A batalha do século

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Senna chegou à McLaren para encarar o maior desafio de sua carreira.

Senna na McLaren, parte I

36 pole-positions e 20 vitórias (21…) em 48 GPs. Dois títulos e um vice-campeonato em três temporadas. Esses números, se observados de forma distante e sem o entendimento do contexto, podem parecer o currículo de Juan Manuel Fangio – e a comparação com o argentino cinco vezes campeão mundial é a melhor maneira de ilustrar o domínio de Ayrton Senna na reta final dos anos 80.

Sem dúvida, o mais impressionante é observar que o brasileiro anotou a pole-position em 75% das qualificações de que participou: a cada 4 treinos, em 3 ele era o mais rápido. Seu cartel de vitórias também é fantástico: sagrou-se vencedor em 40% das provas que disputou, estatística essa que poderia ter sido maciçamente superior – quase tão eloquente quanto seu índice de poles – não fosse um período em que a confiabilidade era o maior desafio enfrentado pelas equipes.

Numa conta rápida, entre 1988 e 90 Senna perdeu nada menos que 7 corridas por conta de algum problema no equipamento: 2 por motor, 2 por pneus, 3 pela parte elétrica. Em todas essas provas ele estava na liderança quando abandonou (não entra nessa conta o GP da França de 1989), sendo que em 3 delas era líder com menos de dez voltas para o fim.

É óbvio que tais números só podem ser obtidos quando se tem um equipamento dominante (“só com o melhor carro”, como dizem), e foi justamente assim que Ascari, Clark, Schumacher, Vettel e agora Hamilton construíram suas impiedosas sequências de vitórias, poles e pódios.

Porém, um diferencial a favor de Senna no comparativo com esses pilotos se resume em duas palavras: Alain Prost.

Ainda que saibamos serem exageradas as críticas e cobranças que falam em “falta de adversários” sempre que se questiona cada um desses domínios – em especial o de Schumacher –, é fato que nenhum deles enfrentou tão ferrenho e equivalente opositor, muito menos na mesma equipe!

Reconhecer e valorizar o talento de Alain Prost só faz engrandecer o mérito de Senna: o francês, de estatura baixa para os padrões estabelecidos, era um verdadeiro gigante: mais que seus 4 títulos e 51 vitórias, foi um dos grandes de todos os tempos pois tinha um estilo de pilotagem verdadeiramente singular que, qual Roger Federer no tênis ou Zidane no futebol, realmente parecia não fazer esforços mesmo quando estava em alta performance.

Senna, por sua vez, era do tipo espetacular: fosse em suas assustadoras voltas de classificação, em seu domínio sob chuva ou em circuitos de rua, ou ao lutar para manter sua posição quando seu carro era nitidamente inferior ou apresentava problemas mecânico-elétricos, o brasileiro se fazia notar pela condução agressiva e passional.

Quando a dupla se formou, no longínquo 1988, esses estilos não poderiam ser mais antagônicos.

Prost era recordista mundial de vitórias e já tinha dois títulos na bagagem, e no segundo deles bateu um conjunto – Williams-Honda-Piquet/Mansell – reconhecidamente superior através da máxima “colher o maior número de pontos possíveis em todos os GPs”; por outro lado, Senna vinha de estatísticas insufladas (foi o piloto com maior número de poles em 1985 e 1986, sendo também o que mais andou na liderança em 85), mas conseguira “apenas” 6 vitórias e uma terceira colocação como melhor resultado no mundial.

Então, Ayrton já era amplamente reconhecido como o piloto mais rápido da Fórmula 1, mas o conceito de Alain Prost não era menos impressionante: até 1987, o francês contabilizara 16 pole-positions e impingira a dois campeões mundiais, Niki Lauda e Keke Rosberg, as maiores humilhações de suas carreiras em se tratando de qualificações: Prost largou à frente de Lauda 29 vezes em 31 oportunidades, e superou Rosberg em 12 de 16 treinos. Além disso, superara o rapidíssimo René Arnoux (18 a 13) quando dividiram a Renault.

