A rivalidade que existe entre Rosberg e Hamilton, prenunciada na temporada passada e eclodida esse ano, já vem desde muito antes: na excelente coluna “Em nome do pai”, Alessandra Alves fala sobre o quão longínquo e importante é esse duelo. Além do significado individual para cada um, a disputa entre os dois carrega consigo muitos símbolos.
Eles não apenas estão num mesmo time e dividindo um campeonato: seus traços de personalidade (um, extremamente apaixonado; o outro, um exemplar da dedicação) e as culturas a que pertencem (Nico é alemão, filho de finlandês; Lewis é britânico e negro) fazem deles protagonistas de uma interessantíssima disputa.
Muitos de vocês assistiram “Rush” logo de sua estreia, ou até mesmo antes. Eu demorei muito pra ver. Só consegui recentemente, creio que em Maio. Gostei demais do filme: a produção é ótima, as atuações idem, e creio que o livro que inspirou a película – de Tom Rubython – foi muito bem adaptado.
Porém, achei forçoso demais chamar Hunt X Lauda de “a maior rivalidade” da F1. Esse cargo certamente pertence a Senna e Prost, e não vejo como isso possa mudar.
Verdade que Hunt e Lauda – assim como Hamilton e Rosberg – possuem traços distintos que certamente contribuem para a polarização. Mas Senna (latino-americano, naturalmente carismático e com grande uso do marketing) e Prost (europeu, uma figura pouco atrativa e pouco afeita às mídias) também representavam universos e visões distintas.
Em poucas palavras, Alain Prost era um piloto completo: rápido em classificações e um excelente leitor de corridas, sabia dosar seu ritmo conforme suas necessidades: unia o melhor de Jenson Button e Fernando Alonso, por exemplo.
Ayrton Senna também cumpria todos os pré-requisitos, mas era do tipo que tinha determinadas habilidades mais destacadas: sua superioridade em voltas de qualificação era tanta que há quem diga que seu ritmo de corrida “não era lá essas coisas”.
Prost e Senna eram muito diferentes dentro das pistas. Exemplo claro é a mítica batalha de Suzuka, 1989: aquela que é por muitos considerada a melhor corrida da história se deu porque os pilotos da McLaren optaram por acertos completamente opostos em seus carros.
Fora delas, também: Senna traduzia uma verdadeira obsessão pela vitória, e por ela aceitava correr graves riscos nas pistas e abrir mão de muitos luxos fora dela; Prost não via motivos para passar de seus próprios limites e, quanto à vida pessoal, tem um casamento bem-sucedido e filhos.
A rivalidade de Senna e Prost foi tão perene e tão marcante, que creio ser necessária alusão a outros esportes para que seja bem compreendida.
Houve muitas rivalidades maravilhosas ao longo dos tempos em diversas modalidades (Ali vs. Frazier, Nadal vs. Federer), mas acho que a trama que melhor se relaciona com a história de Senna e Prost aconteceu no basquete: Magic Johnson e Larry Bird.
Larry Joe Bird – loiro, bastante tímido, filho de trabalhador rural – e Earvin “Magic” Johnson – negro, sorriso contagiante e cabeleira black power – duelaram desde os tempos universitários: fizeram a final nacional (o time de Magic foi campeão) e foram escolhidos juntos no Draft da NBA (Bird seria eleito o “estreante do ano”). Na Liga, mesmo com muitas estrelas em outras equipes, as atenções e as discussões sempre se polarizaram em Larry/Magic.
Magic era um atleta imparável: seu porte físico avantajado (é um dos jogadores mais altos a atuar como armador), suas assistências absolutamente inesperadas e decisivas, além de sua liderança – seria o perfeito capitão no futebol –, o tornavam um ícone daquilo que ficou conhecido como “Showtime”.
Larry, por sua vez, era o antídoto: tinha um alto nível de concentração (também confundido com frieza) e bolas de três mortais, além de ser do tipo brigador no garrafão; ao mesmo tempo, não era afeito a treinamentos duros na parte física, o que o levou a sofrer com lesões ao longo dos anos.
Os estereótipos que carregavam e a longínqua disputa entre Celtics e Lakers (algo como Ferrari e McLaren) fizeram com que se criasse um “ódio mútuo” entre os dois e seus fãs: prato cheio para uma imprensa faminta, e o impulso ideal para marcas esportivas. Foi assim que a All-Star teve a grande ideia de contratar os dois para estrelarem um filme publicitário.
