A obra-prima de Fernando Alonso

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Fernando Alonso, não tenho vergonha em admitir, foi o único piloto por quem realmente torci desde a morte de Senna (Ok, eu, assim como a maior parte dos brasileiros, também torci demais por Barrichello até o GP da Áustria de 2002…).

O espanhol, surgido em 2001 – relembre aquela temporada clicando aqui – chamou a atenção desde o princípio, fazendo a Minardi parecer um carro razoavelmente aceitável. Mas só passei a efetivamente acompanhar sua trajetória de perto em 2003, especialmente após o GP da Hungria quando, além de vencer pela primeira vez, o fez dando uma volta em ninguém menos que Michael Schumacher.

A partir daí, Fernando foi sempre meu piloto favorito no grid, e já dediquei neste espaço várias colunas sobre ele ou em razão dele. Em 2007, 2010 e 2012, os títulos decididos na última prova do calendário foram doloridos como os campeonatos de futebol perdidos na prorrogação ou nos pênaltis.

Mas quando olho em retrospecto, pensando em qual tenha sido sua grande temporada, não parece haver muita dúvida de que foi mesmo o ano de seu bicampeonato, 2006, conforme descrevi na minha primeira coluna na nova versão do site. Mario Salustiano e eu falamos a respeito no último video em meu canal no YouTube.

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Na última semana, no aquecimento pré-corrida do GP da Holanda, perguntei aos amigos colunistas deste site qual consideram a obra-prima de Fernando Alonso na F1, sua performance mais brilhante, sua corrida mais genial.

Salu relembrou Imola, em 2005, a famosa prova em que Schumacher ressuscitou naquele ano, e Alonso segurou-o de todas as maneiras. As voltas finais foram literalmente de arrepiar, uma versão ainda mais intensa daquilo que Senna e Mansell protagonizaram em Mônaco 1992.

O chefe Edu falou da Hungria, em 2006, quando Fernando teve uma primeira volta das melhores já registradas na F1, sob chuva, indo de 15º para 6º antes de completar o giro. Em apenas 18 voltas, assumiu a liderança, e nunca foi ameaçado por ninguém, apenas pela própria equipe: na 52ª volta, ao sair dos boxes, Alonso emulou Mansell na mesma pista exatos 19 anos antes e se viu obrigado a abandonar a corrida por um parafuso mal apertado na roda traseira.

Lucas e JC evocaram o GP da Europa de 2012, disputado em Valência. Ambos apontaram o simbolismo envolto, por ser uma vitória em casa e com requintes cinematográficos. De fato, aquela merece ser considerada como a maior vitória da carreira de Alonso, lembrando os triunfos de Senna no Brasil (uma “vitória popular”, como Giavoni cirurgicamente definiu).

Por fim, Márcio opinou e citou Malásia 2012 como a corrida de Alonso que mais o impressionou, não apenas pela performance em si, mas também pelo fato de o carro ser malnascido e, àquela altura, não apresentar nenhum indício de que teria desempenho minimamente aceitável – com tamanha chuva (a prova chegou a ser interrompida), a performance de Fernando trouxe muitas semelhanças com Schumacher na mesma pista, 11 anos antes.

Creio que todas essas corridas foram de fato espetaculares, mas a minha escolha para esta coluna vai pelo GP em que o desempenho de Fernando realmente me fez ver que estávamos diante de um titã, um cidadão que merece ser incluído entre os 10 melhores dos mais de 70 anos da categoria.

Assim como no caso de Senna, não precisa ser uma vitória (Mônaco 1984 e 88 ou Canadá 93 são desempenhos tão emblemáticos quanto Portugal 85, Brasil 91 e Europa 93, correto?): basta ser uma corrida em que se percebe a verdadeira compensação realizada pelo piloto, quanto ele, na sua performance, mitigou as diferenças para o principal adversário, seja em termos de equipamento (carro inferior) ou por algum fator externo que desequilibrou a disputa – uma quebra momentânea, um desajuste eletrônico, um choque com adversário, um erro estratégico da equipe, uma punição dos comissários, um safety car surpresa ou, ainda, uma mudança meteorológica brusca que “embaralhe as cartas”.

