A maior vitória de Fangio – Parte 2

A maior vitória de Fangio – Parte 1
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Cadeira cativa
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"Aquela foi a primeira vez que ouvi as pessoas gritando por mim", recordaria Juan, anos mais tarde.

Tendo finalmente experimentado o sabor de liderar uma prova tão importante e difícil, Juan Manuel Fangio não queria de forma alguma deixar sua grande chance escapar. Por isso, durante as 24 horas de estadia em Lima, que deveriam ser de folga para pilotos e mecânicos, ele e Hector Tieri trabalharam sem cessar numa autorizada Chevrolet, cuidando de cada aspecto do bravo coupé nº 26. Ao todo, esta já era a quarta noite seguida que ambos passavam praticamente em claro, e o desgaste começava a se tornar algo muito mais difícil de combater do que todos os fortes conjuntos de fábricas como Ford, Chevrolet e Plymouth, que ele havia deixado na poeira até então.

A rigor, entre os conjuntos adversários, o único capaz de enfrentar Fangio num confronto direto era o Ford de fábrica pilotado por Oscar Galvez. E foi justamente ele quem puxou o ritmo alucinante quando, novamente à meia-noite, os primeiros carros foram autorizados a rasgar a madrugada.

Envolvidos numa disputa muito mais de ordem moral do que lógica, Galvez e Fangio guiaram por mais de quatro horas durante a madrugada peruana em ritmo de classificação, separados um do outro por poucos segundos, como se estivessem numa curta prova de F-3, e não numa maratona de sobrevivência automobilística. Próximo às 5h da manhã, no entanto, Fangio se viu obrigado a lançar mão de uma manobra evasiva, quando no meio da pista avistou um piloto bastante agitado apontando para um precipício. Seu nome era Julio Perez, e seu Chevrolet de fábrica equilibrava-se sobre uma pedra, por pouco não indo se juntar aos destroços do Ford dos irmãos Galvez, acidentado no mesmo ponto alguns momentos antes.

Em meio a muitas capotagens, os dois irmãos haviam sido ejetados do habitáculo durante a queda. Juan, milagrosamente, não tinha qualquer ferimento mais profundo, ao passo que Oscar perdia muito sangue através de um profundo ferimento na cabeça, e sentia muitas dores por conta de um ombro quebrado. Não fosse pelo acidente de Perez – ele próprio condenado a morrer dentro de poucos meses, durante a próxima edição das Mil Milhas Argentinas –, e provavelmente os irmãos Galvez demorariam algum tempo antes de serem encontrados e socorridos.

A prova, no entanto, precisava continuar, e agora Fangio não tinha mais qualquer adversário capaz de batê-lo em condições normais de disputa. Ou, ao menos, não na forma de um conjunto rival…

A folgada vitória no primeiro estágio do caminho de volta ampliou a vantagem do Chevrolet 26 para a casa dos 90 minutos, escondendo o verdadeiro drama que começava a ser vivido por seus esgotados ocupantes. Apenas muitos anos mais tarde, quando relembrou aqueles dias, Fangio ousou expressar a terrível batalha interna que começou a travar contra a invisível quimera do cansaço absoluto. “Após tantas noites sem dormir, trabalhando sem parar e pilotando no ar rarefeito, eu comecei a me sentir cada vez mais atraído pelos precipícios que tantas vezes margeavam nosso caminho. Sentia que minhas trajetórias iam se alargando cada vez mais, quase como se parte de mim desejasse despencar e colocar logo um fim àquilo tudo” – desabafou o campeão, que perdeu oito quilos nos 13 dias de disputa.

Sem deixar transparecer sua luta interna, contudo, Fangio continuava pilotando no limite. Sua crença, a esta altura, era a de que mais valia se distanciar dos outros e dispor de tempo para efetuar eventuais reparos, do que andar num ritmo mais lento e não ter qualquer margem para negociar com o azar. Sua liderança, portanto, continuou a ser ampliada nos estágios seguintes, especialmente após nova vitória no trecho entre La Paz e Potosí, depois de intensa batalha com o amigo Domingo Marimón, pai do também piloto Onofre.

No 12º e penúltimo estágio, no entanto, Fangio e Tieri tiveram de lançar mão de parte desta vantagem, quando uma derrapagem exagerada terminou numa colisão lateral com uma pedra, entortando a roda traseira e forçando a troca de diversas peças, entre elas o diferencial – algo que ambos fizeram em 30 minutos! A parada acabou servindo também para que o carburador fosse regulado para as baixas altitudes, adequando o carro ao último estágio da corrida, entre Tucumán e Buenos Aires.

E foi justamente quando chegou a Tucumán, já em solo argentino, que Fangio teve a primeira noção do tipo de impacto que vinha causando junto à população de seu país. Na principal praça da cidade, para total surpresa dele e de Tieri, uma verdadeira multidão os saudava e pedia por autógrafos. “Aquela foi a primeira vez que ouvi as pessoas gritando por mim” – recordaria Juan, anos mais tarde. “Eu mal conseguia acreditar que fosse o meu nome nos lábios de todos. E pensava que seria maravilhoso se minha família pudesse ouvir aquilo.