Ao todo, em 8 temporadas, Prost superou seus companheiros de equipe 97 vezes nas qualificações, e foi batido em apenas 26 ocasiões. Entre 1990 e 1993, já não mais como companheiro de Senna, o francês bateria seus companheiros de equipe Mansell, Alesi e Hill (dois campeões mundiais e outro rapidíssimo) em 34 de 47 classificações.

Levando-se tudo isso em conta, debruçar-se sobre os números finais do confronto Senna-Prost nas classificações é simplesmente assustador: Senna somou 26 poles nos 32 GPs disputados entre 1988 e 1989; Nas outras 6 etapas, largou à frente de Prost duas vezes. Foi, portanto, um massacre: 28 a 4.

A cada 8 treinos, Senna batia Prost 7 vezes. Um 7 a 1 tão emblemático quanto aquele da seleção alemã na última Copa do Mundo.

Quando números são tão discrepantes assim, ao invés de serem exaltados eles acabam sendo relativizados. Isso acontece em todos os esportes: no basquete, por exemplo, os feitos obtidos por quaisquer jogadores da NBA soam risíveis se comparados aos de Wilt Chamberlain (confira aqui um resumo do que o atleta conseguiu); assim, a solução é sempre dizer que “fulano obteve a maior pontuação/pegou o maior número de rebotes etc desde…“.

Com Ayrton, opta-se por de alguma forma diminuir ou a capacidade ou o comprometimento de Prost com as voltas rápidas em classificação.

A verdade é que se por um lado Alain tinha consciência de que Ayrton era mais rápido – isto é, o brasileiro conseguia encontrar o ritmo e as condições ideais para volta lançada antes do francês -, por outro ele sabia que em determinadas ocasiões podia ser tão veloz quanto Senna. Em situações específicas, como Suzuka-1989, onde havia muito mais em jogo do que a posição de honra no grid de largada, Prost de fato se concentrava mais no acerto ideal visando a corrida.

httpv://youtu.be/zu0ARkyUEn4

Numa visão ampla, porém, ele sempre buscava o limite na tomada de tempo.

Ao todo, Prost largou à frente de Senna quatro vezes: França e Espanha, em 1988, França e Canadá, em 1989. É curioso que Ayrton jamais superou Alain na terra natal do adversário: em 1988, o francês foi pole com uma vantagem de 0.478s; em 1989, nova pole para Prost, 0.025s à frente do companheiro. Em que pese a motivação de se correr em casa, o circuito de Paul Ricard – pista de média-alta velocidade – casava melhor com as características de Prost do que com as de Senna.

Outra pista em que Prost se aproximava muito de Senna nos treinos foi Montreal: em 1988, classificou-se pouco mais de um décimo atrás de Ayrton; em 89, bateu-o por diferença semelhante. Já em autódromos como Hockenheim, Monza (de alta), Hungria, Mônaco ou Detroit (baixa), o francês nunca conseguiu se aproximar do brasileiro, que rendia melhor que ninguém em circuitos “extremos”.

Naquelas duas temporadas, Senna não largou na primeira fila apenas uma vez: foi em Silverstone, 1988, onde partiu da… terceira colocação! Estabeleceu, então, dois recordes que permanecem até hoje: poles (8) e primeiras filas consecutivas (24). Senna também seria o primeiro piloto a marcar mais de 10 poles em um ano, e até hoje é o único a fazê-lo em três temporadas diferentes.

A colocação média conquistada por Senna – somando suas posições no grid e dividindo-as pelo número de GPs – em 1988-89 foi 1,22. A de Prost, 2,53. Somando-se as melhores voltas obtidas por cada um, o tempo médio de Prost seria 0.648s inferior ao de Senna!

Algumas décadas depois, Prost trouxe uma boa definição sobre como era o ambiente em Woking em 1988 e 89: “eu era um piloto McLaren usando motores Honda; Senna era um piloto Honda usando chassis McLaren“, disse o francês.

