascinação dos mais jovens por carros e velocidade… Nada prenuncia um futuro pacífico para uma categoria esportiva de propriedade de uma empresa regida pela lógica predatória de receitas e lucros crescentes.
Logo, se quisermos preservar a F1 é bom exercitarmos a imaginação em busca de saídas inovadoras e sustentáveis, de forma a, quem sabe, estender a sua existência por mais 70 anos.
Não é minha intenção, por absoluta incapacidade, propor aqui tais ideias tampouco ser irônico, sugerindo molhar a pista durante a prova, determinar a troca de pilotos entre as equipes ao longo do campeonato, inverter grids etc, Tais ideias, vocês sabem, já foram propostas por mentes mais, digamos, disruptivas que a minha. Falo de inovação, não de disparates, ainda que tantos flertem com eles no momento.
Se não tenho desprendimento e brilho criativo para propor inovações, posso ajudar, talvez, citando pilares nos quais a F1 se apoiou até aqui. Vamos a eles, relacionados sem preocupação hierárquica:
– gasolina
– proximidade
– asfalto
– velocidade (não, não vale citar o Ferrari deste ano como antinomia)
– campeonato
– mérito
– esporte
– equipe
– regras minuciosas
– excelência técnica
– receitas e lucros crescentes.
Alguns destes pilares já foram abalados, caso da gasolina e da proximidade – já são quatro corridas sem público nos autódromos, não se sabe quando poderão voltar com segurança, espero que não cheguemos ao ponto de ter drive thru em GPs.
Atingidos, mas menos, estão os pilares do mérito – abalado pela prevalência das hegemonias – e do esporte – notem como a pandemia reforçou o velho conceito de “circo da F1”, um espetáculo itinerante no qual seus atores e técnicos moram em trailers em torno do picadeiro ou ao menos dizem fazê-lo.
Já outros pilares parecem bastante difíceis de serem abalados, muito menos removidos. Como pensar numa F1 correndo sobre pisos que não sejam asfálticos, que troque velocidade por regularidade ou resistência e que não seja amarrada por um campeonato anual?
Encontraremos, talvez, mais espaço para a inovação, remexendo nos conceitos equipes, regras minuciosas e excelência técnica.
Não creio que rodízio de pilotos, extinção das equipes ou carros iguais possam ser soluções sustentáveis, a não ser que aceitemos abraçar os conceitos do automobilismo americano. A coisa fica mais interessante se, por algum artifício de regulamento, conseguíssemos quebrar a curva de experiência das equipes, reduzindo assim a excelência técnica que torna possível o estabelecimento de hegemonias como as que vimos nos últimos vinte anos.
Falamos disso com alguma frequência aqui no Gpto. É a curva de experiência que tornou possível as hegemonias Ferrari-Schumacher, RBR-Vettel e Mercedes-Hamilton, a mesma que tem permitido aos médicos reduzirem de forma acelerada os índices de mortalidade por Covid-19 nas UTIs. A curva de experiência é um princípio de trabalho e não é o mesmo que soluções inovadoras; é, antes, um aprimoramento sistemático e contínuo de ferramentas, métodos e gestão. A curva de experiência da Mercedes, combinando competência e recursos, me parece inatingível no momento, mesmo por Ferrari, RBR e Renault. Por isso não acredito que o novo regulamento rompa com a hegemonia da equipe alemã, tanto mais quando conta com um piloto do nível de Hamilton.
Ao par do rompimento da curva de experiência ajudaria – o que pode ser tentado via regulamento – conter o gigantismo da F1 e isso seria mais fácil se removêssemos o pilar receitas e lucros crescentes, a maldição que empurra a categoria e o mundo em direção ao abismo climático, político, econômico e social.
Eu sei. É fácil esculpir estas e outras nuvens aqui, do conforto em que me encontro.
Foi em situação semelhante que nasceu a expressão que dá título a esta coluna, formulada pelo filósofo György Lukács ao criticar os fundamentos da Escola de Frankfurt, que propôs uma releitura dos conceitos marxistas nos anos seguintes à I Guerra. No Grande Hotel Abismo, podia-se, com máximo conforto, usufruir do “perverso prazer de sofrer”, como explica Stuart Jeffries no admirável livro que se apropriou da expressão de Lukács, sobre a Escola e seus personagens. Sim, é fácil criticar, ironizar, debochar quando não se está no fogo cruzado, quando se abre mão de “toda conexão entre teoria e prática”.
É tudo verdade, mas também é verdade que saltos importantes da humanidade são dados por fios desencapados que, por terem contrariado ordens médicas ou escapado à vigilância dos parentes, colocam a casa abaixo sem saber o que construir no lugar. Eu mesmo critiquei tantas vezes os dirigentes esportivos por terem feito isso com os regulamentos da F1.
Agora, talvez, tenha chegado a hora de pegar a marreta e pôr mãos à obra.
Abraços
Eduardo Correa
2 Comments
Thanks for sharing. I read many of your blog posts, cool, your blog is very good.
Eduardo
precisa-se fazer uma reflexão muito grande do que está certo e do que está errado nos esportes em geral … não é um exercicio simples de se resolver …
Fernando Marques
Niterói RJ