No caso da obra-prima de Alonso, mais de um desses fatores interferiram naquele dia: estou falando do GP da China de 2006, corrida muito lembrada por ter marcado a última vitória de Schumacher na F1.

***

Antes, um pouco de contexto.

Em 2006, Alonso dominou amplamente a primeira metade da temporada: o espanhol venceu 6 das primeiras nove corridas, terminando em segundo nas outras três. Seu aproveitamento, portanto, só veio a ser efetivamente superado ano passado, quando Verstappen venceu 7 e foi segundo duas vezes nas primeiras nove etapas – Schumacher, em 2004, venceu 8 das 9 primeiras, mas na outra abandonou.

Tudo começou a mudar, porém, quando a FIA resolveu entrar na jogada para dar graça ao campeonato.

Depois de obter 4 vitórias seguidas, Alonso abriu 25 pontos de vantagem para Schumacher, com ainda 90 em disputa. A Federação define, a partir dali, que os mass dampers (amortecedores de massa) eram ilegais pois tinham efeito aerodinâmico. A discussão parecia ter muita influência comercial/política, uma vez que a própria FIA, primeiro na reta final de 2005 e depois no início de 2006, havia definido que o sistema era legal.

Fato é que a Ferrari inicia uma grande virada a partir do GP dos EUA, dominando as corridas não apenas com Schumacher mas também com Felipe Massa, a dupla marcando presença no pódio em 4 das 5 etapas a partir de Indianápolis.

Além disso, Alonso sofreu alguns revezes muito importantes na sequência por problemas no equipamento: além do GP da Hungria citado anteriormente neste texto – em que Alonso liderava e a dupla da Ferrari lutava para conseguir entrar na zona de pontos -, na Itália o espanhol viu seu motor explodir em plena reta a poucas voltas do final. Naquele momento, ele era o terceiro colocado, tendo partido em nono.

Para o GP da China, Alonso desembarcava com 108 pontos ante 106 de Schumacher, cada um deles tendo vencido seis corridas.

***

Nos treinos, choveu. Choveu forte. E Alonso marcou a pole: 1’44″360, em média horária de 188,038 km/h. A diferença para Fisichela, seu companheiro de equipe e segundo colocado, foi superior a seis décimos (+0.632, Fisico com média de 186,906 km/h). Schumacher partiu apenas em sexto, mais de 1,4 segundos atrás. Tamanha superioridade foi atribuída tanto às condições climáticas (basta lembrar o que aconteceu na Hungria) quanto à infindável reta do circuito de Shanghai.

Em todo caso, Alonso parte à frente e não é ameaçado na ponta em momento algum. Era pra ser como diz o ditado: “fazer barba, cabelo e bigode”. Mas aí um erro de estratégia/avaliação da Renault põe tudo a perder.

Na volta 23, Alonso vai aos boxes e a Renault decide trocar apenas os pneus dianteiros (A Ferrari faria o mesmo com Kimi em Silverstone, 2008…). Quem assistiu ficou atônito: eles esqueceram? Eles estão escondendo o jogo? Será que pode dar certo?…

Retornando à pista, Alonso rapidamente encosta em Fisichella, que lhe abre passagem. Parecia ter dado certo. Era um golpe de mestre! Mas já na volta seguinte a vantagem inicial não cresce e, pior, começa a regredir, chegando a diminuir em mais de 3 segundos por volta nos giros 26 e 27.

Exatamente na metade da prova (estamos na 28ª de 56 voltas), o espanhol simplesmente perdeu toda sua vantagem. Tanto Fisico quanto Schumy encostam, e não têm dificuldades pra ultrapassar Fernando, apesar de Fisichella ter recusado a ultrapassagem claramente, tentando ao máximo segurar Schumy e ver se Alonso poderia, aquecidos os dianteiros, reequilibrar os pneus e reencontrar o ritmo.

