A viatura da empresa

O mais prezado tesouro – Parte 1
02/02/2024
O mais prezado tesouro – Final
09/02/2024

* Texto revisado e ampliado. Originalmente publicado em 21/09/2011

Em praticamente todo o planeta, a sociedade contemporânea costuma reverenciar funcionários que, ao atingirem determinado status, são agraciados com a possibilidade de contar com um automóvel da empresa para deslocar-se, principalmente em trajetos partindo da própria residência.

Hummmmmm… Texto de administração, aqui, no GPTotal? Pequenas empresas, grandes negócios? Relaxem, amigos leitores, a praia ainda é automobilismo. Quero simplesmente contar a história da mais perfeita, magnífica e inigualável “viatura de empresa” de todos os tempos. E que tem tudo a ver com um dos modelos de F1 mais míticos da História da categoria.

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França, 1954: Fangio estreia a Mercedes W196 com vitória e domínio prateado dali em diante

Flashback. O ano é 1955. Tempos absurdamente contraditórios para a Mercedes-Benz. Eles, isto é fato, dominavam as pistas mundiais, tanto na Fórmula 1 quando nas provas de endurance. Para os melhores carros, claro, os melhores pilotos, com o duo Juan Manuel Fangio e Stirling Moss coletando todos os troféus possíveis, junto aos também competentes coadjuvantes Karl Kling e Piero Taruffi. Ao mesmo tempo, porém, a estrela de três pontas sangrava com a tragédia ocorrida em Le Mans, provocada por um de seus carros, conduzido por Pierre Levegh.

O peso terrível das 84 mortes, maior hecatombe do esporte a motor, foi demais para que continuassem competindo. O anúncio, de um emocionado chefe Alfred Neubauer, ocorreu na Targa Florio, disputada em outubro, logo após a vitória de Moss, que compartilhou uma 300 SLR com Peter Collins.

De uma hora para outra, aqueles carros espetaculares, imbatíveis, não poderiam mais correr. Pássaros para sempre engaiolados. O modelo W196 era o monoposto de F1. Tinha motor 8 cilindros em linha de 2,5 litros, deitado a 53 graus para baixar a altura do capô e melhorar o centro de gravidade.  A potência era de 290 cavalos a 8500 rpm, seguramente a maior do grid. A rotação elevada para a época era fruto do sistema de injeção direta de combustível combinado ao duplo comando de válvulas com acionamento desmodrômico, que dispensava a mola de retorno, evitando flutuações. Uma espetacular usina de força que, quando ligada, expunha uma língua de fogo de 20 centímetros no escapamento duplo.

O domínio da Mercedes se estendia com o 300 SLR: famosa vitória nas Mille Miglia de 1955, com Moss/Jenkins

O carro tinha chassi tubular em liga de magnésio Elektron, superleve, e freios a tambor embutidos. Havia duas opções de carroceria, a streamliner, rodas cobertas e mais aerodinâmica, e a de rodas expostas, com entre-eixos mais curto para pistas sinuosas como Monte Carlo. Enfim, uma receita requintada e campeã para todas as ocasiões.

O modelo 300 SLR (Super Leicht Rennsport) era o carro de endurance, de dois lugares. Com chassi tubular baseado no 300SL que venceu Le Mans em 1952, também em Elektron, o carro tinha um motor um pouco maior, de 3 litros, que virava a até 7400 rpm e rendia 20 cavalos extras. Pesava um pouco mais: 900 kg, contra 700 kg do modelo de F1. Para domar velocidades finais de 300 km/h em Le Mans sem sobrecarga dos freios, havia um sistema auxiliar de freio aerodinâmico manual, que abria uma grande aba logo atrás do piloto, gerando um efeito “paraquedas”. Mas a vitória mais famosa do carro acabou sendo a Mille Miglia de 1955, quando Stirling Moss triunfou tendo ao seu lado o jornalista Dennis Jenkinson como navegador a cantar curva por curva, com um curioso dispositivo que desenrolava o papel de navegação manualmente.

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Uhlenhaut levava a sério o espírito “mão na massa”. Projetava e… pilotava para entender melhor suas criações

Com o fim do departamento de competições, cada membro daquele staff fantástico seguiu seu caminho. O projetista-chefe, o homem que desenhou aquelas maravilhas sobre rodas, teria que se contentar com um cargo de chefia no departamento de veículos de produção. Seu nome era Rudolf Uhlenhaut.

Ele trabalhava para a Mercedes-Benz desde 1931, quando acabara de se formar em engenharia. Com cinco anos de casa, foi designado projetista chefe do recém-criado departamento de competições, quando a marca tomava uma surra do Auto Union Type C de Bernd Rosemeyer. O modelo W25 já não intimidava mais o rival das quatro argolas.

Em 1937, Uhlenhaut apresentou ao mundo o modelo W125, mais potente e com muito mais estabilidade. Foi neste período que ele revelou-se não apenas um projetista genial, como também um excelente piloto, já que testava os protótipos para saber como aprimorá-lo, virando tempos tão bons quanto o piloto número um da equipe, Rudolf Caracciola, o que sempre lhe valia reprimendas do preocupado Neubauer. Apenas o fato de existirem rumores (alimentados pela própria Mercedes-Benz) de que certa vez Rudolf foi 3s mais rápido que Fangio em um teste em Nürburgring, já mostra a sensibilidade e habilidade do engenheiro em conduzir e entender a dinâmica de suas preciosas criações. Antes da eclosão da II Guerra, Uhlenhaut ainda projetaria os modelos W154 e W165 e retomaria seu cargo no começo da década de 1950, na volta da Mercedes-Benz às competições.