A primeira reação de ambos foi de surpresa: “Tu tá maluco!? Eu gravar um comercial com Larry?!”, disse Magic. Em seguida, o camisa 32 abriu uma brecha: “Bem… vamos gravar em Los Angeles?”. Larry Bird também foi reticente: “Eu não vou pra L.A. gravar, não…”, mas levantou a hipótese: “se quiserem gravar, venham até minha casa”.
Foi um momento em que puderam conhecer um ao outro, e o respeito nasceu, ainda que mantendo-se os duelos nas quadras. Uma frase de Bird resume tudo: “Gosto muito mais de Earvin do que de Magic”. E Johnson declarou: “eu odiava quando diziam que ele era melhor que eu. Isso me incomodava, mas eu não admitia”.
Eles continuaram a disputar ano a ano a honra de “MVP” e os títulos da temporada. Fora das quadras, dificilmente se falavam. Até que veio o anúncio da descoberta do HIV e a posterior aposentadoria de Magic Johnson. Larry Bird conta da tristeza que sentiu, e de como isso o afetou: “só fiquei tão triste assim quando era criança, quando meu pai morreu”.
Impossível não lembrar do depoimento de Prost no dia da morte de Senna: “Uma parte de mim se foi. É como você ter um espelho e se ver nele. Aí o espelho se quebra e você perde o seu referencial”.
A semelhança das trajetórias dos duos Magic/Bird e Senna/Prost é tremenda: Bird venceu o MVP consecutivamente entre 1984 e 86, e Magic levou o troféu em 87, 89 e 90. Eles chegaram a disputar três finais: Bird venceu em 1984, Magic em 85 e 87; Ayrton e Alain somaram 7 títulos entre 1985 e 1993 e disputaram em condições de igualdade ou muito próximas por três temporadas (88-89-90), com Senna levando o desempate.
Outra curiosidade se dá porque apenas 6 meses separaram o adeus de Prost às pistas (ocorrido em 7 de novembro de 1993) e a morte de Senna: o anúncio da aposentadoria de Johnson aconteceu em 7 de novembro de 1991 e a retirada das quadras de Larry veio durante 1992.
Por fim, para aumentar ainda mais a simbologia, nos dois casos um certo Michael – que já incomodava antes – começava a dominar as quadras/pistas nesse período de adeus dos grandes rivais. E, nos dois casos, o Michael conquistou mais títulos e prêmios/vitórias que a dupla, em parte justamente por não ter um “espelho” que pudesse quebrar.
Quando Magic finalmente foi indicado ao Hall da Fama do basquete, ele fez questão de que a apresentação fosse feita por… Larry Bird. Uma demonstração de respeito profunda. Emocionante.
Vale relembrar o trecho final da coluna “O combate contra Prost”, de Eduardo Correa: “Em Ímola 94, eles pareceram ter reencontrado a paz, entre eles e consigo próprios, a partir de mútua admiração e respeito. Na próxima vez que estiveram próximos, um Alain Prost sinceramente abatido segurava uma das alças do caixão de Ayrton Senna.”
A temática Larry vs. Magic já foi até peça da Broadway. Portanto, acho que um “Rush – parte 2”, estrelando Senna e Prost, seria absolutamente sensacional, não?
Sonhar não custa nada.
Abraços a todos.
16 Comments
Um dos melhores textos que já li no GPTotal, simplesmente ‘FELOMENAL’.
Abraço
Muito obrigado, Murilo!
Abraços
Marcel e amigos
eu diria nada a acrescentar em suas palavras, apenas a respeito da rivalidade de Hunt e Lauda contada no filme Rush, aconteceu em minha opinião por duas razões.
A primeira bem óbvia e já comentada por Ron Howard ,é que ele quis retratar dois estilos diferentes de encarar o esporte e a vida e considerando o tempero da quase morte de Lauda estavam lá então os elementos que o cinema tanto precisa.
O segundo ponto é bem mais triste e complexo em minha opinião, como a partir dos anos 80 todos os direitos de imagem e autorais estão sob controle de Bernie e da FOM, não podemos contar com a simpatia desse senhor para liberar scripts de histórias que envolvam a F1 e seus personagens, basta lembrar que a quase 20 anos atrás houve a tentativa de Hollywood produzir um filme sobre Senna, devidamente vetadas pela FOM que se recusou a liberar os direitos autorais.
Infelizmente um filme sobre a que também considero a maior rivalidade da história é quase utopica de acontecer.
abraços
Mário
Belo texto Marcel!!
