Quando se pensa nas maiores atuações de Juan Manuel Fangio ao volante, vários momentos passam rapidamente diante dos olhos. Sua incrível vitória em Pedralbes 1951; a surpreendente conquista em Monza 1953, derrotando a poderosa Ferrari de Ascari na última reta; a vitória sob calor infernal no GP da Argentina de 1955, e muitas outras. Mas, acima de todas elas, vem à mente sua legendária performance em Nürburgring 1957, e toda aquela demonstração de virtuosismo ao descontar mais de um minuto de desvantagem em relação às Ferraris de Collins e Hawthorn nas últimas voltas.
Nada mais natural. Afinal, se sua pilotagem naquele dia é apontada como uma das melhores em toda a história do campeonato mundial, então certamente ela tem que estar entre os destaques de sua carreira pessoal. Todavia, é o próprio Fangio quem aponta sua fantástica conquista no épico Gran Premio Internacional del Norte, de 1940, como a maior vitória de sua carreira. E, quando olhamos com atenção para as circunstâncias que a envolveram, fica difícil discordar do velho mestre.
Continuando nossa narrativa a partir do ponto em que havíamos parado, o encerramento prematuro do Gran Premio Argentino de Carreteras de 1939 levou os organizadores e pensarem numa nova prova, batizada de Gran Premio Extraordinário, a ser iniciada uma semana depois, na cidade de Córdoba.
Antes da largada Juan procurou a concessionária Chevrolet local, com o intuito de resolver, de uma vez por todas, o problema do crônico consumo de óleo que quase havia asfixiado a ele e Hector Tieri nos três longos estágios da prova anterior. E, para sua grande decepção, os mecânicos – ainda que encantados pela inventividade e pela garra daquela dupla de corredores – não foram autorizados a trabalhar no carro de Balcarce, pois o responsável pela oficina insistia que apenas a equipe de fábrica deveria ter tal assistência. Mais que isso, o gerente disse que Fangio e Tieri deveriam abandonar a disputa, pois a simples presença de um carro naquelas condições representaria uma tremenda publicidade negativa para a marca.
Com o orgulho ferido, e agora mais motivado do que nunca a bater os carros de fábrica, Fangio levou seu Chevrolet a uma oficina local, onde até mesmo parte de um velho chapéu foi improvisada como junta de vedação do cilindro defeituoso. A partir de então, apesar do sono que obrigava Tieri a dar-lhe constantes tapas no rosto, Juan começou a imprimir um ritmo suicida que o garantisse alguma margem para efetuar eventuais reparos mecânicos ao longo do caminho. Uma estratégia que funcionou perfeitamente até o quinto estágio da competição, quando o carro de Balcarce ocupava a primeira posição dentre os 123 conjuntos que haviam largado. Um desempenho tão impressionante, que levou o mesmo representante da GM que o havia insultado apenas alguns dias antes a contratá-lo durante a prova.
O forte ritmo, no entanto, acabou sendo crucial para a ocorrência de um acidente de grandes proporções numa curva cega, onde o carro foi praticamente destruído. Apenas graças à inquebrantável força de vontade de piloto e mecânico foi possível prosseguir, para que no fim o conjunto fosse listado como o 5º colocado, e o melhor entre todos os Chevrolet.
Após o Gran Premio Extraordinário, Fangio ainda obteve a 13ª colocação nas Mil Milhas Argentinas, limitado pela (falta de) potência de seu Chevrolet, nas longas retas que formavam o percurso. Essa corrida, no entanto, foi encarada meramente como uma forma de preparação para o maior desafio de todos, que ia começar em breve…
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O Gran Premio Internacional del Norte foi organizado pelo Automóvel Clube Argentino em 1940, como forma de apoiar o ambicioso projeto de uma ligação entre as cidades de Buenos Aires e Nova Iorque através de uma única estrada. A corrida, 9.440 km distribuídos entre ida e volta de Buenos Aires a Lima, deveria ser percorrida em apenas 13 dias de competição, com a missão de ser o pontapé inicial deste sonho de integração continental. E, por isso mesmo, contou com enorme espaço na cobertura midiática da época.
O percurso da prova, em poucas palavras: saindo de Buenos Aires, os pilotos deveriam percorrer nada menos que 1.363 km até a primeira parada, em San Miguel de Tucumán. De lá, o comboio subiria quase 4 mil metros até Villazón, na fronteira com a Bolívia, onde começaria o longo trecho nos Andes. Passeando por tremendas variações de altitude, os competidores deveriam enfrentar a escassez de oxigênio enquanto guiando em ritmo de corrida através das montanhas nevadas, em estradas tortuosas e sem acostamento, ladeados por penhascos através de lugares como Pulario, El Puente e Potosi. Em alguns destes trechos a pavimentação era tão precária, que mesmo as adaptadas lhamas encontravam dificuldades para se manterem de pé. Entre Potosi e La Paz, com altitudes da ordem dos 14 mil pés, se encontrava o trecho mais inóspito do percurso. E então de lá para Lima, passando às margens do lago Titicaca, com visitas a Arequipa e Nazca. E depois, claro, tudo novamente até Buenos Aires.
Como se não bastassem as dificuldades à frente, Fangio se encontrava mais uma vez sem carro para competir, a poucos dias do término das inscrições. Seu bravo Chevrolet havia sido vendido a fim de custear as despesas das corridas anteriores, uma vez que o curto suporte da fábrica havia durado por apenas uma corrida. Por sua vez, a esta altura a situação econômica da Argentina já começava a se deteriorar em função da Segunda Guerra Mundial, de tal forma que uma nova campanha de doação entre os moradores de Balcarce estaria fora de questão.
