A decisão que não foi

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Vimos na temporada de 2022 o título de pilotos ser decidido na corrida de Suzuka no Japão, após um tanto de trapalhadas da FIA por conta da chuva, ficou no ar um anticlímax pela forma como tudo aconteceu, Max Verstappen confirmou o favoritismo e conseguiu sair como Bicampeão, na pista que pertence a Honda os japoneses tiveram o prazer de ver um carro movido por um motor de sua fabricação ser campeão, mesmo com anticlímax

Na temporada de 1987 quando a pista de Suzuka estreou como sede do GP japonês, também houve um anticlímax, diferente de agora, mas houve

A equipe Williams na ocasião usava os motores da Honda e seus dois pilotos, Nelson Piquet e Nigel Mansell eram os únicos com possibilidade de se sagrar campeão daquela temporada

O inglês Nigel Mansell teve uma carreira marcada por altos e baixos e muitas vezes com sequências de ironias, nesse GP acabou que ele somou mais uma ironia.

Na sexta feira a noite Suzuka não havia tido a corrida, mas Suzuka era um punhado de imagens quebradas, dois dias antes do GP.

1987 havia sido uma temporada de domínio da equipe Williams-Honda com Mansell e Piquet competindo um contra o outro.

Nos dias atuais essa é uma frase fácil e confortável de escrever, entretanto parceria não seria uma definição na relação entre os pilotos, desde a pré-temporada na preparação para a primeira corrida, no Brasil, onde uma entrevista que Piquet havia concedido a revista Playboy, o clima ficaria pesado.

Nela, Piquet disse algumas coisas não muito educadas sobre a esposa de Mansell, a ponto de enfurecer outro piloto ao ponto dele se oferecer para segurá-lo enquanto Nigel o esmurrasse.

A coexistência dos dois ao longo do ano só foi amenizada porque a supremacia da dupla tinha em Senna (Lotus Honda) e Prost (McLaren) pilotos capazes de desafiá-los.

Foi a partir do GP do México, a antepenúltima corrida, que apenas Piquet com 73 pontos e Mansell com 61 pontos, poderiam se sagrar campeões que o clima azedou de vez. Senna com 51 pontos e Prost com 46 pontos0 estavam fora da disputa.

Quando todos saíram do Autódromo Hermanos Rodriguez na tarde de 18 de outubro, Piquet tinha se consagrado o franco favorito. Se ele vencesse Suzuka seria campeão, independente do resultado de Mansell.

Sua saída da equipe Williams já havia sido anunciada, em 1988 ele se transferiu para a Lotus, e dentro da equipe poucos eram os que ele ainda podia confiar, se houvesse algo que a cúpula da Williams pudesse fazer para reverter o título a favor de Mansell havia quem apostasse que isso aconteceria

Esse era o primeiro GP japonês em uma década e refletia o poder crescente do país nesse esporte. A mudança como mencionado encontrou em Suzuka a nova casa do GP, e somado a tudo a pista pertence a Honda

Mansell comentou: “Suzuka é uma total incógnita no que diz respeito a corrida. Nós já testamos lá, mas creio que tudo isso será praticamente obsoleto pois a pista foi alterada e será diferente com todas as equipes presentes”.

Mansell pesou suas palavras cuidadosamente antes mesmo de embarcar para o Japão. Obviamente ele havia testado lá – Honda era dona de Suzuka – mas os demais times ainda não haviam testado ou corrido e esse era um fator que podia pesar contra.

Antes de 1987 apenas em duas vezes, o Japão já havia recebido um Grand Prix, 1976 – o ano de Hunt – e 1977, mas os dois na pista de Fuji e com uma geração diferente de pilotos.

Dos vinte e sete pilotos presentes em 1987 apenas Patrese conectava as gerações. Piquet disse que a pista era “muito estreita, muito acidentada e muito rápida”.

Mansell era muito rápido também. Na quinta-feira foi feita uma sessão introdutória, ninguém foi muito rápido, o negócio era conhecer a pista, o mesmo aconteceu na sexta durante a sessão da manhã ninguém foi muito rápido também.

Piquet teve problemas estomacais que o impediram de dar muitas voltas na quinta-feira, ele mal havia dormido aquela noite e na sexta ele aparentava cansaço.

“Eu não me sinto bem”, ele comentou, e não precisou dizer mais que isso. Bastava olhar seu rosto para saber disso.