E as rivalidades sempre serão bem vindas no esporte, pois elas são parte do “combustível” para que um atleta possa quebrar limites e recordes.
Realmente Fernando, a rivalidade de Senna x Prost era mais forte extra pista, da mesma maneira que foi entre Piquet x Senna, um verdadeiro prato cheio para a imprensa, pois os caras falavam o que tinham vontade aos quatro ventos, não estavam nem aí, chegando muitas vezes num nível de baixaria mesmo.
Agora, Larry Bird e Magic Johnson jogavam demais, assim como Michael Jordan, e eram personagens de bom caráter, o que os deixavam ainda mais grandes.
Esta comparação dos três do basquete com os três da F1 é muito boa, pois ambos os Michael tentaram a sorte em outros esportes, e sem sucesso.
Era bom demais assistir aos jogos da liga americana, até a TV bandeirantes começar a transmitir os jogos, tínhamos a assinatura da TVA em casa muito para assistir a NBA e também a MTV.
E quando aquela seleção americana de basquete disputou as olimpíadas de Barcelona 92, olha, dificilmente veremos tantas feras carismáticas como estiveram naquele timaço.
Que Geração!!
Um exemplo bom foi quando nossa seleção de basquete os enfrentou na mesma olimpíada, e ao término da partida, Oscar e cia os referenciaram de tal maneira, que foi emocionante de se ver.
Era uma Geração Fantástica, e que deixou saudades…
Recomendo assistirem o filme(documentário) do Magic Johnson, bom demais.
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Mauro, começando pelo final: qual documentário do Magic você está recomendando? o “The Announcement”? De fato, fabuloso – e em contrapartida recomendo “A Courtship of Rivals”, que retrata perfeitamente a rivalidade de Bird e Magic.
Isso que você falou, sobre a NBA/Band, é outra problemática semelhante à F1 que estamos vendo hoje: a tendência do fim das transmissões em tv aberta.
Nos dois casos, os ídolos é que sustentaram. O Produtor da NBC chegou a dizer, nessas palavras, que “LArry e Magic salvaram a NBA”, e depois, com Michael Jordan, a globalização.
Só que, aqui no Brasil, a saída de Jordan se assemelha muito à morte de Senna: queda brusca do público.
A história mostra que a NBA e a F1 sobrevivem muito bem sem o público brasileiro. Mas… e nós?
Um abraço!
Isso, me refiro ao “O Anuncio” que a ESPN exibiu, o outro eu não tive a oportunidade de assistir.
E realmente, nós, público brasileiro, infelizmente vamos ter que dançar a música que as emissoras tocarem, pois não consigo ver outra forma.
Se pelo menos na TV globinho passa-se desenhos como Thundercats, He-Man, Ton & Jerry, Corrida Maluca, X-Men, Caverna do Dragão, seria menos ruim, mas tem cada desenho tosco que só deixa o futuro mais e mais negro…
Abraço!!
Sua observação sobre os desenhos é a pá de cal, Mauro.
Concordo plenamente.
Somos privilegiados por ser testemunhas de grandes rivalidades e do nascimento de mitos. Meus netos morrerão de inveja, pois além dos mencionados na matéria sou ainda contemporâneo de Schumacher, Loeb, Rossi, e mais atualmente, Alonso, Vettel e Marques; além de tantos outros aspirantes à eternidade.
A rivalidade faz parte do esporte … é um fator importante para a existência do esporte … Agora historia da rivalidade entre Lauda e Hunt em 76, contada no filme Rush (ainda não assisti) e tão comentada nos dias de hoje não era assim tão percebida, ao menos pela midia. Em 76, os entraves dentro das pistas davam mais ibope do que os de fora
A rivalidade entre Senna e Prost chamou muita atenção pelos entraves fora das pistas … onde as declarações de ambos sempre foram agressivas e ofensivas … ao fim das corridas Hunt e Lauda se respeitavam .. não acontecia isto entre Senna e Prost …
Eu, na minha opinião, Senna e Prost perderam a noção do limite do bom senso nestes entraves … a prova foram os tantos exemplos de anti-esportividade acontecidos entre eles … como historia essa rivalidade é imbatível
Ja a rivalidade de Hamilton e Rosberg passa longe de poder ser um grande script de cinema … mas está muito interessante de se ver nas pistas …
Fernando Marques
Niterói RJ
Fernando, concordo que não tem a mesma riqueza, mas é importante pensar que o tempo sempre acrescenta um tempero que o contemporâneo não consegue observar – como você mesmo mencinou entre Lauda e Hunt – e a carreira de Rosberg e Hamilton ainda está no começo. Há toneladas de elementos que podem fazer essa história, ainda não tão grandiosa, como uma das grandes da F1. Ressalto também que, apesar de ser uma geração entre as melhores de todos os tempos e eventualmente haver uma briguinha aqui e ali, Hamilton é o único personagem a encarnar rivalidades verdadeiras em muitos anos, primeiro com Alonso e agora Rosberg. É meu favorito para enterrar o “bom-mocismo” reinante.