Foi então que um próspero produtor de batatas chamado Francisco Polio, cliente fiel da oficina de Fangio, decidiu ajudar o amigo através de sua habilidade para negócios. Ao preço de 3500 pesos ele compra um Chevrolet Coupé 1940 praticamente novo, e o expõe na oficina de Balcarce para que fosse rifado. Ao todo, apenas mil bilhetes seriam vendidos ao valor de 10 pesos cada, dando a cada comprador chances razoáveis de vitória, e a Fangio uma nada desprezível margem de lucro. Com o sucesso da venda Juan prontamente devolveu o investimento ao amigo, e iniciou a longa bateria de trabalhos de preparação do carro, que só seria entregue ao vencedor após a participação na corrida. Tudo foi feito às pressas, em esforços que varavam as madrugadas, de tal forma que Fangio praticamente não dormiu nos dias que antecederam a corrida.
E então, ao primeiro minuto da madrugada de sexta-feira, 27 de setembro de 1940, de dentro do estádio Monumental de Núñez, foi dada a largada para uma das corridas mais desafiantes de todos os tempos.
Inscrito com o nº 26, Fangio já era o quarto colocado quando os primeiros carros atingiram a cidade de Córdoba, a mais de 700 km do local da largada, e foi o primeiro dentre os 92 inscritos a completar o estágio inicial, com o tempo de 10 horas e 49 minutos. Sua impressionante velocidade média de 126km/h havia sido ajudada por uma ousada estratégia de não abastecer no local previsto em Concepción, graças ao tanque sobressalente que havia sido instalado onde antes ficava o banco traseiro. Mais alguns poucos quilômetros, e o Chevrolet teria ficado completamente sem combustível.
Atrás do independente coupé verde de nº 26 aparecia o favorito Ford oficial dos irmãos Galvez, pilotado pelo lendário Oscar. Este carro iria vencer os dois próximos estágios – sempre seguido de perto por Fangio e Tieri -, em parte pela comodidade de poder contar com mecânicos a cada parada prevista, ao passo que a dupla de Balcarce era obrigada a fazer eventuais reparos com as próprias mãos.
Para combater os efeitos da altitude, onde em anos posteriores pilotos iriam utilizar tubos de oxigênio, Fangio e Tieri tinham uma receita herdada dos antigos povos andinos. Ao longo dos trechos mais difíceis, ambos tentariam manter as faculdades mentais devidamente estimuladas, através do mascar de uma salada de dentes de alho, temperada com fartas doses de folha de coca. Uma mistura que talvez explique tanto a vitória dos dois no estágio mais difícil do evento, quanto o inacreditável atraso sofrido por ambos em decorrência desta mesma vitória.
Esperando pelos vencedores em La Paz se encontrava o então presidente da Bolívia, General Penaranda, a quem cabia entregar uma coroa de flores ao 1º colocado. Ocorre que as regras permitiam que se passassem apenas 10 minutos entre o fim do estágio e a entrada no parque fechado, de forma que o carro teve de ser entregue a Tieri, para que Fangio recebesse as devidas honras. E o navegador, certamente confuso pela combinação entre a altitude e sua salada inebriante, esqueceu-se de que na Bolívia o motorista deveria trafegar pelo lado direito da pista – ao contrário do que acontecia na Argentina, àquela altura. O resultado de tal combinação foi um choque frontal com um carro de passeio, que causou enormes estragos ao Chevrolet 26 e, como não poderia ser diferente, também ao relacionamento entre piloto e mecânico.
Trabalhando a noite toda, Fangio e Tieri lançaram mão de muita improvisação para conseguirem fazer o carro simplesmente andar, instantes antes da largada do quinto estágio. A partir de então, as vibrações provocadas pelas peças empenadas eram tantas, que no sexto estágio o radiador acabou soltando-se do suporte, indo chocar-se contra uma das pás da ventoinha. A esta altura nada mais parecia assustar a dupla, que resolveu o problema simplesmente quebrando a pá oposta, de forma a evitar ainda mais vibrações, ao mesmo tempo em que preenchiam o buraco do radiador com trapos de pano.
Não é fácil encontrar água a mais de 4 mil metros de altitude, de tal forma que Fangio teve de pedir um pouco a um grupo de turistas que encontrou no alto de uma montanha. Sem falar inglês, o argentino fez gestos sugerindo um copo sendo bebido. Ao receber os dois copos de água fresca, surpreendeu os turistas ao derramar todo o conteúdo dentro do radiador efervescente do sedento Chevrolet… Mais alguns quilômetros, e obviamente o motor voltou a ferver, desta vez no meio do nada. A solução desta vez, a princípio avaliada como uma miragem, veio de uma antiga cisterna abandonada desde a época da construção da estrada.
Chegando a Nazca os dois trabalharam sem parar pela segunda noite seguida, improvisando soldas aquecidas pela chama de uma vela. Graças a este esforço sobre-humano por parte de ambos, no último estágio da viagem de ida apenas os pneus do carro ainda estavam em estado lastimável.
Tanta garra, no fim, acabou por ser premiada. Quando finalmente chegaram a Lima, após quase 50 horas de estrada, os ocupantes do bravo Chevrolet 26 foram avisados de que lideravam a corrida na soma dos tempos.
O caminho de volta a Buenos Aires, no entanto, ainda teria de ser vencido. Mas este é assunto para nosso próximo encontro.
Forte abraço a todos, e uma ótima semana.
*Coluna publicada originalmente em 05 de setembro ded 2011.
2 Comments
Difícil até imaginar essas condições hoje…. Por essas e outras que Fangio é um dos maiores da história!!! Tá de parabéns Márcio, mais uma vez!
texto sublime, maravilhoso!
e q piloto, q homem, q historia de vida
viva, juan manuel fangio!!