O esporte é cheio de histórias comoventes de reviravoltas. E diante do esporte a motor e seu alto risco não faltam episódios de pilotos desafiando a lógica e a física para retornarem ainda mais fortes após encararem a morte de perto.
O drama pelo qual Niki Lauda passou em Nürburgring 1976 rendeu livros, comoveu o mundo e recentemente colocou a F1 em Hollywood com o belo filme Rush. Ainda na F1, temos a história de Jean-Pierre Beltoise, que após ter seu cotovelo direito destruído em um acidente, no qual não poderia mais movê-lo normalmente, mostrou aos médicos como queria que seu braço ficasse para poder voltar a correr.
No motociclismo, há a comovente história de Ricardo Tormo e de como ele enfrentou várias adversidades para colocar seu nome na história das categorias menores do Mundial de Motovelocidade. O valente espanhol ainda ganharia uma homenagem póstuma ao ter o autódromo de Valência rebatizado em sua memória.
Vinte e cinco anos atrás, o mundo viu uma das histórias mais impressionantes de volta às pistas de todos os tempos, protagonizada por Michael “Mick” Doohan. O australiano nascido em Brisbane veio de uma família de motociclistas e, após se destacar no Campeonato Australiano de Superbike, foi convocado pela Honda para disputar o Mundial de Motovelocidade das 500cc em 1989, na chamada segunda Era de Ouro do Mundial.
As 500cc, com os agressivos motores 2 tempos, eram dominadas por pilotos agressivos e extremamente carismáticos, com as montadoras construindo motos com comportamentos diferentes para seus pilotos domarem.
Eram tempos de Wayne Rainey, Eddie Lawson, Randy Mamola e Kevin Schwantz, que sucediam lendas como Kenny Roberts, Wayne Gardner e Freddie Spencer. Foi nesse meio de monstros sagrados que Michael Doohan entrou no Mundial de Motovelocidade. Com seu estilo de pilotagem agressivo, o australiano logo estava entre os pilotos de ponta.
Numa comparação com a MotoGP atual, a Honda era bem parecida com a Ducati de dez anos atrás, com uma ciclística apenas regular, mas com um motor extremamente potente e com um torque abrupto, fazendo a pilotagem da NSR500 extremamente indócil.
Para 1992, Jeremy Burgess convenceu a Honda a utilizar um motor conhecido como ‘Big Bang’, que tinha menos potência em alta rotação, mas tinha uma melhor maneabilidade. Michael Doohan, piloto já estabelecido como uma das estrelas em potencial das 500cc, tendo terminado como vice-campeão em 1991, tinha como companheiro de equipe o irascível compatriota Wayne Gardner. Mas o veterano australiano quebrou a perna logo na primeira corrida do ano em Suzuka e Doohan, que não falava com Gardner, garantia assim as atenções da equipe Honda naquele ano.
Com uma moto mais equilibrada, Doohan dominou a temporada 1992 e nas sete primeiras provas do ano, o australiano conquistou cinco vitórias e dois segundos lugares, abrindo 65 pontos para o então bicampeão mundial Wayne Rainey, que não participaria da prova seguinte por uma série de contusões após sofrer uma queda em Hockenheim.
E essa prova seguinte seria em Assen, na Holanda, a Catedral da Motovelocidade. Pista rapidíssima e preferida de grande parte dos pilotos, Assen é até hoje uma das etapas mais esperadas do Mundial de Motovelocidade. Com o título praticamente nas mãos, Doohan partiu para os treinos pensando apenas em administrar o campeonato e finalmente realizar o sonho de se tornar Campeão Mundial.
Porém, tudo estava prestes a mudar para o australiano. Após sofrer uma queda sem maiores problemas, Doohan voltou à pista e numa imagem pouco registrada, Mick escorregou numa poça de óleo e sofreu o que se chama highside. Doohan ficou com a sua perna direita presa na moto e sofreu uma fratura distal na tíbia direita. Até hoje é bastante comum pilotos de moto sofrerem fraturas e rapidamente retornarem para as suas motos e era essa expectativa com Mick.
Entretanto, as coisas se complicariam quando ele chegou ao hospital.