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Criador e criatura, diante de uma concepção genial

De volta a 1955. Vendo os oito 300SLR remanescentes encostados no galpão da fábrica de Stuttgart, Rudolf teve uma ideia – ótima, como sempre. Pulou para a prancheta e desenhou para aqueles carros uma modificação para que recebessem teto rígido, transformando o modelo aberto em um coupé. O projeto previa o uso das famosas portas em formato asa de gaivota, recurso necessário diante da estrutura tubular elevada que invadia as laterais do carro. Dois carros foram modificados dessa forma: o chassi 196.110-00008/55, com interior vermelho, que serviria para testes de alto desempenho da fábrica; e o chassi 196.110-00007/55, com interior azul, que logo seria homologado para ser usado como carro de rua pessoal de… Rudolf Uhlenhaut!

Estava criado o mais incrível carro de empresa de todos os tempos: Mercedes-Benz 300 SLR Uhlenhaut Coupé.

Para ter o prazer inigualável de fazer o percurso diário de 12 quilômetros entre sua casa até a fábrica em Stuttgart, Rudolf apenas teve que colocar um silenciador extra para domesticar o que já foi descrito como estrondoso rugido de Tiranossaurus rex, peça que ficava na lateral, do lado de fora. Segundo dados de fábrica, o Uhlenhaut Coupé chegava a 284 km/h. Gente, estamos falando de um carro de rua de 1955!

Essa viatura de fábrica era muito, muito superior a qualquer outro street-legal de sua época. A máquina mais quente daquele tempo era o Jaguar XK120. Coitado, não passava de 201 km/h… O próprio Rudolf criaria o modelo 300SL Gullwing de rua, versão mansa de seu próprio carro, com motor de 6 cilindros em linha e 225 km/h velocidade final, ainda um enorme abismo. O primeiro carro de produção a quebrar a marca do carro de trabalho de Rudolf foi a Ferrari 288 GTO, ao fazer 303 km/h… 30 anos depois!

Rudolf escolheu para si o modelo de interior azul

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Em outras histórias envolvendo Rudolf e seu carro, uma diz que certa vez ele estava atrasado para uma importante reunião executiva da Mercedes em Munique. Partindo de Stuttgart, em viagem de 250 quilômetros, que duraria nas autobahns cerca de pouco menos de 3 horas, pegou seu Coupé e fez o trajeto em… 60 minutos! A situação vivida por Rudolf seria comparável hoje poder dirigir nas ruas um Hypercar de Le Mans. Bugatti certamente seria pouco.

Uhlenhaut, que em toda a vida jamais teve carro próprio, devolveu sua viatura à empresa ao merecidamente aposentar-se, em 1972, dois anos após criar o lindo conceito C111 com motor rotativo. O empregado que teve o carro de empresa mais espetacular já criado – por suas próprias mãos -, faleceu em 1989 em Stuttgart, aos 82 anos. Reverenciado mundialmente, seu obituário saiu até no New York Times.

Devo supor que jamais houve um funcionário que ia e voltava do trabalho tão contente como ele.

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Um carro de 143 milhões de dólares.

Eis que a história deste carro nos oferece um incrível desdobramento em maio de 2022. A Mercedes-Benz, diante de exigência muito bem fundamentada, concorda em vender o carro 00008/55, com interior vermelho, que na maior parte do tempo ficou em exposição no museu da marca, em Stuttgart.

Havia uma natural expectativa no valor da transação. O recorde, até então, pertencia a uma raríssima Ferrari GTO, que mudou de dono por volumosos 70 milhões de dólares. Mas um carro como o Uhlenhaut Coupé, que nasceu com números tão superlativos, não ia bater essa cifra por pouca margem. Tanto que o lance inicial, administrado pela famosa casa de leilões RM Sotheby’s… já superava esse valor logo de cara.

O anônimo e felizardo comprador, que desembolsou inacreditáveis 143 milhões de dólares, precisou apenas a se comprometer, em contrato, a fazer com que o carro marque presença em eventos pontuais e não desapareça dos olhos do público. Enquanto isso, o carro de uso de Uhlenhaut vai orgulhosamente permanecer no museu. E desta forma, a genial criação se tornou o veículo mais caro já vendido em toda a longa e difusa história do universo automotivo.

Fica, claro, a pergunta marota, sem resposta, mas que nos faz voar ainda mais alto: se o carro de testes foi vendido por 143 milhões de dólares… quanto vale hoje o carro pessoal de Uhlenhaut?

Quem poderia imaginar que uma viatura de empresa se tornasse o carro mais caro de todos os tempos…

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Aquele abraço!

Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

5 Comments

  1. Antônio Celso disse:

    Sensacional!
    Estou prestes a realizar um sonho de adolescente/jovem. Vou comprar minha primeira Mercedes Benz e escolhi após muitas consultas sobre os modelos da Mercedes e meu saldo bancário, decidi ingressar neste maravilhoso mundo numa E 250.
    Em breve!

  2. MarcioD disse:

    História incrível! Belíssimo texto! Parabéns!

  3. Fernando Marques disse:

    Sem comentarios … espetacular!!!

    Fernando Marques
    Niterói-RJ

    • Fernando Marques disse:

      Continuo com a mesma opinião.
      Aliás acrescento .., a primeira foto da Mercedes está entre as cinco mais lindas aqui do GEPETo

      Fernando Marques

  4. luiz carlos disse:

    Incrível!!!!!!!!!! Não posso dizer mais nada!!!

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