Madeleines

Talento e maturidade
09/07/2018
Velocidade e saudade
16/07/2018

O que teria me tocado tanto no vídeo enviado pelo Flaviz no grupo do GPTotal no whatsapp?

Era apenas mais um câmera car, a bordo do Porsche 919 que, pilotado por Timo Bernhard, percorreu em 29 de junho os 20,6 km do velho Nurburgring em 5m19s546, média de 233 km/h. O recorde anterior, de Stefan Bellof com um Porsche 956, estabelecido em 1983, foi pulverizado por Timo em nada menos do que 53 segundos…

Claro que o cenário ajuda. Nurburgring original é o autódromo mais insano e desafiador jamais construído, só comparável ao velho Spa, à Targa Florio e aos diferentes trajetos das Mille Miglia por estradas italianas. Não é tarefa humana voar por aquele asfalto frequentemente pichado pelos fãs, um trecho mínimo de grama até os guard rails impiedosos, o traçado impossível de ser memorizado, cada pontos de frenagem e aceleração tendo de ser estimado com precisão, sob risco de um vexame ou algo pior.

O Porsche 919 também é extraordinário, combinando dois motores – um V4 2.0 turbo e outro, elétrico -, como na Fórmula 1, mas livres de algumas limitações de regulamento, resultando em 1.176 cavalos para 840 kg.

Não creio, porém, que tenha sido uma coisa ou outra que impressionaram as minhas retinas tão fatigadas. Foi algo simples, banal até, e muito provavelmente efeito mais de uma percepção do que de algo real: sob velocidades constantemente acima dos 300 km/h, batendo 369 km/h (trezentos e sessenta e nove quilômetros por hora), os para-lamas do Porsche, claramente visíveis pelo câmera car, cediam alguns centímetros, mal resistindo à pressão aerodinâmica a que o carro foi submetido.

Como disse, pode ser apenas uma impressão minha, produto de uma vibração normal do carro e não um cedimento, mas o fato é que o movimento dos para-lamas daquela nave espacial, daquela vimana, daquela carruagem de Rá, me remeteu a antiga lembrança, de que a morte de Bernd Rosemeyer, em janeiro de 1938, durante tentativa de quebra do recorde mundial de velocidade em linha reta, se deu quando, segundo o entendimento de alguns engenheiros, a carenagem de seu Auto Union colapsou pela pressão aerodinâmica gerada pela velocidade em torno dos 400 km/h combinada, muito provavelmente, com uma rajada lateral de ventos, em uma estrada próxima a Frankfurt.

Descrito como um Ayrton Senna da época, pela combinação de talento, ousadia e juventude – ele morreu aos 28 anos de idade –, Bernd se opunha ao rival Ruddi Caracciola, oito anos mais velho, tido como um piloto mais cerebral, menos espetacular, como Alain Prost. Escrevi sobre o acidente de Bernd no comecinho dos anos 90 na finada revista Grid, pesquisando razoavelmente o assunto, e acabei marcado pela história galante do piloto alemão. Ver os para-lamas do Porsche de Timo vibrando sob velocidade ainda inferior àquela de 80 anos atrás acabou alinhando memórias, como o fizeram as madeleines de Proust – o escritor, não o piloto – e desencadeando em mim, por um momento, conforto e doce ligação com o automobilismo, um conforto e ligação que têm se esgarçado nos últimos tempos.

“Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal.

“De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligado ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde aprendê-la?

Não há receita, nunca haverá, para aprender a trazer de volta lembranças prazerosas, mesmo porque – cito agora Marques Rebelo –

“há tempo de amar e tempo de amar o que se amou”.

Nada parecido ocorreu-me ao seguir Lewis Hamilton em sua volta da pole pelo recém-retornado Paulo Ricard à Fórmula 1. Ao fim dela, média de velocidade de 233,6 km/h – igual, portanto, à atingida pelo Porsche 919 – só consegui pensar: é fácil!

