Cruel, muito cruel

De novo, Bahrein!
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O mestre de Fangio – parte 9
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Para quem assistia ao futebol carioca na década de 1990, deve se lembrar muito bem de Januário de Oliveira. O antigo narrador, hoje aposentado, tinha um estilo descontraído de transmitir futebol e criou vários bordões que entraram para a história. “Lá vem o primeiro carreto da noite” (para a primeira entrada da maca em campo), “Sinistro, muito sinistro” (alguma jogada bisonha), além dos vários apelidos cunhados para os craques de então.

Um dos bordões que ficou na memória de quem acompanhava futebol naquela época era o “cruel, muito cruel”, quando um centroavante marcava um gol. Hoje, quando entrou o rádio da Ferrari anunciando a Charles Leclerc o seu problema de motor e que nada poderia ser feito, na hora me lembrei de Januário de Oliveira, mas de uma forma bem diferente dos animados gols.

Foi cruel, muito cruel com o monegasco. Uma corrida ganha de Leclerc tinha ido para o vinagre de forma melancólica e a Ferrari entregava a dobradinha que parecia ser sua para a Mercedes.

A forma como Charles Leclerc dominou a corrida deste domingo no Bahrein e a forma como ele despachou dois multi-campeões com certa facilidade levanta a velha questão: a F1 está ficando fácil para os jovens pilotos? Qualquer um pode entrar num cockpit de equipe grande e vencer? A resposta não é tão simples como muitos ‘nostálgicos’ querem nos fazer entender.

Primeiro que pilotar um F1 nunca foi fácil em qualquer época e basta observar bem um volante de um carro de F1 atual para ver que levar um bólido com tanta tecnologia ao limite não é trabalho para qualquer um. Segundo que um piloto como Charles Leclerc, desde garoto correndo sob a asa da Ferrari e sua academia de pilotos, teve uma preparação diferenciada. Se antes um piloto precisava de anos de experiência em todos os aspectos antes de entrar na F1, hoje os pilotos são treinados desde praticamente no kart não apenas técnica e fisicamente, mas também mentalmente. Horas em simuladores próximos da realidade, junto com uma preparação física exemplar é completada com um trabalho de mentalização que faz esses pilotos chegarem muito mais maduros e preparados do que quinze, vinte anos atrás na F1.

Leclerc teve seu enorme talento moldado para chegar a corrida de hoje e mostrar o que vimos.

Ele deixou Sebastian Vettel e Lewis Hamilton para trás com a naturalidade de quem estava ultrapassando Artem Markelov ou Oliver Rowland, seus rivais na F2. E o mesmo aconteceria se Charles encontrasse na pista Schumacher, Senna, Clark ou Fangio. Portanto, dominar uma corrida de F1 para um piloto como Leclerc não é nada mais do que mais uma lição colocada em prática com sucesso em seu caminho para se tornar campeão um dia.

A triste falha no motor de Leclerc não seria tão ruim para a Ferrari se Vettel não entregasse a rapadura novamente. Quando o alemão empilhava títulos no começo dessa década, Fernando Alonso dizia que os títulos deveriam ser entregues a Adrian Newey, pai dos Red Bull que ajudaram Vettel a ser tetracampeão de fato. Parecia ser choro de perdedor de Fernando, mas Vettel vai dando cada vez mais munição para os seus detratores.

Porém, mais do que minimizar a força de Sebastian Vettel, o que se percebe é que o alemão só funciona a plenos poderes quando tudo está a ser favor. Mesmo sendo alemão e os cidadãos daquela parte do mundo serem conhecidos pela sua frieza, Vettel parece ser tão latino quanto os italianos da Ferrari que o empregam e os erros acontecem de forma não compatível a um tetracampeão mundial de F1. Quando a briga com Hamilton estava para entrar no ápice no segundo semestre do ano passado, Vettel entrou numa espiral de erros que praticamente entregaram o quinto título para Hamilton de bandeja.