Ronaldo,
não tem a mesma riqueza por que um tempero mais romântico prevalecia nas rivalidades naqueles tempos. veja bem o J. Hunt podia visitar o Lauda nos boxes da Ferrari e vice e versa o Lauda na Mclçaren e não havia problema nenhum … Emerson no ano de 73 jamais deixou de ser um bom amigo do R. Perterson apesar do C. Chapman favorecer o sueco … hoje a historia é diferente … se bobear o Hamilton nem pisa na área restrita ao carro do Rosberg e vive e versa … se pisar dá chororô … hehehehe
Fernando Marques
Fernando, em uma oportunidade eu tive o prazer de ler uma entrevista com a Maria Helena Fittipaldi, a primeira esposa do Emerson, e que o acompanhou durante praticamente toda a sua carreira na F1.
E ela falava justamente nisso, na amizade que rolava nos circo da F1 naqueles anos, e principalmente entre as esposas, pois era uma época em que a morte sempre estava presente nas pistas, então você não sabia o que cada final de semana de um GP o destino havia reservado.
Eram outros tempos…
Concordo 100% com os dois, o ambiente nas equipes é muito mais hermético; mais profissional, dira. Mas não vejo porque esse ambiente não possa, no entanto, gerar boas rivalidades, o contrário até. Dificilmente seremos testemunhas de uma grande amizade entre pilotos, mas há espaço de sobra para que surjam não apenas rivais, mas verdadeiros inimigos. E até houve grandes amizades, mas me lembro muito mais claramente das inimizades. Piquet e Mansell nunca se bicaram, trocam farpas sempre que têm oportunidade e o ambiente na Williams em 86 e 87 era esse, até o papel higiênico do banheiro chegou a desaparecer. Muito mais áspero que a Mercedes de 2014. Lauda e Regazzoni eram amigos na BRM, mas o austríaco não dividia informações com o companheiro de equipe, que inclusive havia levado seu nome ao comendador. O suiço não ofereceu resistência a Hunt na corrida decisiva em Fuji, talvez por vingança. Posso ficar o dia inteiro falando disso; Fittipaldi saiu da Lotus por não ter a porta aberta por Peterson em Monza; Peterson que enfrentou Emerson mais ficou bonitinho com o rabinho entre as pernas no retorno à Lotus em 78, escoltando Andretti até sua morte. Quantas brigas com companheiros de equipe Reuteman não arrumou? Villeneuve e Pironi nunca foram amigos, mesmo antes de Ímola 82.
Cada tempo carrega suas características. O filme é bom, mas pra nós, apaixonados, tem muitos buracos, muitos fatos romantizados. E é assim na arte e na história, não duvide. Assista o filme e volte aqui para contar se concorda com 80% do enredo. Se encontrar muitos buracos, tenha em mente que essa vai ser a versão que vai ficar para a história, e não a que eu e você vimos na TV em 1976.
Ronaldo,
certamente pretendo ver o filme “Rush” com certeza … e acredito que vai ser mais uma lembrança do que foi a temporada em 76 e que minha memória falha …
A rivalidade faz parte do esporte e cada uma tem a sua historia … Rosberg x Hamilton é mais uma em ação para ser bem apreciada.
Mauro,
vou um pouco mais alem … a amizade entre os pilotos nos anos 70 talvez fosse um ponto de equilíbrio também para mantê-los correndo nas pistas … mostrar um lado mais humano e não somente o lado de louco pois mesmo sabendo dos riscos de vida, todos desafiavam estes riscos …
Fernando Marques
Excelente, amigo Marcel.
Eu incluiria nessa lista de rivalidades o caso dos atletas britânicos Sebastian Coe e Steve Ovett, lá pelos anos 80, ou o de Alberto Juantorena e Kip Keyno, nos anos 70.
Salve, querido Manuel!
Certamente, amigo. Outras que considero de nível elevadíssimo e importantíssimo: Wilt Chamberlain vs. Bill Russell, todo o quarteto Borg/Lendl/Connors/McEnroe…