Campeões Invisíveis

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Ponto de desequilíbrio
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Diferentemente de 2021, quando a decisão do título mundial se deu por margem mínima, no último instante e envolta em controvérsia, em 2022, na esteira da maior alteração conceitual aplicada aos carros nos últimos anos, logo ficou claro que não havia no grid conjunto capaz de sistematicamente fazer frente ao pacote formado por Max Verstappen, Red Bull e os motores Honda.

Tal dinâmica inevitavelmente chamou atenção para o caráter coletivo do esporte a motor, tantas vezes negligenciado ou subvalorizado em análises de desempenho, e reaqueceu os debates em torno da importância da equipe de projetos dentro da obtenção de resultados, bem como a cíclica discussão sobre quem seria o principal projetista na história da Fórmula 1.

Começando pelo primeiro ponto, o momento parece oportuno para relembrarmos as forças de atração que atuam sobre expoentes nas mais diversas áreas, em especial num contexto competitivo como o da Fórmula 1. Essencialmente, para além de todas as distrações e perfumarias que cercam o espetáculo, no fim do dia todos que se envolvem com o esporte querem vencer. Na prática, isso significa que todo mundo gostaria de ter os melhores em suas respectivas áreas trabalhando consigo, e essa atração só se dá em mão dupla quando profissional e equipe reconhecem, um no outro, tal status. Assim, é razoável supor que, numa categoria de topo, na qual espera-se que um piloto diferenciado deverá correr por vários anos, os talentos mais destacados acabarão se conjugando a escuderias de ponta mais cedo ou mais tarde. Naturalmente existem exceções, mas ainda assim é uma tendência bem identificável. E o mesmo vale para talentos nas inúmeras áreas de conhecimento envolvidas nas mais variadas atividades de cada time.

Se pensarmos a esse respeito, portanto, é fácil concluir que ao longo das décadas o peso desses talentos atuando nos bastidores tem sido maior do que o crédito que a História geralmente lhes reserva. Basta comparar, por exemplo, os desempenhos relativos de Hamilton e Verstappen ao longo de 2021 e agora, em 2022, para que tenhamos uma dimensão bem nítida a respeito da influência do equipamento – e, por conseguinte, daqueles que o concebem e desenvolvem – sobre a performance que se observa em pista. Ora, sejamos razoáveis… Max melhorou tanto assim de um ano para o outro? Lewis desaprendeu? Não, claro que não. Ainda que os efeitos de motivação e confiança sobre a pilotagem sejam frequentemente sensíveis e observáveis, é evidente que o trabalho entregue pelo corpo técnico das equipes foi um fator predominante no distanciamento de ambos.

E isso nos leva a uma situação curiosa, pois não há qualquer novidade aqui, e ainda assim não parecemos capazes de adotar postura coerente com aquilo que, ao menos em teoria, estamos cansados de saber. Porque se o peso do corpo técnico é assim tão grande – e definitivamente ele é – então nomes como Uhlenhaut, Cooper, Chapman, Forghieri, Gordon, Barnard, Head, Byrne e Newey, entre tantos outros mais ou menos célebres, deveriam ser lembrados com a mesma reverência que os de Fangio, Clark, Stewart, Lauda, Prost, Senna, Schumacher, Hamilton e cia. E mais: a constatação de que Adrian Newey já soma 13 títulos mundiais em seu brilhante currículo, iniciado na fecunda e saudosa equipe Fittipaldi, deveria bastar para que seu nome integrasse a mais elevada prateleira entre aqueles que escreveram a história da categoria rainha, quando somadas todas as frentes possíveis de atuação.

Parece justo, portanto, que dediquemos um pouco mais de atenção a esse personagem, tão representativo de uma brilhante casta de campeões invisíveis.

Em debate recente num excelente fórum no Facebook que prefere não ser citado, manifestei meu entendimento de que a trajetória de Newey no topo do esporte não deveria ser avaliada apenas a partir dos números superlativos que acumulou e segue acumulando, mas também do aparente arco evolutivo que descreveu, inclusive em termos filosóficos. Afinal, se pensarmos nos Marchs/Leyton House, e mesmo nos Williams até 1994, veremos projetos muito dependentes de condições ideais para que pudessem entregar seus melhores desempenhos, sendo notório o efeito que pistas lisas e a suspensão ativa tinham sobre seus carros, bem como a diferença que fazia ter um piloto como Mansell ao volante.