Com Leclerc sendo o dono da corrida, Vettel se envolveu numa briga com Hamilton pelo segundo lugar e acabou rodando sozinho, num erro bisonho que acabou por destruir sua corrida. As lembranças da convivência com o jovem Daniel Ricciardo na Red Bull logo vieram à tona. Sebastian precisa de um ambiente que lhe é favorável em todos os sentidos. Por isso ele fez tanta força para que Raikkonen ficasse mais um ano na Ferrari. Leclerc já vai colocando uma pressão no alemão que o faz cometer
erros banais, como já vistos em outras oportunidades. Com Vettel ainda recuperando-se para ser quinto, a Mercedes teve a sorte de ver o motor Ferrari de Leclerc falhar nas voltas finais e conseguir a dobradinha que todos esperavam ser da Ferrari.

Assim como aconteceu ano passado, a Mercedes consegue vitórias quando todos esperavam que a vitória fosse rossa. E como Bottas esteve milhas de repetir seu desempenho dominante de Melbourne, Hamilton venceu novamente e só não lidera o campeonato por causa do ponto extra conquistado por Bottas na Austrália. Duas dobradinhas quando era esperado apenas uma. Assim a Mercedes vai empilhando campeonatos.

O final da corrida ficou marcado pelo drama de Leclerc, se arrastando na pista e sem ter nada que pudesse fazer, mas seu lugar no pódio foi salvo por um safety-car no finalzinho da corrida. Seria pressão da Ferrari nos bastidores para que a corrida fosse neutralizada e Verstappen, que já tinha Leclerc na alça de mira, não ultrapassasse o seu piloto?

Vejamos o quadro: de forma também dramática, a Renault viu seus dois carros quebrarem com poucos metros de distância. Os carros de Hulkenberg e Ricciardo, mesmo fora da pista, estavam na área de escape, situação em que desde a morte de Jules Bianchi, a FIA vem neutralizando a corrida para que o resgate seja feito com a maior segurança possível. Além do mais, haviam dois carros parados. Talvez o safety-car ‘real’ tenha sido um exagero, mas o ‘virtual’ estava bem colocado, vide o histórico de situações da FIA em situações similares. E da mesma forma, as posições seriam mantidas.

Ou seja, se a vitória de Charles Leclerc lhe foi tirada por um golpe do destino, o seu pódio foi salvo da mesma maneira.

No momento em que jovens pilotos começam a se destacar no automobilismo, juntando a bela exibição de Leclerc a grande vitória de Colton Herta na Indy semana passada, também já podemos constatar que ser jovem não significa exatamente ser um piloto de futuro. Pierre Gasly vem tendo um início de carreira na Red Bull tenebroso. O jovem francês novamente não se classificou para o Q3 no sábado e, largando no meio do pelotão, simplesmente não foi capaz de evoluir, exatamente um ano depois de fazer a corrida de sua vida pela Toro Rosso.

O pálido oitavo lugar de Gasly já começa a levantar questões da continuidade do francês na Red Bull, lembrando dos rígidos códigos de desempenho impostos por Helmut Marko na equipe principal da Red Bull. Ainda jovem e prestes a ser pai, Daniil Kvyat bateu em Antonio Giovinazzi mostrando que o tempo fora da F1 não acalmou o genro de Nelson Piquet, sempre propenso a se meter em confusões. Lance Stroll simplesmente não consegue fazer uma classificação decente e largando no meio do pelotão, a chance de se envolver num toque é muito maior. Dessa vez a vítima de Stroll acabou sendo Grosjean,
mostrando que Stroll nunca irá sair da equipe do papai.

Além de Leclerc, outro jovem piloto a ter bastante destaque nesse final de semana foi Lando Norris.

Considerado uma joia da McLaren, o jovem inglês conseguiu a sexta posição depois de sair da pista na primeira volta e galgar posições até chegar na sexta posição, se aproveitando do abandono de Hulkenberg. Os primeiros pontos de Norris na F1, que se estabeleceu como o melhor do resto na F1, apenas corrobora com a grande preparação dos jovens pilotos antes de entrar na F1, mas também mostra que a McLaren de um bom salto de qualidade em 2019.