De fato, era mais ou menos assim: Prost estava na McLaren desde 1984 (e já havia disputado por lá a temporada de 1980), enquanto que Senna começou a trabalhar com a Honda no ano anterior, já tendo iniciado seus contatos com a montadora japonesa em 1985.

Assim, também eram desenhados os perfis dos pilotos: Prost, um excelente acertador; Senna, dono de uma espécie de sexto sentido para perceber as limitações do carro. Senna, um mago da volta lançada; Prost, o “professor” das corridas.

Desde 1985, quando travaram lindas e marcantes disputas como em San Marino ou Silverstone, Prost sabia que não poderia superar Senna em termos de rapidez. Mas percebeu que poderia compensar isso com sua inteligência, traduzida em excelentes estratégias e ritmo de prova.

Foi assim em 1988 e em 1989, e seria assim também em 1990, quando os dois já não mais dividiam o mesmo teto: Senna com muito mais poles e somando mais vitórias; Prost terminando mais provas, pontuando mais e subindo mais ao pódio. Uma versão mais intensa do que se vira nas temporadas anteriores, com Mansell vs Piquet.

O placar de títulos (Senna 2 a 1) parece justo, embora seja possível dizer que Senna talvez merecesse um 3 a 0 – e igualmente plausível seria afirmar que Prost poderia liderar o duelo em 2-1.

As mesmas vozes que procuram pormenorizar o massacre de Senna nas qualificações apegam-se de maneira excessiva ao regulamento dos chamados “descartes”, quando em 1988 Senna repetiu Surtees – campeão em 1964 marcando 40 pontos ante 41 de Graham Hill – e levou o título somando menos pontos no total (105 a 94 para Prost), mas contabilizou mais tentos (90 a 87 para Senna).

Esquecem, porém, que F1 não é CBF: os regulamentos não são modificados de uma hora pra outra, no decorrer da competição.

Foi justamente por isso que, querendo livrar-se da pressão ou não, Prost “jogou a toalha” no GP da Bélgica — ali, Senna vinha de 6 vitórias nas últimas 7 etapas, e lideraria 264 voltas CONSECUTIVAMENTE, a segunda melhor marca da história: “Ayrton será campeão mundial este ano. Ele está melhor do que eu e merece. Prefiro assim, de forma direta, do que ter que ganhar corridas contando com a sorte, como em Mônaco“, disse Prost na coletiva em Spa-Francorchamps.

httpv://youtu.be/UQQ7P_JBwT8

Ainda assim, a vantagem numérica que Prost obteve chama a atenção e pode ser explicada mais pelas falhas individuais de Senna, frutos de sua menor experiência, do que pela superioridade do francês.

Provas como Mônaco e Monza serviram para definir a diferença de Ayrton e Alain no lado psicológico, naquele período: uma distância quase tão grande quanto aquela que os separava em termos de velocidade. Além disso, um GP da Austrália onde Senna já era campeão e tinha uma luxação na mão esquerda (até aquela corrida Prost somava 96 pontos contra 88 de Senna) explica perfeitamente bem a diferença final.

No ano seguinte, como o mesmo admitia, Prost já estava resignado quanto à velocidade, e então deu início à guerra no lado mental. Questionamentos à relação de Senna com sua fé em Deus, além de acusações de falta de ética — o famigerado “acordo quebrado” em Imola-1989 — e reclamações diretas com Jean-Marie Ballestre deram o tom da temporada.

Mas o grande vilão do ano não foi o dirigente: Senna abandonou diversas corridas por falha mecânica. Algumas delas, como Canadá, EUA e Itália, eram vitórias praticamente garantidas. Prost, porém, teve atuações soberbas e soube dosar seu ritmo diante das necessidades, lendo as corridas como ninguém.

No fim, o melancólico acidente e a desclassificação de Senna no Japão serviram para resumir a grande decepção que foi 1989.

1990 iniciou-se com grandes mudanças: Prost na Ferrari, Senna e as dúvidas sobre se seguiria competindo ou não.

