Os últimos meses foram especialmente dolorosos para os amantes do esporte a motor e sua história. Iniciando um corte temporal de maneira um tanto aleatória, no dia 4 de dezembro ficamos sabendo da partida de Patrick Tambay, e apenas 19 dias depois foi a vez de seu compatriota Philippe Streiff ascender às pistas celestiais, ambos tendo enfrentado tempos difíceis em seus últimos anos entre nós.
Mal o novo ano começou e fomos bombardeados com a chocante notícia de que Ken Block, astro dos ralis e das acrobacias espetaculares, havia nos deixado em consequência de um acidente com trenós. Apenas dois dias depois chegou a notícia do falecimento de Michel Ferté, e antes mesmo do carnaval, no dia 2 de fevereiro, ainda teríamos de digerir a perda de Jean-Pierre Jabouille –o quarto piloto francês a falecer no intervalo de três meses! –, personagem central para o retorno dos motores turbinados à Fórmula 1, durante a transição das décadas 70 e 80. Por fim, no dia 13 de abril fomos surpreendidos com o acidente fatal do jovem e talentoso Craig Breen, piloto da Hyundai no WRC, durante um teste preparatório para o Rali da Croácia.
Tantas perdas representam um forte convite a reflexões, e fatalmente nos fazem olhar para tudo através de uma perspectiva diferente, menos alienada a respeito de algumas questões fundamentais e inescapáveis, sobre as quais tantas vezes preferimos não pensar.
Diz-se que a História é contada pelos vencedores, e no esporte a motor o que vemos não é muito diferente. Esmiuçamos e esprememos as carreiras dos principais expoentes em busca da última gota de suco, não raramente adentrando searas pessoais ou abraçando pautas de validade absolutamente questionável, tantas vezes ignorando narrativas e personagens que, com toda justiça, também fariam por merecer o devido reconhecimento histórico.
Entre os pilotos que recentemente nos deixaram, muitos definitivamente integram esse segundo grupo. Pessoas que sonharam, que tantas vezes não podiam contar com as facilidades de um sobrenome famoso ou uma conta bancária ofensivamente gorda, e ainda assim dedicaram a maior parte de suas vidas a essa aventura apaixonante das corridas. Sem ambições de perfeição, sem obsessão por estatísticas, acumulando cicatrizes, abandonos, histórias de vida por vezes inimagináveis, perdendo mais do que vencendo e, acima de tudo, tentando aproveitar ao máximo antes que tudo chegasse ao fim, de um jeito ou de outro.
Apreciar tais carreiras, e mais que isso, a contribuição fundamental de tais personagens às bases do esporte a motor, demanda postura diferente da que estamos habitualmente acostumados. Comparar números, por exemplo, é algo que perde o sentido aqui. Debater quem foi melhor, quem foi mais eficiente… Para quê? Será que já não somos mais capazes de seguir seus exemplos e apenas saborear um pouco a magia da Física sendo desafiada?
Espero, de verdade, que isso não se perca em nós. E é por isso que convido os amigos a trocarmos hoje a tradicional leitura pela apreciação de alguns vídeos de um de meus pilotos favoritos – que, de forma apropriada ao tema deste texto, era francês e nos deixou cedo demais, sem ter acumulado vitórias na proporção de seu talento e seu virtuosismo. Estou me referindo, é claro, ao saudoso Patrick Depailler.
Através de sua lembrança, presto minha homenagem a todos estes homens de pista que nos deixaram recentemente.
Tornou-se lendária a batalha entre Depailler e Peterson na volta final do GP da África do Sul de 1978, vencida pelo sueco e sua Lotus. Quem tiver a chance de ver aquela corrida na íntegra, contudo, terá a oportunidade de apreciar uma das tocadas mais exuberantes que já passaram pelo campeonato mundial.
Na altitude de Kyalami, com o ar rarefeito reduzindo substancialmente a carga aerodinâmica num momento em que a pilotagem sobre trilhos dos carros-asa estava na iminência de se impor, Depailler toureou sua Tyrrell com uma poesia tal que que não fui capaz de evitar a inveja. Inveja de tamanho talento, é claro, mas sobretudo da possibilidade de guiar um carro de corridas daquela maneira, numa configuração tão equilibrada e manhosa entre aderência mecânica e aerodinâmica, e ainda assim enfiar o pé sem pena, controlando derrapagens, se divertindo, permitindo a quem via de casa alguma identificação entre o comportamento daquelas máquinas e o de nossos humildes carros de rua, quando exageramos um pouco na empolgação em uma curva ou outra.
Ouvimos o tempo todo odes aos talentos exuberantes ou temerários de Ronnie Peterson e Gilles Villeneuve, e é muito justo que ambos sejam lembrados por tudo que fizeram, ou mais ainda pela forma como fizeram. A esse grupo, todavia, sempre acrescento a presença do bravo e virtuoso Depailler, sobretudo pelo que vi naquele dia específico, na África do Sul.
Guiar um carro de corridas daquela maneira deve ser o tipo de experiência que, por si só, já justifica uma vida inteira.
Dedico este texto à memória de minha amada mãe, que ainda estava viva e relativamente bem quando o tema me veio à cabeça.
Assim como os pilotos que citamos aqui, ela também jamais será esquecida.
Forte abraço a todos.
3 Comments
Belo texto, aprendi a olhar os outros “personagens” da F1 com mais carinho e atenção, após fazer o mesmo pelas equipes menores.
Sentimentos à familia.
Marcio,
adorei tanto a coluna que não resisti e revi os videos.
“… Inveja de tamanho talento, é claro, mas sobretudo da possibilidade de guiar um carro de corridas daquela maneira, numa configuração tão equilibrada e manhosa entre aderência mecânica e aerodinâmica, e ainda assim enfiar o pé sem pena, controlando derrapagens, se divertindo, …”
Isso me fez lembrar de Emerson quando guiou um “carro asa” e comentou … não gostei de pilotar, por que não me diverti …
Sou tbm um fã adorável do rock dos anos 70 … e fiquei impressionado de quantos “dinoussauros” partiram em 2022 … inclusive recentemente o Gary Rossignton um os pilares do Lynyrd Skynyrd (minha banda preferida).
E como me impactou ler a sua coluna e saber que Tambay, Jabouille, P. Streiff também partiram …
Fernando Marques
Marcio,
Como sou da geração 60, e assisti os melhores anos da fórmula 1, me refiro aos anos 70 e 80, não tenho como não me emocionar com a sua coluna e os vídeos.
É um deleite pra mim.
Imagina hoje em dia uma briga pela liderança de uma corrida?
É um querendo botar o outro pra fora da pista num show de anti esportividade.
Aí a gente vê essa disputa entre Depallier e Perterson e vê o que é jogar limpo na pista.
Penso em ter lido a melhor coluna do Gepeto em 2023.
Como era bom ver a formula 1 naqueles tempos.
Posso até estar errado. A França foi ter um piloto campeão na fórmula 1 talvez, me desculpa o termo, com um dos mais bundões que ela produziu se comparado ao F. Cervert,
Jacques Laffite, Pironi , Depallier como exemplos
Fernando Marques
Niterói RJ