Os médicos holandeses cometeram uma série de equívocos nas primeiras intervenções que deixaram a perna direita de Doohan em sério perigo. Um dia após a operação, Mick não sentia seus dedos e um cheiro de carne podre infestava o quarto do piloto da Honda. A sua perna estava gangrenando.
Quando os médicos holandeses se preparavam para amputar a perna de Doohan, o australiano foi salvo por Claudio Costa. O médico italiano supervisionava o socorro médico do Mundial de Motovelocidade e verificava as situações de Doohan e também com Kevin Schwantz, que também se acidentara em Assen.
Vendo as trapalhadas dos médicos holandeses, Costa retirou Doohan e Schwantz do hospital na Holanda e os levou com urgência para a sua clínica particular na Itália. Porém, o caso mais preocupante era de Doohan, que lutava para salvar sua perna direita. Por causa da pouca circulação no membro afetado, os órgãos do australiano estavam entrando em colapso. Agora, Doohan também lutava por sua vida!
Numa situação desesperadora, Claudio Costa realizou uma intervenção radical e inovadora. Ele praticamente abriu a perna esquerda de Doohan e a costurou na perna direita, com o australiano tendo que ficar com as pernas cruzadas e coladas por 14 dias com o objetivo de melhorar o fluxo sanguíneo na perna direita. Quase que por milagre, a circulação da perna direita voltou a funcionar a contento, salvando sua vida e uma amputação quase certeira. A perna direita de Mick, porém, nunca mais seria a mesma.
Mas o australiano tinha um objetivo a conquistar ainda naquele ano. “A única coisa que me motivava era voltar à pista e tentar manter a minha liderança no Mundial.” Mostrando uma força de vontade incomum, Doohan iniciou um tratamento de fisioterapia que durava dia e noite. Enquanto isso, Rainey retornava às pistas e tirava toda a desvantagem que tinha para Doohan e na penúltima etapa do campeonato, o mundo se assustou quando soube que Michael Doohan, aquele mesmo que quase teve uma perna amputada, retornaria à sua Rothmans Honda NSR500.
O palco dessa volta não poderia ser pior: Interlagos. É uma pista lendária da F1, porém, um circuito que não se adapta completamente às corridas de moto, particularmente por sua reta dos boxes, cercada de muros. Para completar, o Grande Prêmio do Brasil de 1992 teve que lidar com o clima tipicamente paulistano, com muita chuva. Foi um caos.
Uma chicane foi adaptada na curva do Café e os acidentes aconteceram sucessivamente. Assim como aconteceu em Monza 76 com Lauda, todas as atenções estavam centradas em Michael Doohan. O australiano chegou a São Paulo de cadeira de rodas, com as pernas extremamente finais, particularmente a direita.
Mesmo a Honda NSR500 sendo mais dócil em 1992, ainda se tratava de uma moto 500cc de dois tempos. Era uma temeridade ver Doohan em cima de uma moto de competição tão difícil de domar, mas ainda havia detalhes que poucos sabiam. A circulação da perna direita de Doohan ainda não estava completamente normalizada e o piloto da Honda simplesmente não sentia sua perna do joelho para baixo! Ele teria que percorrer um circuito perigoso para as motos com uma perna só!
Mal podendo andar até sua moto, Doohan foi para a corrida e o máximo que conseguiu foi um 12º lugar, enquanto Rainey vencia novamente, diminuindo a diferença para dois pontos a favor de Doohan, quando chegaram à Kyalami, última etapa do campeonato.
Ainda sem sentir sua perna, com o tornozelo direito sem nenhuma mobilidade, Doohan fez um esforço sobre-humano para conseguir um sexto lugar, mas com um terceiro lugar, Rainey conquistou seu terceiro título consecutivo com uma diferença de apenas 4 pontos – equivalente a um mero 7º lugar.
Mesmo não conseguindo o título, o que Michael Doohan fez no final de 1992 já entrava para a história. Essa história, no entanto, não estaria completa sem um título. Mick, como todos os australianos, era um cara durão. No termo original da língua inglesa, um legítimo Tough Guy.
A perna direita de Doohan ainda estava em péssimas condições quando ele começou a pré-temporada de 1993, em mais um ano pela Honda. Sem poder mexer seu tornozelo, não foram poucas as vezes em que ele retornava aos boxes e descobria que sua sapatilha estava toda rasgada, com pés sangrando, afinal, ele continuava a não sentir nada do joelho para baixo…
Doohan só foi sentir alguma coisa na perna direita, mesmo que fosse dor, apenas em 1994! Para suas pretensões, a falta de mobilidade do tornozelo direito atrapalhava demais, pois impedia o uso correto do freio traseiro da moto.