Cinco minutos dentro da primeira qualificação Mansell deu uma volta prudente de aquecimento de 2m9.0s e depois um quente 1m43.0s, resfriou os pneus e marcou 1m42.6s. Taticamente isso era perfeito.

A pole provisória provavelmente ficaria em 1m42s apesar de que se caísse para 1m41s apenas ele e Piquet pareciam capazes de chegar nesse tempo.

Ann Bradshaw, fazia parte do time que cuidava da publicidade da Williams e tinha uma visão privilegiada do movimento de bastidores nos boxes, ela declarou o que viu naquela tarde: “Eu estava perto de Charles, amigo de Nigel, e Piquet estava na garagem. Ele havia acabado de retornar da volta mais rápida. Nós havíamos visto ele baixar o tempo assim como Nigel: que resolveu sair e se preparou. Eu lembro de Charles dizendo ‘Nigel vai fundo agora’. Nós achamos que ele seria muito mais rápido. Foi a forma como ele entrou no carro que nos fez pensar assim”

Cerca de vinte minutos de sessão já haviam se passado e Mansell seguia se comportando com grande astúcia técnica. Ele monitorou a pista, aferindo os tempos e o quanto mais rápida estava ficando.

Sendo a primeira disputa no contexto de GP, a pista de Suzuka ainda não tinha uma película apropriada de borracha dos pneus, que melhoraria a aderência e consequente velocidade aos carros.

Mansell foi a pista, a sua volta de aquecimento foi concluída, e Mansell acelerou. Movendo-se rápido ele chegou numa curva em S por trás do paddock, uma direita, uma leve virada, uma esquerda.

Nos boxes Ann Brandshaw mantinha os olhos no pequeno monitor que marcava os tempos das voltas. Continuando o comentário sobre o que ela presenciou: “Piquet e muitos outros estavam nos boxes. A TV estava numa parede e todos estavam assistindo. Mansell circulou pela direita usando muito bem a zebra, seu ímpeto natural lhe guiou ao longo da pista em direção a zebra da esquerda. Ele correu e o raio foi mais amplo e passou pela zebra a uma fração mais dentro do que antes. A poeira subiu. Houve a batida”

O carro estava sem aderência necessária.

Depois Mansell declarou: “algo está acontecendo, eu não sei o que, mas algo está acontecendo”

O carro já havia guinado um pouco e Mansell percebeu que estava perdendo o controle. Ele freou bruscamente e o carro deu uma forte guinada e girou, um movimento tão selvagem que deixou marcas pretas dos pneus no asfalto do circuito. Fumaça agora saia dos pneus do carro. O carro se movia agora rumo a uma parede de sete camadas de pneus. O carro ainda girava quando acertou a parede pela lateral. O impacto estimado foi de 225km/h.

A parede de pneus estourou como se uma bomba tivesse explodido nela. Pneus voavam como em uma cascata em fúria. O impacto arremessou o carro de volta ele se contorceu de novo. Por um milissegundo ele virou em um ângulo estranho e quase capotou. O carro pousou com enorme força no meio da pista, saltou mais uma vez e a asa traseira se partiu, saltou de novo – não tão alto – mas com força suficiente para lançá-lo em direção a pista.

Por muita sorte nenhum outro carro estava vindo.

O carro rodou suavemente na pista como um animal ferido e finalmente parou no acostamento, a cabeça de Mansell se projetou para trás contra a traseira do cockpit.

Ann Brandshaw ouviu um suspiro dentro do pit. Alguém disse “Nigel desmaiou”. Agora todos estavam fixados na tela da TV. Naquele momento ainda não tinham passado o replay. Tudo que se via era Mansell no carro com a cabeça para trás parecendo estar com muita dor.

Continuando Ann Brandshaw falou: “Sem o replay eu não sabia quão ruim havia sido apesar de ele parecer estar em agonia. Então mostraram o replay. Tudo ficou em silêncio no pit. Piquet ficou branco, pálido. Ao longo do ano ele Havia dito todo tipo de comentários sobre muitas coisas contra Nigel, mas posso lhe assegurar que ninguém nem ele disse nada. Todo mundo estava quieto. Não havia nada que pudesse ser dito”.

Outros pilotos passando pela cena não perceberam a gravidade. Eles só ficariam sabendo depois do ocorrido.

