O mais prezado tesouro – Parte 1

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A mitologia grega nos regala uma infinidade de relatos sobre a conduta e o comportamento humano. Os antigos gregos souberam desentranhar muito bem o que de mais característico há em nós e o descreveram magistralmente, expondo tudo nos mais diversos personagens da sua  mitologia, fossem Deuses ou simples mortais, de forma que podemos extrair profundos ensinamentos morais que foram sendo transmitidos através dos tempos e que seguem em plena vigência até hoje.

Um desses personagens que nos mostra uma de nossas piores misérias, o encontramos na obra que nos relata o drama do Rei Midas. Incluída nos chamados pelos gregos como os “sete pecados mortais”, encontramos a cobiça, e Midas a personifica em sua máxima expressão. Midas, o rei da Frigia, vivia em seu palácio com sua filhinha rodeado de esplendorosas riquezas, mas… Ainda ansiava por mais, pois sua cobiça não tinha limite.

Certo dia, Midas encontra em seu jardim um sujeito ébrio e desorientado que Midas logo reconhece ser Sileno, companheiro de farras do Deus Dionísio, a quem Midas presta ajuda e hospitalidade. Já recuperado, Midas leva Sileno ante o Deus, quem, em agradecimento, diz a Midas que lhe concederia o desejo que este quisesse.

Sem duvidar e cegado por sua cobiça, Midas pede a Dionísio que lhe conceda o poder de transformar em ouro tudo quanto tocasse. Ainda reticente Dionísio concede o tal poder e Midas vai embora totalmente comprazido. Já no seu palácio, Midas começa a fazer uso de seu poder, convertendo em ouro tudo o que encontra: mesas, cadeiras, lustres, etc. O tal rei estava exultante com seu poder e, quando a sua filhinha entra na sala e vê o pai tão feliz, logo se contagia de tanta alegria e corre a abraçá-lo. Midas, em pleno jubilo, estende os braços e acolhe a filha em seu peito, momento em que, aterrorizado, vê como a suave pele da menina e seus sedosos cabelos começam a se transformar no frio e amarelo metal. Então Midas, aflito e com lágrimas nos olhos, percebe que, apesar de todas as riquezas que possuía e a possibilidade de conseguir mais… Havia perdido seu mais prezado tesouro.

 

Desde já muitos anos que a Formula 1 vem padecendo de uma crônica incapacidade de promover a emoção e a expectativa que despertava anteriormente. Com o intuito de contornar essa carência, a FIA vem introduzindo diversas modificações no regulamento com o propósito, segundo diziam, de equilibrar o rendimento das equipes e, assim, proporcionar uma competição mais nivelada. No entanto, tão louvável objetivo vinha causando justo o efeito contrário com as medidas postas em pratica e, como ultima e eu diria que até desesperada tentativa, foi implementado o tal limite orçamentário ( Budget Cap ).

Deste modo se esperava que limitando o dinheiro que as equipes pudessem gastar a uma determinada soma igual para todas… O seu rendimento se equilibraria. Porem, nestes três anos em que o tal limite esta em vigor, ainda não se aprecia nenhuma mudança na relação de forças entre as equipes.

Por agora, as três grandes – Red Bull, Mercedes e Ferrari – continuam no topo e as do fundo do pelotão… Também continuam lá embaixo.

Outro dos argumentos dados para a implementação desse limite orçamentário era o de liberar as equipes mais “pobres” de suas constrições financeiras e conseguir um maior equilíbrio entre as escuderias, de modo a aumentar as disputas entre elas e, portanto, aumentar a emoção que se espera de uma competição. Contudo, me resulta chocante que, paralelamente às medidas tendentes à redução de custos das equipes participantes… Se endureçam as condições para aquelas que tenham aspirações de participar.

Assim e segundo os critérios estabelecidos pela FIA, qualquer aspirante deve de se comprometer a cumprir uma serie de estritos requisitos. Só então a candidatura será examinada pela FIA, quem avaliara se o solicitante dispõe da necessária infraestrutura, capacidade financeira, recursos humanos qualificados, experiência técnica, etc. O aspirante também deve assumir o compromisso de participar em todas as provas da temporada e a fornecer o nome dos pilotos que tenham contrato com a equipe.

Só assim a FIA decidirá se aceita a sua inscrição ou a rejeita.

No entanto, ainda no caso de que as condições sejam cumpridas, a equipe aspirante,  terá de pagar uma taxa de inscrição de nada menos que U$ 200 milhões de Dólares e, finalmente, contar com a aprovação definitiva da Liberty, a detentora dos direitos comercias da Formula 1, em combinação e unanimidade com as equipes.

Assim me parece que a FIA apenas estabeleceu umas condições que agradam à Liberty e às equipes, ficando por conta destas decidir em ultima instância se aceitam ou não um novo participante, numa atitude que recorda a Poncio Pilato quando, perante a difícil decisão de Salvar Jesus ou não… Simplesmente “lavou-se as mãos“.

Deixar essa capacidade de eleição nas mãos das próprias equipes, me parece algo contrario à essência mesma da competição, pois permitir que uns competidores escolham com quem querem competir não me parece muito ético e, certamente, nada esportivo. Assim, até me custa imaginar que as atuais equipes estejam dispostas a permitir que algum aspirante que cumpra com todas as exigências e que, portanto, possa representar uma ameaça real ou potencial… Seja acolhido com os braços abertos. O mais provável é que seja visto com receio !

