Ele era diferente de nós

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Em sua coluna mais recente, nosso amigo Eduardo Correa reproduziu uma declaração de Jacques Lafitte a respeito do saudoso Gilles Villeneuve, que soa perfeita tanto pela simplicidade quanto pela precisão da mensagem. Comentando mais uma pilotagem alucinada do pequeno canadense, Jacques declarou: “Villeneuve é diferente do resto de nós…”. E ele era, mesmo.

Afinal, quantos pilotos de Fórmula 1 você conhece que tenham, ao longo de toda a carreira, tentado esconder a verdadeira idade? Pois vale lembrar que no momento de sua morte, Gilles havia conseguido convencer boa parte do paddock de que havia nascido em 1952, e não em 1950, como seria correto. E mesmo hoje, quase três décadas após a sua passagem, ainda muitos textos irão afirmar que ele contava 30 anos quando encontrou o próprio destino em Zolder. Uma confusão que ele mesmo criou, com o único intuito de se tornar mais atraente às equipes, da mesma forma como tantos jogadores de futebol – os famosos ‘gatos’ – fizeram no passado.

Mas claro, suas peculiaridades iam muito além da ‘inocente’ manipulação de informações na própria biografia. Bastaria a gente questionar, por exemplo, quantos pilotos de destaque iniciaram suas carreiras em corridas de dragster amadoras. E, dentre estes, quantos evoluíram para as provas de trenó motorizado em circuitos de neve? Não, definitivamente, Gilles não poderia mesmo ser igual aos outros. Não é de se admirar, após uma trajetória dessas, que o bravo canadense tenha se revelado um dos melhores largadores em toda a história dos GPs, se não o melhor deles. Da mesma forma, parece muito coerente ele ter se tornado legendário justamente por guiar sempre atravessando o carro, sempre de lado, como se jamais tivesse deixado de pilotar trenós sobre a gelada neve canadense.

Diferente. Eis uma definição perfeita para Gilles. Diferente naquilo que conseguia controlar dentro da própria personalidade, e diferente também no próprio descontrole, na paixão sem compromissos que tantas vezes se apoderava de sua consciência e o atirava cegamente rumo aos limites da velocidade.

Afinal, que outro piloto jamais acreditou, e isso é fato, que a maneira mais rápida de descobrir os limites de um determinado carro numa determinada pista seria através de rodadas uma após a outra? Pois Gilles estava convicto disso. Se houvesse dúvida quanto à velocidade ideal para uma determinada curva, então ele chutava para cima, pagava pra ver. Literalmente descobria o limite de fora para dentro, e o fazia por convicção. Toda a tradicional rotina de experimentação, na qual o piloto aumenta o ritmo até esbarrar nos limites, era lenta e conservadora demais para ele. E notem: essa era a parte controlável de sua personalidade em ação, sua faceta mais ajuizada. Sim porque, geralmente ao primeiro som de um motor, esse piloto já louco por natureza parecia incorporar alguma entidade automobilística de inclinações kamikazes, tornando-se ainda muito mais arrojado. Ele mesmo vivia dizendo que a coisa era mais forte do que ele. Tente imaginar algo na linha de “O médico e o monstro”, trocando o médico por um alimentador de tubarões. Gilles era mais ou menos isso.

E sempre fora assim. Aos 15 anos, por exemplo, Gilles não se conteve e providenciou uma cópia secreta da chave do carro que seu pai havia acabado de comprar, com dinheiro levantado em empréstimos. E então, numa madrugada chuvosa, empurrou com a ajuda de um amigo o pesado Pontiac Grand Parisienne para longe de casa, onde pode finalmente fazer pegar o motor.

Poucos minutos depois o pequeno Gilles já havia descoberto que a velocidade máxima do carro era de 174 km/h, e foi quase a esta razão de deslocamento que ele se viu diante de uma curva bastante fechada. Perdeu o controle do veículo, saiu da estrada, derrubou um poste telefônico e continuou até entortar o carro contra um segundo poste. A rigor, a porta do motorista empenou a ponto de chegar à alavanca do câmbio automático. O carro possuía seguro, mas como o motorista não era habilitado, todo o investimento foi perdido.

Se ele aprendeu a lição? Bom, cerca de dois anos mais tarde, já habilitado e dono de um MGA preto conversível, Gilles pegou a estrada com a intenção de visitar Joann Barthe, a garota com quem viria a se casar. Tudo ia bem até que à sua frente surgiu um poderoso Plymouth Road Runner, com seus absurdos 425 cv de potência. Um monstro, mas também um desafio cuja tentação, mais uma vez, foi forte demais para que Gilles pudesse controlar. Ele tentou ultrapassar, o motorista à frente acelerou em resposta, e bingo! Estava formalizada a perseguição.

É curioso como, até nisso, Gilles seguia na contramão de seus pares. Deficiências por parte do equipamento jamais o abalaram. Ao contrário, para Villeneuve, quanto pior fosse o carro que tinha em mãos, maior o desafio. E, por conseguinte, mais ele desejava vencer.

