Muitos conceitos e termos são usados de forma errada, exagerada ou inadequada no esporte: por exemplo, é comum falar que quaisquer enfrentamentos entre clubes grandes sejam “clássicos”. Ora, para se ter um clássico, o tamanho dos times envolvidos é apenas um (e não o mais importante) dos ingredientes que faz de um grande enfrentamento um clássico: é preciso muita tradição, equilíbrio, rivalidade, confrontos decisivos e representatividade nacional.
Outros confusão que normalmente ocorre é entre “melhor”, “mais talentoso”, “mais habilidoso”, “maior” e “mais completo”: ao gosto do freguês, usa-se um dos termos como justificativa ou argumentação para a preferência, podendo alguém escolher um tenista como o número 1 por razões diametralmente oposta àquelas pelas quais elege um jogador de basquete como o “maior de todos”.
Na Fórmula 1, isso também acontece, a maior confusão sendo aquela entre piloto e carro: “se é o piloto que prefiro, direi que é ele quem faz a diferença; se for algum que não me agrade, enfatizarei que é ‘o melhor carro’”. Ora, não houve piloto que vencesse com carro ruim, e podemos perceber o enviesamento das opiniões quando se utiliza o campeonato de construtores como justificativa ou prova de que tal carro era superior: por exemplo, dizer que Senna foi campeão com o melhor carro em 1991 e que Hakkinen ganhou sem ter o melhor carro em 1999 são opiniões aparentemente verdadeiras, mas não condizentes com a realidade apresentada nos respectivos campeonatos.
Feita toda essa introdução, neste artigo pretendo analisar o terceiro e último título daquele que é, certamente, o piloto que mais divide opiniões ao longo da história da F1: Nelson Piquet. Não há outro caso de piloto que, ao mesmo tempo, seja considerado o melhor da história e não figure nem no top 10 conforme o lado do Atlântico em que você esteja.
E talvez a razão principal para esse antagonismo esteja na temporada de 1987.
O campeonato de 1986 guarda no coração de muitos um lugar especial: foi uma das melhores, se não a melhor, temporada da história da F1. O bicampeonato de Prost nasce após uma épica batalha interna na Williams, onde Piquet se viu em situação oposta àquela de 1981, seu primeiro título: agora era ele quem, tendo às mãos o melhor equipamento do grid, via um piloto de equipe rival triunfar justamente na última etapa do certame.
Piquet sempre afirmou que tinha um acordo com Frank Williams, quando acertou sua transferência em 1985, de que seria o primeiro piloto. Após o acidente que quase ceifou a vida de Sir Frank Patrick Head tomou a frente em muitas áreas e teria negligenciado ou mesmo descumprido esse acordo. Havendo um acordo ou não, o fato é que Piquet não conseguiu suplantar Nigel Mansell em velocidade – situação muito semelhante àquela de 2007, na McLaren, com Fernando Alonso e Lewis Hamilton (e com o mesmo final, por sinal).
Considerado todo esse contexto, Nelson encarava 1987 com uma missão que iria além das pistas: dividir a Williams internamente, transformar o pitlane da equipe inglesa em duas empresas independentes e concorrentes. “Eu estava disposto a tudo, era guerra”, avaliaria Piquet anos depois. Isso passava pelas mais diversas situações, do papel higiênico escondido ao “grampo” na comunicação via rádio.
A favor do brasileiro, o fato de que a Williams era um carro ainda melhor do que havia sido em 1986 – mais do que isso, Lotus e McLaren não conseguiram evoluir em relação ao ano anterior, e a Lotus trocou a Renault pela mesma Honda dos Williams, que utilizava os propulsores japoneses desde 1983 (a Williams tinha um modelo com alguns cavalos a mais).
Um outro ponto fazia com que o domínio da Williams fosse ainda mais latente: as mudanças no sistema de classificação. Basicamente, em 1985 e 86: 1) havia limitação de jogos de pneus; 2) eram permitidos pneus de classificação; 3) cada piloto tinha um limite de tentativas; 4) o turbo não tinha restrições de uso (na prática, um “motor de classificação”).
Tudo isso mudou para 1987: não haveria mais restrições de tentativas nem uma quantidade de compostos preestabelecida, mas a Goodyear seria a única fornecedora, uma vez que a Pirelli deixou a F1 em 1986; foram proibidos os pneus de classificação; o turbo era limitado a 4.0 bar (diminuindo consideravelmente a potência).