“Então eu pensei nos Jet Skis, onde se acelera com o polegar. Com um sistema semelhante, eu poderia usar qualquer dedo para frear.” Doohan improvisou o freio traseiro no guidão esquerdo da sua moto a partir de 1993, fazendo com que mudasse sua técnica de pilotagem. Não faltaram comentários que o ‘arranjo técnico’ de Doohan lhe dava uma vantagem técnica sobre os demais pilotos, mas ninguém conseguiu repetir o que Doohan fez.
Porém, 1993 foi um ano de recuperação para Doohan, em que ele viu seu rival e amigo Rainey sofrer um sério acidente em Misano e ficar paraplégico. Após fraturar a clavícula em Laguna Seca, Doohan aproveitou para permanecer nos Estados Unidos para tentar consertar sua perna direita, que estava ficando cada vez mais torta.
Durante três meses, a perna de Doohan foi colocada em um Pórtico de Ilizarov, um dispositivo em forma de gaiola com anéis de fibra de carbono ligados com parafusos e pinos nos ossos quebrados. Como é possível imaginar, o tratamento era dolorido, mas o australiano nunca desistiu. “Sim, houve momentos em que eu pensava no que estava fazendo, mas eu queria correr. Antes do acidente, eu estava dominando o campeonato. Então eu sabia que se estivesse 90% da minha forma, eu poderia vencer novamente. Por isso que eu continuei lutando!”.
Toda essa força de vontade de Michael Doohan valeu a pena. Em 1994, correndo ao lado do espanhol Alex Crivillé na Honda, Doohan começou o ano ganhando várias corridas, repetindo o que fez em 1992, e abrindo boa vantagem sobre os seus rivais. Durante o verão, o australiano venceu em Assen dois anos após quase ter pedido a vida. Com três corridas de antecedência, Michael Doohan finalmente realizava o seu sonho e conquistava o seu primeiro título mundial.
E viriam mais quatro títulos depois desse! Mick não apenas se tornava campeão, mas ganharia o status de lenda. Nesses cinco anos, entre 1994 e 1998, estabeleceu um domínio avassalador, com nada menos que 44 vitórias. No ano de 1997, em especial, Mick exagerou e venceu 12 de 15 corridas. A aposentadoria viria ao final da segunda corrida de 1999. Ele já não tinha mais nada o que provar sobre duas rodas.
Tudo isso realizado por aquele australiano durão, com a perna remendada mais fina que já se viu no mundo da motovelocidade…
Abraços,
JC Viana
3 Comments
Eu via os noticiários e costumava reclamar: “Ninguém mais vence, só o Doohan!”. Mas depois desse relato e de sua determinação para voltar a competir após quase perder a vida aliada à sorte de cair nas mãos do médico Claudio Costa, digo que lamento não ter percebido quando um campeão tornou-se lenda da motovelocidade. Mais impressionante que a trajetória de Doohan só as corridas de moto em que Tazio Nuovolari vencia com o corpo todo engessado. Doohan se iguala a Niki Lauda, Mika Hakkinen e outros grandes do esporte a motor.
Grande JC, Excelente tema!
Olha, sou suspeito pra falar quando o assunto é a Motovelocidade dos anos 80 e 90, pois eu gostava demais desta época.
Lembrava vagamente deste acidente do Mike, pois foi falado bastante disso na semana que antecedeu ao GP Brasil em Interlagos, inclusive da chicane que foi construída e que voltou a ser usada nos últimos anos para as corridas de turismo.
Aliás, aquele GP Brasil de 92, infelizmente não teve o mesmo brilho das etapas de Goiânia de 87, 88 e 89, que aliás nunca deveria ter deixado o calendário.
Agora, o que este australiano fez, olha, com certeza é digno de um baita longa metragem Hollywoodiano, incrível mesmo.
Bons tempos foram aqueles…
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Incrível a história da carreira do Mick Doohan na motovelocidade … é de cair o queixo!!!
JC Viana, show mais do que bola!!!
Fernando Marques
Niterói RJ