Graças a essa gana incontrolável, a perseguição ao Plymouth durou muito mais do que seria possível em condições normais. E, a rigor, só terminou quando seu adversário provocou uma rodada emergencial, a fim de evitar uma manada de vacas que cruzava a pista. Gilles, logo atrás, tinha problemas de freios, que ele mesmo havia revisado de maneira um tanto quanto negligente. O carro não ia parar a tempo, e Villeneuve se viu obrigado a lançar mão de algumas manobras evasivas. O MGA voou para fora da estrada, caiu e capotou numa vala, indo parar de cabeça para baixo. Não havia cinto de segurança nem tampouco santantônio, mas Gilles de alguma forma conseguiu se manter preso ao carro durante a capotagem. Sofreu apenas alguns cortes na cabeça, e somou os primeiros oito pontos de sua carreira.

Anos mais tarde, quando já guiava para Maranello e era conhecido no mundo todo, Gilles costumava voar baixo pelas estradas próximas à sua casa em Mônaco, ao volante de sua Ferrari de passeio. Idolatrado por policiais e quaisquer autoridades que eventualmente poderiam repreendê-lo, o canadense tinha o hábito de passar pelas praças de pedágio a altíssimas velocidades, sempre arremessando uma bolsa cheia de moedas no valor exato da cobrança. Se essas bolsas eram recolhidas depois, não se sabe. Mas o certo é que ele tinha várias delas, sempre prontas no porta-luvas de seu carro.

Nesta mesma altura Gilles já havia começado a pilotar seu próprio helicóptero, e sua prudência nas alturas não era maior do que ao volante. Certa vez, voando de Fiorano para Mônaco no helicóptero emprestado pela extinta equipe Wolf, Gilles pilotava e dava uma carona ao amigo e companheiro de Ferrari Jody Scheckter, quando uma luz vermelha começou a piscar no painel. “Que diabos significa isso?!” – exclamou o campeão mundial de 1979. “Nada. Não é importante” – respondeu Gilles.

Pouco depois, quando a aeronave pousou no aeroporto mais próximo para que todos pudessem cumprir os trâmites migratórios da época, Jody pegou o manual e descobriu que a tal luz era um alerta de que a bateria havia superaquecido e corria o risco de explodir. O procedimento correto seria pousar em 30 segundos!

Quando Gilles voltou, o sul-africano queria esganá-lo. “Villeneuve, the fuckin’ battery is kaput!” – exclamou, numa frase que dispensa tradução. “Você não vai decolar e matar todos nós!”. Gilles, no entanto, mantinha a calma e assegurou que não havia problema. E então, quando todos sobrevoavam o oceano a quase 4 mil pés de altitude, a tal luz voltou a piscar. Enquanto Jody xingava o companheiro e dava sinais de que poderia infartar, Gilles ia ligando e desligando o motor, ganhando e perdendo altitude, para assim fazer a viagem sem aquecer demais a bateria.

Quando finalmente chegaram, Jody jurou que nunca mais tornaria a voar com Villeneuve. E cumpriu a promessa.

Ao contrário de Scheckter, Enzo Ferrari gostava muito da bravura inconseqüente de seu piloto. “Se um carro consegue sobreviver ao poder destrutivo de Villeneuve, então ele pode suportar qualquer castigo, nas pistas e nas ruas” – costumava dizer o Comendador.

Mas Gilles não era diferente apenas pela forma como guiava, ou por não conseguir se controlar. Nos fins de semana de corrida, primeiro no Canadá e depois na Europa, ele costumava ficar hospedado no próprio circuito, com toda a família, dentro de seu motorhome particular. Amante das corridas, da família, e de boas horas de sono, Gilles unia assim um pouco daquilo de que mais gostava. O luxo dos excelentes hotéis a que teria direito jamais o atraiu.

Por todas essas peculiaridades, sempre me senti um tanto desconfortável diante das insinuações recorrentes de que Gilles teria sido um dos maiores pilotos de todos os tempos. A meu ver, este tipo de caminho é injusto com o próprio Gilles, posto que deixa de valorizar justamente aquilo que o torna tão especial.

Sem em nenhum momento negar ou diminuir seu talento assombroso, o fato é que Gilles sempre foi movido por alguma força da natureza, alguma determinação sobrenatural incapaz de considerar qualquer inibição diante dos limites físicos. Faltava-lhe o autocontrole para não ‘superpilotar’ seus carros, para não castigá-los desnecessariamente, para desenvolver um mínimo de visão estratégica que fosse.

Ainda assim, sem sombra de dúvida, é justamente essa paixão incondicional pela velocidade, essa indiferença plena em relação ao medo ou à sustentabilidade, que tornam Gilles ao mesmo tempo tão especial e tão humano. Ironicamente, ele tinha dentro de si todo o talento necessário para dominar o esporte. No entanto, trazia igualmente nas veias toda a paixão que o impedia de dominar até mesmo a si próprio.

Não, a meu ver, Gilles não está entre os melhores de todos os tempos. Seu lugar justo é numa classe à parte, avaliado segundo parâmetros próprios, sem grandes termos de comparação. Ele sempre fugiu ao óbvio, às regras. Traçou seu próprio caminho.

Foi diferente, enfim.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

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