Senna, que havia marcado 15 poles nos 32 GPs anteriores, seria diretamente atingido por tais mudanças. Não fosse seu absoluto domínio em Imola, ele provavelmente teria passado o ano em branco nas qualificações, uma vez que as Williams foram absolutamente dominantes – Mansell marcou 8 poles e partiu da 1ª fila em todas as provas que disputou naquele ano (além de Senna, somente Berger, no fim da temporada, marcou poles, sendo que Mansell não disputou as duas últimas corridas).
O desempenho de Mansell, aliás, será a chave para nossa análise.
A outra dupla
Ayrton Senna viveu em 1987 sua melhor temporada até então, apesar de ter deixado sua primazia nas qualificações: foi sua maior pontuação no mundial, seu maior número de pódios e ele também foi o piloto com o maior número de km percorridos naquele ano, chegando a perfazer 91% do total das provas.
Seus desempenhos em Mônaco e, sobretudo, em Detroit, foram absurdos. “O que Ayrton faz entre as voltas 24 e 49 do GP de Detroit é um absurdo”, conta nosso colunista Márcio Madeira, que está produzindo extenso material sobre o piloto Ayrton Senna. “Senna andou tão bem, com pneus já usados, que a volta mais rápida por ele registrada superou o melhor tempo dos treinos”, conta Madeira.
Outros momentos daquele ano foram muito marcantes, como a famosa fila de pilotos atrás de Senna na Espanha, e seu desempenho insano em Monza, quando, sem efetuar troca de pneus, conseguiu levar sua Lotus ao limite, escapando da pista nas voltas finais quando passou no trecho em que momentos antes ocorrera um acidente. Mesmo escapando da pista e sendo ultrapassado pelo líder Piquet, Senna retorna e, girando tempos absurdos, por pouco não retoma a ponta.
Mas a limitação de equipamento era muito grande em relação aos Williams, de modo que foi sua regularidade e pilotagem acima do limite em muitos casos que deu a Senna a liderança ocasional do Mundial e o flerte com o vice-campeonato (não fosse a desclassificação na última etapa ele teria, de fato, terminado o certame na segunda colocação).
Seu grande rival, Alain Prost, que defendia um bicampeonato e naquele ano se tornou o recordista de vitórias na F1, superando a marca de Jackie Stewart, teve um ano muito irregular e finalizou em quarto na tabela, 11 pontos atrás de Senna.
O grande problema foi a mudança de John Barnard para a Ferrari, fazendo com que, na prática, o carro fosse um arremedo de modelos anteriores. Além disso, na corrida contra a Honda, a Porsche investiu muito em potência – mas perdeu em confiabilidade. Prost venceu duas das primeiras três etapas, mas ao longo do ano teve diversos abandonos.
Era, basicamente, um campeonato com apenas dois postulantes ao título: Piquet e Mansell.
Continuaremos esta história na próxima coluna.
Abraços!
2 Comments
Marcel,
interessante a sua coluna … mais uma otima lembrança dos bons tempos da formula 1 mas basendo no que disse acima … ” Na Fórmula 1, isso também acontece, a maior confusão sendo aquela entre piloto e carro: “se é o piloto que prefiro, direi que é ele quem faz a diferença; se for algum que não me agrade, enfatizarei que é ‘o melhor carro’”. … sob que prisma vc elegeria seus melhores pilotos da Formula 1?
Detalhe na milha lista Nelson Piquet é o top 1 … por enes e diversas razões … mas a principal foi a que eu vi ele correr e demonstrar todo o seu talento ao vivo e aqui no Brasil antes de chegar a Formula1 … ali ele já me deu a certeza que ia brilhar ao chegar na Formula 1 … além dele esculachar as grandes equipes de Formula 3 inglesas em 77 numa equipe dele mesmo onde era piloto, mecanico, etc e etc … não vi nenhum outro brasileiro fazer o que ele fez na Europa ,,, exceto Roberto Moreno em 87 ou 88 na Formula 3000 , onde teve esquema semelhante …
Fernando Marques
Niterói RJ
Grande Fernando! Obrigado pela presença.
Para eu definir os melhores pilotos, gosto de analisá-los sob todas as circunstâncias, capacidade de adaptação, diferença e domínio com os colegas de equipe e também a qualidade destes. ME encanto justamente por ver aqueles que conseguem ser competitivos em mais circunstâncias, momentos e épocas diferentes.
Pra mim, não houve alguém maior que Fangio na história.