Hamilton praticamente não briga com o volante do seu Mercedes, o carro pouco vibra, ao menos nas imagens da câmera car, o que pode ser bem notado pelo imobilismo da cabeça de Hamilton. O carro corre como sobre trilhos invisíveis, não mergulha nas curvas, não demonstra qualquer desejo de escapar nas curvas, mesmo na Signes, percorrida quase que com desdém pelo inglês, que também pouco abusa das zebras.

Não quero, claro, minimizar o feito do Hamilton, mas a superioridade técnica do Mercedes, seu acerto milimétrico, seus cálculos aerodinâmicos ao nível da engenharia espacial, seu acuro para detalhes e aderência cavalar fazem, aos que veem de fora, tudo parecer simples, como num vídeo game repetido à exaustão.

A madeleine, aqui, não funcionou, sucumbindo sob o peso da aerodinâmica que, mais e mais, se torna a ferida de morte no automobilismo que aprendi a amar há 50 anos.

Sim! 50 anos se passaram – pasmei com este fato tão óbvio quanto inarredável dia desses – desde que me enamorei do automobilismo e da Fórmula 1 em especial.

Neste intervalo comparativo de tempo, mudou a perspectiva que a velocidade tem sobre mim e sobre nós. Naquele tempo, as coisas não eram tão rápidas, nossas perspectivas de velocidade eram menores, as coisas, decididamente, aconteciam mais devagar.

A multiplicação da velocidade da vida como um todo é um fato, seja na média horária, seja na velocidade das informações e na renovação de valores, comportamentos, relacionamentos, trabalho, amores. Tudo se acerba nos dias de hoje e isso, talvez, seja causa do menor interesse pelo automobilismo.

Não quero terminar sem expressar meu assombro pela ultrapassagem de Sebastian Vettel sobre Bottas no GP da Inglaterra de domingo.

Pela segunda vez aqui no GPTotal, uso a expressão “bote de um animal de peçonha” para definir uma ultrapassagem milimétrica e muito ousada.

Na vez anterior, o agente era Michael Schumacher e o paciente meu prezado Damon Hill, o local do bote sendo uma curva apertada em Estoril.

Em ambos os casos, manobras admiráveis, inventivas, valentes, inesquecíveis, como o feito de Timo Bernhard em Nurburgring.

Abraços

Eduardo Correa

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

4 Comments

  1. Rubergil Jr. disse:

    Belíssimo texto, à altura da volta do Porsche em Nür.

  2. Fabiano B Neves disse:

    “A madeleine, aqui, não funcionou, sucumbindo sob o peso da aerodinâmica que, mais e mais, se torna a ferida de morte no automobilismo que aprendi a amar há 50 anos.”
    Pela não dependência extrema da aerodinâmica a MotoGP e até mesmo a FE têm oferecido corridas melhores que a F1.
    Agora a questão é a seguinte, como a Liberty e a FIA podem fazer equipes que investiram verdadeiras fortunas em túneis de vento e contratos com os melhores profissionais reduzir consideravelmente a importância destes recursos?
    Adrian Newey e Red Bull ficariam felizes?

    • João Paulo disse:

      Olá Fabiano
      não acredito que possa haver volta nessa história.
      Reduzir de forma radical a pressão aerodinâmica dos carros de F1, além de alterar toda a ecologia das equipes, seria reduzir a sua velocidade média de forma significativa. Toparíamos uma F1 muito mais lenta?
      Abraços
      Edu

  3. Fernando Marques disse:

    Eduardo,

    eu simplesmente achei a volta de Timo Bernhard a bordo do Porsche 919 perfeita. Parecia que ele conhecia muito os 20,6 km do traçado, a ponto de ter memorizado todo o circuito.
    A ultrapassagem de Vettel sobre Bottas foi sensacional. Desta vez o alemão acertou o bote.
    Já ultrapassagem do M Schumacher, ainda mais onde se deu, só foi possível por que o D. Hill deve ter dado muito mole. MAs foi espetacular também.
    Não tem como alguém discordar, foram feitos realmente admiráveis e inesquecíveis que merecem com toda justiça entrar no hall dos melhores momentos do automobilismo mundial.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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