No que me diz respeito, opino que a pista é a única que está qualificada para determinar de maneira imparcial se uma escuderia cumpre os requisitos, pois isso não pode ser feito desde um escritório por meio da burocracia. Já vimos equipes que cumpriam todos os critérios, como Toyota, Honda ou Haas-Lola, e nada disso foi suficiente para eles obterem bons resultados nas pistas. Deste modo, temo que tantos requisitos sejam apenas outro obstáculo no tortuoso caminho dos aspirantes à categoria.

Pior ainda é que as equipes até querem que essa taxa seja incrementada. Concretamente a Williams pleiteia somas em torno de U$ 600 a 700 milhões. Segundo acordo com a Liberty, esta pode renunciar à taxa, mas precisaria do consentimento das equipes para fazê-lo e estas não parecem dispostas, visto que se espera uma recuperação do negocio publicitário, fruto do fim da pandemia. Esse dinheiro da taxa, supostamente, se dedicaria a compensar as equipes já presentes no grid pela perda de receita derivada de dividir os prêmios que recebem entre mais equipes.

Porem, o curioso é que, segundo o acordo de Concorde, ficou estabelecido que até 12 equipes poderiam ser inscritas no campeonato, entretanto apenas dez equipes tem se apresentado nos últimos anos, isso quer dizer que essas dez escuderias vem recebendo mais dinheiro do que esperavam, portanto não vejo que há “perdas” que compensar !

Assim, ainda que se diga que se pretende incentivar novas incorporações ao “circo”, esta vultosa taxa se converte num fator dissuasório, pois resulta difícil imaginar que alguém vá pagar a taxa, que equivale a mais do que custa um ano de competição, antes sequer de começar a competir. Isso só está ao alcance de grandes corporações e, mesmo assim, o recente acordo da Audi com Sauber nos mostra que é mais rentável entrar via uma alguma equipe já formada.

Assim, mais do que uma taxa de ingresso… Até parece uma extorsão exercida pelas atuais equipes a quem se atreva a desafiar a sua privilegiada posição, de tal maneira que isso deixa fora do páreo a qualquer equipe independente que sonhe com a formula um !

Com isto, me parece que as equipes tratam de se assegurar que, no eventual caso de que queiram ou tenham de deixar a categoria, o seu lugar no grid tenha um bom valor, além do valor próprio dos bens da equipe. Assim, esse lugar se converte em si mesmo num ativo bem valorizado e independente do sucesso ou fracasso da equipe em questão, pois para quem queira entrar no campeonato, sempre será mais barato comprar o lugar de alguma das equipes existentes do que bancar outra própria desde zero e, além do mais, pagar a taxa de U$ 200 milhões.

No caso da Williams creio que não há duvida de que seu interesse em aumentar a taxa é o de aumentar seu próprio valor como equipe, pois U$ 200 milhões foi justamente a soma que Dorilton Capital pagou pela equipe em agosto de 2020. De tal maneira que para a Dorilton, como investidor, seu objetivo é a busca do máximo beneficio possível desse investimento numa futura venda.

Por agora, com a implantação dessa taxa, já garantiram a recuperação do investimento… Mas ainda querem muito mais ! Deste modo o termo “investimento” não é mais do que um eufemismo para nos referirmos à especulação, quer dizer… Á cobiça.

Um negócio, qualquer negócio, ou neste caso qualquer equipe, que fracasse em seus objetivos acabará indo à falência, porem, com esta taxa, seu lugar no grid sempre manterá esse valor “artificial” e, assim, os proprietários das atuais equipes se asseguram cobrar uns bons milhões ainda em caso de falência. Ainda assim, creio que é o mercado o único que deve estabelecer o valor de uma equipe… Em função do seu rendimento e retorno aos proprietários e patrocinadores e não por meio de uma taxa aleatória fruto da cobiça.

Essa semana de forma até surpreendente veio o anúncio da não autorização para que a equipe de Michael Andretti seja admitida, apesar de todos os requisitos estarem dentro dos parâmetros exigidos pela FIA, isso acaba reforçando a minha tese dessa ganância escancarada das atuais equipes.

Na segunda parte dessa coluna, vai ao ar dia 09/02,  vamos resgatar como muitas equipes nasceram e agora toda essa ganância tem tirado essa possibilidade e isso não tem sido possível

 

Até lá

Manuel Blanco

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

2 Comments

  1. Lucas Giavoni disse:

    Querido Manuel,

    Obrigado por mais uma vez escancarar os aspectos mais pusilânimes do esporte de maneira direta, didática e incontestável. O que estão fazendo com a Andretti era até previsível, mas não deixa de ser nojento.

    Ansioso pela Parte II.

  2. Fernando Marques disse:

    Manuel Blanco,

    a politica no esporte nunca foi saudável para com a competição …
    Esses regulamentos cada vez mais ficam complicados.
    E a cada ano que passa as corridas ficam mais chatas …
    hoje esse é o retrato da Formula 1 … a dinâmica das corridas está diferente … ou se insere neste contexto ou então sei lá …
    vamos que vamos

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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