A coluna de Mansell estava seriamente machucada, também sua perna direita. A equipe de resgate precisou de cinco minutos para poder tirá-lo do carro, e nesse momento, sem o capacete, ele tinha um semblante de muita dor. Ele se lembra de ter sentido a maior dor que já sentiu. Eles o posicionaram numa maca até o centro médico da pista e em seguida de helicóptero para o hospital na cidade de Nagoya.

Nesse anticlímax Nelson Piquet era o campeão de 1987.

Isso não ocorreu a Piquet até depois de uma hora, uma hora e meia do incidente, quando levaram Mansell ao hospital, e ele foi declarado incapaz de disputar a prova no domingo

Ann Brandshaw tinha agora a responsabilidade de conduzir Piquet para a sala de imprensa pois havia grande pressão dos jornalistas para falar com ele, ao mesmo tempo que ela era cercada por pessoas querendo mais informações sobre o estado de Mansell.

A FISA foi consultada e eles disseram que eles poderiam usar a sala de imprensa, o que não é comum aos sábados, até porque Piquet se qualificou em quinto e não era obrigado a participar da tradicional conferência de imprensa pós-qualificações.

Ann Brandshaw conversou com Piquet e ele concordou em conceder as entrevistas, havia obvio a preocupação como ele reagiria ao misto de sensações, afinal ele havia acabado de conquistar um terceiro título, contra um rival que ele considerava um desafeto, ao mesmo tempo seria prudente ele falar de forma contida. Dentro da Williams alguns disseram que ele deveria falar, outros que não, mas foi melhor ele ter ido porque tirou todo mundo de suas costas e da equipe também.

Havia uma corrida a fazer. O paddock em peso estava preocupado com o estado de Mansell, no domingo não era claro a dimensão das lesões que ele havia sofrido ou o grau de consequências

Em suas declarações Ann Brandshaw continuou: “Pelo que eu testemunhei, Piquet se portou muito bem nessa situação. Eu senti que ele havia se abatido durante muitas coisas ao longo do ano, ele e Nigel tendo batalhado tanto não fez bem a ninguém a forma como o campeonato terminara. Nelson gosta de provocar as pessoas, mas falar mal numa circunstância daquela ele não se rebaixou a isso. Eu sabia que ele era capaz de lidar com coisas assim. Ele foi lá e falou com os jornalistas e ele afirmou que não era assim que pretendia ganhar o campeonato. De maneira alguma ele estava feliz”

Piquet disse que: “quando você vê alguém trabalhar o ano inteiro para lhe vencer e de repente ele voa e se machuca não é muito agradável. Ao longo do ano eu fui consistente e aproveitei algumas oportunidades. Terminei as corridas e é por isso que ganhei o campeonato”

Piquet passou o final da sexta 30 de outubro de 1987 numa recepção de um patrocinador. Ele tinha um semblante solene.

“Celebrações? Não, não era desse tipo”, disse Brandshaw. “Ninguém queria celebrar e de qualquer maneira Piquet estava indo pra Lotus e a Williams não ia ter o número 1 no carro no ano seguinte”

Assim foi como Suzuka viu a decisão de 1987

Até a próxima

Mário

Mário Salustiano
Mário Salustiano
Entusiasta de automobilismo desde 1972, possui especial interesse pelas histórias pessoais e como os pilotos desenvolvem suas carreiras. Gosta de paralelos entre a F1 e o cotidiano.

2 Comments

  1. Flávio Chaves disse:

    Era a segunda temporada que acompanhava, tinha 11 anos, lembro de muita coisa principalmente deste desfecho. Queria saber do colunista ou outro colega de comentários, quem era o piloto que seguraria o Piquet, para o Mansel esmurrá-lo?

  2. Fernando marques disse:

    Mario,

    Me lembro que neste fim de semana do GP do Japão de 1987, estava em Praia Seca , que fica na Região dos Lagos – RJ, na casa de meu avô.
    Eu vibrei muito quando soube da conquista do tri do meu ídolo Nelson Piquet.
    E me lembro da reação do Piquet em relação a forma como tudo se sucedeu, muito bem lembrada e relatada por vc na excelente coluna.
    GP do Japão, seja em Fuji, seja em Suzuka, decidindo um título mundial, sempre foi polêmica. Vide prost x Senna. Vide Verstappen agora.
    Acho que virou marca registrada o GP do Japão nestas ocasiões.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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