Eu trabalhava na Folha de S. Paulo havia uns cinco meses. Tinha 21 anos e cursava o último semestre de Jornalismo. Iniciante, portanto. Graças ao entusiasmo natural dos jovens em começo de carreira, eu vibrava com qualquer pauta que me permitisse sair da redação para apurar uma notícia. Isso porque meu cargo era de redatora, não de repórter, mas meus editores habitualmente me escalavam para pautas externas, o que me enchia de um orgulho ingênuo. Certo dia, minha missão parecia um sonho para quem já adorava corridas: cobrir o embarque de Ayrton Senna em Cumbica.
Naquele tempo, a Folha tinha uma linha editorial que preconizava a integração dos assuntos do jornal, fossem eles os mais díspares entre si. O personagem que era destaque em uma área – Esporte, por exemplo – era instigado pelos repórteres do jornal a opinar sobre outro tema de relevância – Política, Economia, Cultura. Seria mais ou menos como se, hoje, o repórter que cobre o Corinthians tivesse de perguntar ao jogador Carlos Tevez o que ele acha da eleição para a presidência da Câmara dos Deputados.
Muito cá entre nós, os repórteres de Esportes sempre tiravam de letra tal recomendação das chefias. Jogador de futebol normalmente responde a qualquer coisa – e sempre com as mesmas frases – ou então concorda de imediato com sentenças mais elaboradas. Era só fazer assim: “Fulano, você concorda que o Brasil pode entrar em uma crise sem precedentes se o Congresso não votar pelo impeachment do presidente Collor?”. E o Fulano: “É… evidentemente…”. Pronto: segundo Fulano, zagueiro de tal time, o país pode entrar em uma crise sem precedente se blá-blá-blá…
Pois naquele meu dia de sonho, no qual eu deveria cobrir o embarque de Senna para o Japão, rumo ao tricampeonato, fui agraciada com uma missão desse tipo. Na reunião do meio-dia, a secretária-assistente de redação recomendou que o repórter dessa pauta perguntasse a Senna sua opinião sobre a visita do Papa ao Brasil e o fato de ele não vir a São Paulo naquela vez. É claro que essa burocrata de redação não tinha idéia do que eram os embarques de Senna, do tumulto em Cumbica, da enxurrada de perguntas que o piloto recebia. E o meu lindo castelo começou a desmoronar.
Passei no Tráfego – o setor no qual nos destinavam um carro com motorista – já meio cabreira. Segui para Cumbica bastante cismada. Cheguei ao aeroporto em pânico: como fazer uma pergunta dessas para Senna, naquela circunstância, sem parecer ridícula? Não, eu não ia pagar um mico daqueles na frente de toda a imprensa, isso eu sabia. Cobri toda a coletiva, realizada em um reservado do aeroporto, sem me arriscar na famigerada pergunta. Para falar a verdade, não perguntei nada, só escutei e anotei.
Mas a pergunta, a secretária de redação, meu editor, o Papa rondavam-me a consciência como um abutre espreita a carniça. Na minha inocência de repórter iniciante, não me passava pela mente a idéia mais óbvia: diga na redação que ele não quis responder a pergunta, sua tonta! Não, a verdade, nada mais que a verdade. Besta!
Assim que a coletiva terminou, coloquei em prática o único plano infalível que minha cabecinha atormentada foi capaz de urdir: fui seguindo o piloto pelos corredores do aeroporto, esperando uma oportunidade de chegar bem perto e tentar fazer a pergunta. Em poucos segundos, havia uma multidão em torno do homem. Ele tentava andar rápido, os seguranças tentavam conter a horda, a horda tentava conseguir um autógrafo, e a repórter-noviça da Folha tentava fazer a pergunta idiota. No estica-e-puxa do saguão, Senna conseguiu escapar, os seguranças lograram em protegê-lo e até eu pude fazer a pergunta. O povo se ferrou, como sempre, todo mundo sem autógrafo. E Senna disse-me o óbvio: “Não quero falar sobre o Papa”, legitimando a mentira que eu não quis contar na redação desde o princípio.
Sem grandes novidades na volta à redação, ao velho computador de tela preta e letras cor de laranja. Escrevi a matéria, tudo encerrado. Até que, do outro lado do mundo, meu editor à época, Mario Andrada e Silva, demoliu a última parede de tijolos do meu sonho encantado. Mario já estava no Japão – ele cobriu aquela corrida – e telefonou à redação depois o fechamento, para ver se estava tudo sob controle.
Quando soube que eu tinha feito a coletiva de Senna, quis falar comigo. Breve explicação: tive a sorte de, no início da profissão, tornar-me uma espécie de pupila de um triunvirato de respeito, formado por Mario, Flavio Gomes e pelo comentarista Edgar Mello Filho, amigos que se tornaram verdadeiros tutores. Do Japão, Mario queria ouvir meu relatório. Falei sobre os assuntos mornos da coletiva, Mario parecia satisfeito até que a burra aqui resolveu contar o episódio da pergunta papal. À simples menção de tal delírio, antes que eu concluísse o pastelão, Mario atirou: “Você não perguntou isso, perguntou?”
Eu disse que sim, e antes que explicasse a circunstância, Mario passou-me um sabão via Embratel que borbulha nos meus ouvidos até hoje, dizendo que eu iria ficar com fama de idiota perante os outros repórteres e até Senna seria capaz, a partir dali, de me identificar como “a repórter do Papa”. Senna, naturalmente, não seria capaz de lembrar da minha fisionomia, dada a muvuca total em torno dele, mas nem tive ânimo para contestar o chefe. Até porque chefe não se contesta, apenas se obedece.
E eu fui para casa arrasada. Lembrem-se de um detalhe importante: eu era novata no meio, pouca gente me conhecia. Se fosse um pouco mais manjada entre repórteres e fotógrafos de Esportes, não teria vivido o mico final, que aconteceu no dia seguinte. De cabeça inchada como se tivesse tomado uma goleada do Palmeiras, fui despertada pelo telefone: era uma amiga da família, que toda orgulhosa ligava para dar os parabéns à minha mãe. Motivo da comemoração: na primeira página do caderno de Esportes do Estadão, Senna aparecia atordoado no meio de um monte de gente. Do seu lado direito, a repórter da Folha, com a melhor cara de pastel que poderia fazer uma jovem jornalista em pânico.
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Lembrar desse episódio de redação me fez recordar outro, ocorrido no começo de 1993. Era janeiro, recesso da Fórmula 1, e o repórter Flavio Gomes foi escalado para fazer uma matéria especial sobre os dez anos da morte do jogador Garrincha. Esse ponta-direita fantástico nasceu em uma cidade fluminense batizada com o sugestivo nome de Pau Grande. E lá foi o incansável Gomes para o interior do Rio, refazer os passos do Anjo das Pernas Tortas.
Faz só doze anos, mas as telecomunicações eram bem outras naqueles tempos, e para se comunicar com a Redação, os repórteres viajantes lançavam mão da chamada a cobrar, que é sempre precedida daquela indefectível gravação: “Diga seu nome e a cidade de onde está falando…”, ao que o Flavio não titubeou: “Flavio Gomes, de Pau Grande”. A telefonista da Folha que atendeu tão estranho chamado, obviamente, bateu-lhe o telefone na cara.
Essa história está no livro O Boto do Reno, o primeiro do selo GPTotal, escrito por Flavio Gomes. O lançamento, com noite de autógrafos, acontece no dia 22 de fevereiro, na pizzaria Forno Brasile, Alameda dos Anapurus, 1.491. Se você quiser reservar o seu exemplar desde já, clique aqui.
Alessandra Alves |