O espanhol volta aos boxes na volta 36 e, agora, a equipe efetua a troca completa – ou correta. Mas não sem antes prejudicar um pouco mais seu piloto número 1: o traseiro direito não é bem encaixado, e o pitstop de Alonso dura intermináveis 19,2 segundos.

Começava neste momento o maior épico da carreira de Alonso, uma performance estratosférica, (sempre guardadas as devidas proporções) a Monza 67 de Clark, a Nurburgring 57 de Fangio, a Suzuka 89 de Senna.

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Alonso abre a 37ª volta (de 56!) na sexta colocação, a mais de 54 segundos do então líder Fisichella – eles iriam fazer suas paradas ainda -, que lutava para segurar o ímpeto de Schumacher e minimizar o dano tanto no mundial de construtores quanto no de pilotos. Mas não durou muito tempo, e na volta 41 Schumacher passa Fisico, em bela manobra, botando as rodas direitas na grama.

Nesse momento, faltando apenas 15 voltas, Alonso já havia diminuído um pouco a diferença (estava na casa de 30 segundos), mas não tínhamos nada de anormal, uma vez que ele estava com pneus novos e os ponteiros estavam se engalfinhando. Mas o lap chart a partir daí demonstra algo assombroso.

Alonso tira, a cada volta, uma média de 1,6s, em alguns giros (41 para 42, 46 para 47 e no último giro – neste caso, claro, Schumacher sem o mesmo ritmo) chegando a diminuir a diferença em mais de 3 segundos (!). Para se ter uma ideia, Schumacher fez sua melhor volta no giro 50: na volta 51, por exemplo, Alonso descontou 2,039s para o alemão.

Na volta final, a câmera mostra Alonso girando o volante pra aquecer os pneus na reta enquanto abria o giro (6,6s atrás), mas era tarde demais: o espanhol completa a prova a 3.121 segundos de Schumacher (calculem como foi a última volta…).

A transmissão brasileira, lembro bem, quase criminosamente em alguns momentos noticiava as parciais como se fossem diferenças de volta, falando que o alemão “administrava a diferença”. A transmissão britânica, por sua vez, corretamente fala “Alonso is second in one of the great recoveries of all time“.

Schumacher vence, Alonso é segundo. 116 pontos pra cada lado, mas o alemão agora tinha uma vitória a mais. 

Após o GP da China, meu irmão, torcedor ferrenho de Schumacher, era só sorrisos. Meu pai e eu, pura tensão, mas aí meu velho disse algo que me marcou: “Filho, tá dando tudo errado pro Alonso já tem um tempo. Uma hora as coisas vão dar certo”.

***

A F1 chegava no Japão com Schumacher podendo ser campeão, caso vencesse e Alonso não pontuasse… o resto é história.

Imola 2005 foi um absurdo, mas o grande nome daquele dia foi mesmo Schumacher; Hungria 2006 seria a Donington de Alonso, mas ele não completou a prova; Malásia 2012 foi simplesmente genial, mas a concorrência – o clássico Sergio Perez – desperdiçou oportunidades como um atacante que perde gol debaixo da trave e sem goleiro; por fim, em Valência 2012, um épico, é a quebra do folgado líder Vettel que abre caminho para o triunfo de Alonso.

Assim, penso em China 2006 como a maior demonstração de habilidade e bravura de Alonso na Fórmula 1. O dia em que ele correu “on a class by himself”, mesmo com a própria equipe jogando contra.

Ah, mero detalhe: foi dele a melhor volta daquele dia: 1’37”586 – média horária de 201,090 km/h -, quase 1 segundo (+0.967) superior à segunda melhor marca, anotada por Schumacher, com média de 199,117 km/h.

Alonso fez a barba e o cabelo na China. O bigode ficou pro Japão.

Abraços,

Marcel Pilatti.

Marcel Pilatti
Marcel Pilatti
Chegou a cursar jornalismo, mas é formado em Letras. Sua primeira lembrança na F1 é o GP do Japão de 1990.

2 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Marcel,

    bela coluna, como sempre …
    não resta nenhuma duvidas … Alonso é daqueles pilotos fora de série …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  2. Ronaldo Celestino disse:

    Que texto incrível!

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