E assim foi ao longo de todo o percurso até Buenos Aires. Durante mais de mil quilômetros pessoas se mantiveram à beira da estrada à espera do legendário Chevrolet nº 26, vibrando intensamente à sua passagem. Dentro do carro, toda esta adulação havia tornado Fangio um tanto apreensivo, com medo de que algo quebrasse no veículo e ele terminasse por frustrar tanta gente. Por isso, ao longo de todo o último estágio ele manteve-se atrás de outros competidores, simplesmente se deixando levar. Ao chegar a Buenos Aires, de forma triunfante, sua vantagem em relação a Daniel Musso ainda era superior a uma hora.

Fartamente recompensado pela conquista, Fangio fez questão de comprar o carro do grupo de mecânicos que havia sido premiado no sorteio da rifa. E foi ao volante do bravo coupé 26 que ele guiou até Balcarce, onde foi recebido com as mais altas honras municipais.

Desta vez sua família estava lá para ouvir.

Passados setenta anos deste triunfo, chega a ser difícil imaginar seu real significado. Simplesmente completar uma prova tão desafiadora já seria uma conquista maiúscula. Vencê-la, correndo contra quase uma centena de oponentes, num carro obtido através de uma rifa às vésperas da corrida, fazendo todo o serviço mecânico nas horas em que deveria estar dormindo, e ainda assim bater todos os fortes times de fábrica é, como dizem os americanos, stuff of legend – ou coisa de lenda.

Hoje, com internet e tevê digital, nos é quase impossível imaginar o que seria uma corrida de 10 mil km sendo narrada pelo rádio. Que tipo de coisa não teriam imaginado aqueles ouvintes, acordados e reunidos madrugadas adentro, cheios de orgulho daquele heroi local, conhecido de todos, levando o nome da cidade para os quatro cantos do país?

Infelizmente, nos é impossível avaliar. Tanta mordomia, tanto conforto, tanta informação, talvez tenha chegado até nós a custa de um preço alto demais. O mundo se tornou demasiado científico e frio para uma lenda do tamanho de Juan Manuel Fangio.

A ele, heroi de meu imaginário infantil, minha homenagem e meu agradecimento, na condição de apaixonado pelo esporte a motor.

Um brinde à memória do grande Juan Manuel Fangio.

Algumas curiosidades a respeito del Maestro: Em 1952, dias antes de sofrer em Monza o acidente que quase roubaria sua vida, Fangio estava num cinema com o amigo José Froilán González, em Londres. Como nenhum dos dois falava inglês, ambos escolheram um faroeste, na esperança de que houvesse poucos diálogos. Quando perceberam que tinham se enganado, os dois levantaram e deixaram a sala no meio do filme. Instantes depois, ouviram o estrondo do enorme lustre, que havia acabado de cair justamente sobre os lugares que ambos estavam ocupando.

No ano seguinte, Fangio disputou as tradicionais Mille Miglia guiando uma Alfa Romeo. O argentino liderava ao fim da primeira metade do percurso, quando sem aviso a roda dianteira esquerda de seu carro deixou de esterçar conforme os comandos do volante. Um problema tão grave, que Juan o escondeu da própria equipe nas poucas vezes em que parou para abastecer, por medo de ser obrigado a abandonar. Guiando de maneira sobrenatural e eventualmente raspando a lateral do carro em curvas margeadas por rails ou muros, ele conseguiu manter uma média de 160km/h entre Bologna e Brescia, até bater na última curva da corrida. Com o carro agora todo destruído, Juan cruzou a linha de chegada em marcha à ré, terminando a prova na segunda colocação, entre 573 competidores.

Para vencer o GP da Argentina de 1955, Fangio teve que lidar com temperaturas tão extremas na região das pernas, que passou a segunda parte da prova sentindo o cheiro se sua própria carne sendo assada. Algumas cicatrizes provocadas por estas queimaduras o acompanharam até o fim da vida.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

6 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Belo Texto amigo Marcio!

    Fangio sempre vai ser o Campeão dos Campeões!

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  2. Tassio, Júnior, Rolemberg… Obrigado pelo retorno. Sempre confiro e considero o feedback dos leitores.
    Abraço, e um ótimo fim de semana a todos.

  3. Tassio Bruno disse:

    uma palavra. uma lenda.
    texto sem igual marcio. parabens.

  4. Júnior disse:

    Rolemberg, então você também é da turma de brasileiros que odeia argentinos porque acha que isso é um dever cívico? Feliz dia da Independência!

  5. Rolemberg Filho disse:

    um dos pouquíssimos argentinos pelo qual tenho orgulho de torcer!

    sem dúvida, vemos porque Ayrton tinha uma grande reverência pelo Fangio, ao ponto de descer do pódio para receber o troféu !!!

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