Mais uma vez, vimos Ayrton dominar nas qualificações: apesar de um mau começo, largando em 5º nos EUA, Senna tornaria a somar uma dezena de poles, outra vez largando quase sempre à frente de Prost (o francês teve 0 pole no ano!).

As diferenças de pilotagem e comportamento em pista continuaram proporcionando grandiosos espetáculos: Prost venceu no Brasil graças a um erro de Ayrton – muito semelhante, estética e contextualmente, àquele do GP da Itália de 88 –, e teve atuações míticas como no México. Senna, por sua vez, marcou o único “Grand Chelem” da história de Monza!

Ao longo do ano, a distinção Senna-montadora/Prost-equipe se fez muito clara: Prost conseguiu desenvolver a Ferrari, “ressuscitando” um campeonato que era considerado liquidado, e Senna estreitou ainda mais seus laços com a Honda, compensando na potência do motor as deficiências do MP4/6.

O capítulo final, a batida entre os dois, ilustrou perfeitamente o aspecto onde Senna mais afetava Prost: seu destemor.

Marcel Pilatti

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Leia também:
“Chegando lá”, Senna na Toleman – Lucas Giavoni
“The Lotus years”, Senna na Lotus – Cassio Yared
“Tri-talento”, Senna na McLaren (2ª parte) – Mário Salustiano
“Obra inacabada”, Senna na Williams – Márcio Madeira 

Especial Ayrton Senna
Especial Ayrton Senna
Por ocasião dos 20 anos da morte de Ayrton Senna, os colunistas do GPTotal dedicam uma série de textos ao tricampeão.

5 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Belo texto Amigo Marcel!!

    Senna era show, fato.

    Agora, o piloto mais cerebral que eu tive o privilégio de ver correr, foi Prost.

    O Professor era sarcástico, maquiavélico, e muito, mais muito veloz também.

    O que ele fez em Monza 1988, é histórico.

    Naquela época, o bicho pegava pra valer na F1.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  2. Alex Hall disse:

    Texto maravilhoso!
    Isso que vc escreveu foi o que eu sempre falei e que mt gente não consegue compreender.
    Senna teve só o melhor piloto da época como companheiro de equipe. Senna não era “nada” qd chegou na Mclaren. E por tudo isso que vc falou, continuo convicto que Senna é o melhor piloto da F1 de todos os tempos. Não é ufanismo da Rede Globo. Senna ganha em 99% das pesquisas feitas fora do Brasil. Enfim, belíssimo texto. Tão belo que me fez reviver em meus pensamentos, aqueles anos mágicos! 🙂

  3. Ronaldo disse:

    Elabore a sentença “Senna e as dúvidas sobre se seguiria competindo ou não.”

    • Ballista disse:

      Imagino que o Marcel se refere aos atritos entre Balestre e Senna após o episódio de Suzuka-89. Após o GP, Senna foi desclassificado da corrida, multado em U$100.000,00 e punido com suspensão das pistas por 6 meses. Senna, então, botou a boca no trombone e acusou Balestre de manipular o campeonato em favor de Prost. O dirigente francês respondeu com uma ameaça de cassar a superlicença do piloto brasileiro para 1990.

      Abraço

      Ballista

  4. Fernando Marques disse:

    Não resta duvidas que o duelo Senna x Prost foi o maior já visto na Formula 1.
    Os números e circunstâncias do resultado deste duelo estão magnificamente demonstrados pelo belo texto do Marcel.
    Mas ao mesmo tempo este duelo também foi o maior em termos de anti esportividade já visto no circo..
    Numa entrevista com Piquet e Mansel, que fizeram também um grande duelo na Formula 1, destacam principalmente que o duelo entre eles nas pistas sempre foram limpos e esportivos … que jamais precisaram jogar o carro em cima de seu maior adversário para ser campeão ou vencer uma corrida …
    E infelizmente estes momentos de anti-esportividades vividos entre Senna e Prost possuem tanto destaque quanto aos feitos deles na pista …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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