Carlos Sainz largou muito bem e acompanhava Max Verstappen quando o holandês errou. Antigo companheiro de equipe do holandês, Carlos partiu para cima de Max e acabou tendo um pneu furado pelo contato imediato com Verstappen. Uma demonstração que, naquele momento, a McLaren tinha condições de acompanhar um carro da Red Bull e a forma como Norris ganhou posições no meio do pelotão mostra que a McLaren tem chances de sobressair na apertada F1-B.

Se a McLaren vai bem, outras duas equipes tradicionais derraparam na areia do deserto. A Renault não fez uma boa classificação, mas em ritmo de corrida mostrou uma boa superioridade frente aos seus rivais a ponto de Nico Hulkenberg sair das últimas posições rumo ao sexto lugar, mas um triste abandono acabou com os sonhos do alemão, mas como desgraça pouca é bobagem, alguns metros depois Ricciardo viu seu carro apagar e a Renault perdeu bons pontos no concorrido pelotão intermediário.

Contudo, se a Renault mostrou potencial, a Williams segue em seu calvário. Mesmo com
tantos carros batendo na primeira volta e perdendo muito tempo, o tradicional time não saiu
das últimas posições. A chegada de Patrick Head é uma tentativa de amenizar a bagunça geral
que atinge a tradicional Williams.

A MotoGP teve uma corrida à la F1 uma hora depois da bandeirada no Bahrein. Se a corrida na Argentina fosse resumida em poucas palavras, seria algo como, Marc Márquez largou muito bem da pole, abriu quase 1s na primeira volta e… pronto! Hoje Marc Márquez fez que esquecêssemos sua corrida tresloucada do ano passado em Termas de Rio Hondo para vencer de uma forma até pouco usual na MotoGP. Atrás, bem atrás dele, a briga pela segunda posição foi animada, mas sem eletricidade da corrida do Catar vinte dias atrás.

Completando 23 anos de Mundial de Motovelocidade, Valentino Rossi conseguiu uma ultrapassagem sobre Andrea Doviziozo na última volta para retornar ao pódio após vários meses de jejum.

Apesar da MotoGP viver uma ótima fase, Marc Márquez continua estragando a competitividade da categoria com uma pilotagem acima da média, fazendo que, por exemplo, Jorge Lorenzo passasse outro vexame após uma largada horrorosa e uma corrida de recuperação opaca que o fez chegar apenas em 13º. Muito pouco para quem tinha a mesma moto do vencedor com sobras da corrida…

Enquanto a Ferrari vai pisando no tomate, a Mercedes vai construindo mais um título baseado no seu trabalho e na forma de capitalizar os vacilos alheios. Como corridas são corridas, assim falava Juan Manuel Fangio, o dia que parecia pertencer a Ferrari acabou nas mãos da Mercedes, enquanto Charles Leclerc viveu uma derrota das mais cruéis dos últimos tempos.

Abraços!
João Carlos Viana

JC Viana
JC Viana
Engenheiro Mecânico, vê corridas desde que se entende por gente. Escreve sobre F1 no tempo livre e torce pelo Ceará Sporting Club em tempo integral.

1 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    JC

    Boa coluna e ótimos comentários.
    A lembrança do Januário de Olveira foi muito oportuna.
    Mas o grande azar do Leclerc, foi o problema ter acontecido na pista do Barein e não em Monaco como aconteceu com D. Ricciardo que perdeu a potencia do motor da sua RBR mas mesmo assim conseguiu levar o seu carro a vitoria … ai se fosse em Monaco, será que Leclerc dava conta do recado em casa?


    Na Moto GP o nome a ser batido é o Marc Marquez … vamos ver se as Ducattis conseguem este feito … não acredito na Yamaha … por causa do peso da idade do Rossi e pela decepção que eu estou tendo com o Maverick Vinalles que assim como Pedroza só leva poeira na cara

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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