No entanto, quando avançamos duas décadas e olhamos para os carros em que Vettel conquistou seus títulos, veremos que não raramente McLaren e Ferrari eram capazes de entregar picos de downforce mais elevados sob circunstâncias ideais, mas os Red Bull se destacavam justamente pela constância da carga aerodinâmica que reservavam a seus pilotos sob condições reais de uso, em meio a transferências de peso, rolagem, pneus dianteiros apontando para os lados ou em meio à turbulência gerada por outros carros. Ali já eram projetos cujo ponto forte era a confiança que transmitiam aos pilotos, a certeza de que a aderência e o equilíbrio estariam sempre lá, sem surpresas desagradáveis.

Refletindo a esse respeito me restou a impressão de que Newey teria migrado desde referências estritamente acadêmicas e idealizadas rumo a uma filosofia aparentemente mais abrangente a respeito do funcionamento prático e real de um carro de corridas, e talvez tenha se tornado um dos que melhor compreende aspectos que a academia tende a negligenciar.

Essa, todavia, era apenas uma sensação pessoal, e para confrontá-la tomei a liberdade de consultar o grande Gary Anderson, projetista brilhante de tantos carros icônicos na história da Fórmula 1, que gentilmente compartilhou, no depoimento exclusivo ao GPTotal que em tradução livre reproduzo abaixo, sua preciosa visão pessoal a respeito de Adrian Newey, bem como das diretrizes que citei acima. Espero que os leitores apreciem esse privilégio tanto quanto eu apreciei.

Um dos critérios que sempre pressionei meus engenheiros a alcançarem foi a aerodinâmica estável. Muitas vezes seria possível encontrar níveis mais altos de downforce, mas tais opções levariam a um downforce sujeito a vazamentos, criando instabilidade e inconsistência.

Um piloto só irá lidar com isso por um tempo limitado. Em algum momento, a aderência que ele acha que está disponível simplesmente não estará lá e ele vai rodar, mas mais do que isso, ele ficará confuso sobre o motivo pelo qual isso aconteceu. Se isso se repetir algumas vezes, fatalmente o piloto entenderá que precisa ficar um pouco longe do limite e, se fizer isso, você estará desperdiçando alguns décimos de segundo por volta.

Essa estabilidade foi uma das melhores características do Jordan 191. Naquela temporada tivemos cinco pilotos diferentes que correram, e o bom desse carro era que eles podiam entrar nele e forçar o ritmo imediatamente, não tinha nenhum problema esperando para mordê-los.

John Watson, que conheço há muito tempo dos meus dias com a Brabham e a McLaren, foi o primeiro a testar o carro. Havíamos falado sobre o carro cerca de três meses antes desse teste e eu disse a ele o que esperava criar. O seu comentário à época foi “se você conseguir fazer isso, então terá um bom pequeno carro”. Depois que ele fez suas primeiras quatro ou cinco voltas, seu comentário foi que tínhamos alcançado nossos objetivos.

Agora, isso é sobre Adrian Newey, que é sem dúvida o designer de F1 mais bem-sucedido de todos os tempos, mas nem sempre foi assim. Seus primeiros carros de F1, os da Leyton House March, eram rápidos sob condições específicas, mas terrivelmente difíceis de pilotar e muito inconsistentes. Naquela altura de sua carreira ele incorporava cada grama de downforce disponível para o carro, sem fazer concessões.

Após sua passagem pela Leyton House ele foi para a Williams e tenho certeza que essa foi a melhor jogada de carreira que ele poderia ter feito. Sob o olhar atento de Patrick Head, que era Diretor Técnico da Williams, ele aprendeu que havia outras coisas a considerar, além da aerodinâmica. E juntos eles produziram muitos carros vencedores de corridas.

A partir daí, foi para a McLaren, onde ele quase rasgou [os limites] algumas vezes criando carros que eram aerodinamicamente embalados com tanta força que outras partes do carro sofriam, [mas] seus bons carros eram os carros em que o piloto se sentia em casa e era confortável para empurrar consistentemente ao limite.

A mudança para a Red Bull sempre seria frutífera, mas levou alguns anos para ter a equipe certa ao seu redor. Ele precisa de pessoas que entendessem o que ele estava tentando alcançar, mas que não tivessem medo de dizer que algumas das coisas pelas quais ele estava pressionando não eram práticas no mundo real, e ele precisaria ouvi-las e encontrar o compromisso certo.

Através de muitas mudanças regulatórias diferentes e muitas equipes diferentes, ele teve um sucesso com o qual outros, incluindo eu, só podem sonhar, mas não é tudo sobre uma pessoa, é sobre a equipe ao seu redor e como eles operam como uma equipe.

Esses novos regulamentos para carros de F1 de efeito solo para 2022 mostraram que eles estavam prontos ou pelo menos mais prontos para o desafio do que qualquer outra equipe, eles têm um carro que é bom em pistas de baixa velocidade, pistas de alta força aerodinâmica, pistas de baixa força aerodinâmica e alta faixas de velocidade.

Para mim, isso mostra que o carro tem um desempenho aerodinâmico consistente, o que permite que os pilotos, especialmente Max Verstappen, mostrem seu talento toda vez que ele entra no carro.

Ao grande Gary Anderson, cuja generosidade tive oportunidade de conhecer durante a elaboração da biografia de Roberto Pupo Moreno – o livro finalmente está escrito, em fase de edição – fica aqui o sincero agradecimento por mais uma vez abrir mão de seu raro tempo livre para nos dar atenção.

Como se nota, suas virtudes jamais ficaram restritas ao brilhantismo de seus projetos.

Um ótimo fim de semana a todos.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

5 Comments

  1. Carlos disse:

    Excelente coluna, Márcio. Idem seu prestígio junto a Gary Anderson. Quanto a Newey ser o maior projetista de todos os tempos, sem diminuir em nada sua obra/carreira, observo que Edu Correa já o tinha comparado, aqui, com Mauro Forghieri (com vantagem para este, se bem lembro). Adiciono ainda outros projetistas de carros completos, motor incluído, do período pré-2a. Guerra. Além de Uhlenhaut, consideraria Vittorio Jano, Ettore Bugatti, os irmãos Maserati e Dr. Ferdinand Porsche, ao menos. Todos eles foram responsáveis pela início de lendas.

    • Obrigado pelo retorno, meu amigo.
      Pois é, é um universo muito vasto e nem sempre valorizado como deveria. E concordo que os gênios do pré-2ª Guerra merecem igual reconhecimento.
      Agradeço pelo complemento.

  2. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    muito bacana o tema da coluna.
    E penso que tudo que voce disse nela, poderia ser resumido através da palavra “evolução”.
    Hoje com a tecnologia existente e empregada, muita coisa mudou na Formula 1 principalmente nessas ultimas duas décadas. Mesmo com a Formula 1 tendo um regulamento tecnico bem mais restrito a cada temporada que passa, me parece claro que os projetistas de certa forma não foram tão afetados se numa comparação com os pilotos, pois hoje os pilotos pouco ou quase nenhum peso possuem num desenvolvimento de um projeto de um carro de Formula 1, se compradado coms as décadas dos anos 90 pra trás. Vamos lembrar que além da proibição dos testes nas pistas, o regulamento hoje até limita o uso dos tuneis de vento que talvez seja hoje a melhor ferramente para desenvolver um projeto e principal causa por ter rebaixado os pilotos neste quesito. A evolução só trouxe benecifios aos projetistas e no caso do Adrian Newey o que mais se destacou com certeza.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  3. Prezado Márcio Madeira, bom dia.

    Leitura fascinante e esclarecedora.

    Quanto a biografia do Moreno aguardo ansioso. Por favor onde estará disponível para a compra?

    Obrigado e tudo de bom.

    Cordialmente

    Fernando Belinzoni

    • Obrigado pelo retorno, Fernando.
      O livro deverá ser vendido diretamente pela página da editora, e também em eventos de lançamento e dedicatórias que serão divulgados por aqui oportunamente.
      Abraço, e escreva sempre.

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