Que tal rever os fundamentos que animaram a F1 ao longo dos seus 60 anos?
Entre os anos 50 e 70, a categoria apoiou-se nos seguintes fundamentos, aqui hierarquizados por importância:
1 – a premiação do máximo desempenho técnico e esportivo, refletindo também, mas não necessariamente, a condição de riqueza da equipe. (Uma explicação sobre este fundamento: carros de F1 buscam ser sempre aqueles que arrancam, freiam e retomam velocidade mais rápido do que os de qualquer outra categoria; carros de Fórmula Indy e outras formas degeneradas de automobilismo, como dragsters, podem ser mais velozes apenas em algumas condições).
2 – Regulamento técnico aberto, permitindo ampla liberdade para projetistas de carros e motores.
3 – Predomínio total da aderência mecânica sobre a aerodinâmica.
4 – Corridas em formato de Grande Prêmio, em autódromos selecionados pelo seu desafio, diversidade e tradição.
5 – Um campeonato mundial com pontuação estabilizada, permitindo comparação direta entre pilotos de diferentes temporadas.
6 – Uma organização do campeonato que se poderia definir como simples, as autoridades influindo pouco mais do que no calendário de corridas e fixando regulamentos que restavam intocados por anos.
A partir do final dos anos 60 – mais precisamente do GP da Bélgica de 68, quando várias equipes começaram a usar aerofólios, algo que existia no automobilismo desde 66 -, o Fundamento 3 começou a mudar de forma progressiva até ter se invertido totalmente.
Hoje, a aderência aerodinâmica predomina sobre a mecânica de tal forma a moldar as corridas à sua feição. A aderência aerodinâmica predomina porque faz os carros serem mais rápidos – numa definição técnica, ter a sua velocidade média o mais próxima possível da velocidade máxima. Esta inversão de fundamento é, portanto, apenas decorrência da radicalização do Fundamento 1. Por exigir investimentos maciços em pesquisa, túneis de vento e testes, tal inversão acentuou as necessidades de riqueza das equipes, valorizando-a como não era até então. Também o Fundamento 2 está na origem do fenômeno, já que as autoridades esportivas não impuseram, até os anos 80, limites à criatividade dos projetistas. Na Nascar, por exemplo, as pesquisa aerodinâmicas foram, desde sempre, severamente limitadas.
A progressiva inversão do Fundamento 3 dá origem àquele que, na visão dos dirigentes, é o mais sério problema da F1 atual: a falta de emoções/ultrapassagens, um falso problema, como vimos aqui tantas vezes, já que a categoria sempre privilegiou o máximo desempenho e a liberdade dos projetistas, resultando nas hegemonias que pontuam a F1 desde a sua primeira corrida.
Mais para o final dos anos 70, refletindo uma evolução natural do esporte, do automobilismo e do mundo, o Fundamento 6 começa a mudar. O volume de dinheiro torna-se cada vez maior, mercê dos patrocínios às equipes e dos direitos de transmissão do campeonato pela TV, uma novidade em si, já que até então as transmissões eram negociadas corrida a corrida. O produto F1 ganha dimensões que aguçam ambições capitaneadas por Bernie Ecclestone. Os regulamentos técnicos e esportivos seguem amplamente abertos mas os parâmetros de organização do campeonato e das corridas começam a ser alterados de forma a canalizar os crescentes fluxos de dinheiro para os bolsos de Bernie e das equipes, nesta ordem.
Nos anos seguintes, esta tendência se acentuará, fazendo com que toda a F1 seja redefinida por ela, a ponto de demandar uma nova redação para o Fundamento 6: “uma organização do campeonato cada vez mais complexa, voltada para a máxima e crescente geração de receitas e lucros para Bernie Ecclestone e as equipes, as autoridades fixando regulamentos com o propósito principal de atender a este imperativo e influindo cada vez menos no calendário de corridas”.
O ponto de ruptura no Fundamento 6 é 82, ano em que a F1 quase rachou em duas, o que só não aconteceu porque predominou o ponto de vista de Bernie e das equipes sobre o da Fia que, a partir de então, assumiu o papel de mera agência reguladora ou menos do que isso.
Coincidentemente, 82 é também o ano em que o Fundamento 2 começa a mudar. Até então, as limitações aos projetistas eram mínimas e normalmente ditadas por propósitos de segurança. Foi esta a justificação que levou as autoridades, no final de 82, a proibirem os carros asa, resultado exasperado, por sua vez, da nova face do Fundamento 3.
Desde então, a intervenção nos regulamentos técnicos são cada vez maiores, culminando com a situação atual, onde um número considerável de peças e sistema dos carros são unificados por regulamento, tendo-se discutido seriamente a hipótese de se fixar motor e chassi comum a todas as equipes. Hoje, os dirigentes entendem ser até positiva a mudança frequente do regulamento técnico, considerando-se que este pode ser um ponto de geração de desequilíbrio capaz de renovar e ampliar o interesse do grande público.
Também o Fundamento 4 foi sendo gradativamente remoldado. O formato dos GPs seguiu igual, ainda que alguns possam argumentar que a imposição do reabastecimento a partir de 94 tenha dividido a corrida em baterias, mas a escolha dos autódromos deixou de obedecer a critérios de excelência e tradição, passando a atender a interesses de natureza comercial e, em patamar bem inferior, aos de segurança dos pilotos e conforto das equipes e público.
O Fundamento 5 resistiu, a duras penas, preservando com pequenos retoques a pontuação originada em 50. Agora tudo mudou de uma vez. Temo que os próximos passos sejam impor à F1 uma pontuação ainda mais complicada – por exemplo, a atribuição de pontos conforme a posição dos pilotos volta a volta – e a detestável prática do play-off, de forma a preservar a “emoção” do campeonato até, na pior das hipóteses, a penúltima corrida. Não é de se desprezar inclusive a hipótese de que o próprio conceito de campeonato seja sacrificado em prol da valorização de cada Grande Prêmio, não deixando nenhum deles correr o risco de ser “desvalorizado” comercialmente pela definição prévia da temporada.
Assim, a F1 inicia a sua sétima década tendo os seus fundamentos todos revirados à exceção do 1º deles. Mas é assim apenas porque ele não incomoda o Fundamento 6 que é, agora, indiscutivelmente, o mais importante. É particularmente detestável o fato de as autoridades esportivas terem perseguido implacavelmente outras categorias que poderiam, de alguma forma, fazer concorrência ao desempenho da F1, caso da Indy, Sport-Protótipo e Can-Am.
Estudar e discutir fundamentos é essencial. O sucesso e a permanência de uma atividade esportiva – o mesmo vale para uma infinidade de outras coisas na vida – dependem da preservação dos seus fundamentos. Firmes, reais, populares, eles garantem a continuidade. O futebol parece ser o melhor exemplo do que quero dizer.
É por isso que sempre me aferro à defesa das tradições da F1 – mas isso, agora, ficou completa e irremediavelmente para trás.
Esta coluna foi publicada originalmente em 11 de fevereiro de 2010. A novidade, desde então, é a implantação da loteria pneumática da Pirelli que, tenho certeza, veio pra ficar.
Abraços
Eduardo Correa
1 Comments
Essa coluna foi uma das melhores que já li aqui no gepeto.
Na época que ela foi escrita, entrou nas top 5 da minha lista.
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR