Inanimados?

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Pode uma máquina, ou algo criado pelo engenho humano, ser capaz de verdadeiramente raciocinar, aprender, ou mesmo experimentar emoções? E mais: em caso afirmativo, ser-nos-ia apropriado cruzar tais fronteiras, adentrando terrenos historicamente reservados ao divino?

Eis aí um par de perguntas que nos perseguem já faz um bom tempo. Quando da descoberta da energia elétrica, por exemplo, suspeitou-se que nela pudesse residir o tão perseguido segredo da vida. Inevitáveis temores e dilemas éticos permearam a sociedade, e acabaram sendo sintetizados pela genialidade de Mary Shelley no fabuloso romance Frankenstein, também chamado de “O Prometeu Moderno”, justamente por mergulhar no pesadelo das consequências inevitavelmente trágicas de quando o homem se pretende Deus.

Dilemas semelhantes afloraram ao longo de décadas posteriores através dos avanços em imunização, reprodução assistida, transplantes de órgãos, implantes e interações entre biologia e engenharia… E, claro, sobretudo na genética, diante das possibilidades de interferência humana em características fundamentais de outros seres vivos, notadamente no que tange a produção de alimentos, ou mesmo da possibilidade de clonagem, refira-se ela a órgãos isolados, alimentos, animais de nosso tempo ou já extintos, e até mesmo pessoas. Na atualidade o debate segue aceso, gravitando em torno do potencial, dos riscos e das implicações éticas ou econômicas da chamada inteligência artificial.

A arte, naturalmente, nunca deixou de captar tais vibrações. Filmes como 2001: Uma Odisseia no Espaço; O Exterminador do Futuro; Matrix; Blade Runner; Eu, Robô; Inteligência Artificial; Ex Machina; O Homem Bicentenário; Era de Ultron; Gigantes de Aço; Robocop e tantos outros abordaram diversas possibilidades de relação entre criação e criatura, de uma forma ou de outra trazendo questionamentos a respeito daquilo que nos diferencia, ou não, de tudo que somos capazes de conceber através do intelecto.

Mas e quanto às nossas máquinas favoritas, aquelas que nos transportam de um ponto para outro, tantas vezes deixando o próprio deslocamento em segundo plano, quase um pretexto para as emoções que nos despertam? Ora, no cinema e no imaginário popular, tivemos um leque de carros dotados de personalidade que vai desde o simpático fusquinha Herbie à ciumenta Christine, o “carro assassino”, passando pelos Transformers ou pelo inesquecível Kitt, a “Super Máquina”. Além, é claro, da popularização de lendas envolvendo carros supostamente amaldiçoados, entre os quais se destaca o malfadado Gräf & Stift 28/32 Double Phaeton 1911 que transportava o arquiduque Francisco Ferdinando e a duquesa Sofia quando ambos foram abatidos pelo jovem Gavrilo Princip – ela, de maneira acidental – dando início à cadeia de eventos que foram aproveitados como justificativa para a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Ficção, claro. Ainda que a tecnologia embarcada não pare de crescer e que as possibilidades de interação com computadores de bordo sigam em expansão, e até mesmo que a estrutura que cedo ou tarde irá dispensar a figura do motorista já se encontre bem evoluída, ainda não chegamos ao ponto em que um carro possa ser tratado com um ser consciente, com vontades e sentimentos próprios.

De acordo até aqui.

Mas… Se é assim, se é só isso mesmo, por que diabos o vídeo de Nigel Mansell retornando ao cockpit da Williams FW14B, com a qual sagrou-se campeão mundial em 1992, arrancou lágrimas minhas, de Lucas Giavoni e Mário Salustiano quando o vimos compartilhado num grupo de WhatsApp? Que magia é esta que une para sempre os destinos de homem e máquina, capaz de dar tamanho grau de personalização, de assegurar que faça tanta diferença quem está guiando qual carro, qual chassi em específico, acelerando qual motor?

Não tenho uma resposta definitiva, apenas hipóteses que provavelmente se combinem, junto a outras que possivelmente escapem à minha percepção. Naturalmente a história que carro e piloto tenham escrito juntos é fator primordial, tanto para fortalecer a união entre eles, como para agregar sentimentos a quem os vê juntos mais uma vez.

Certamente também não podemos descartar as inevitáveis associações que cada um fará ao ver algo que fez parte de uma época anterior de sua própria vida, a qual pode ter sido feliz ou nem tanto, dando margem a alguma camada de saudosismo que não devemos desprezar numa análise séria. E há ainda, é claro, a emoção inerente à passagem do tempo, a imagem do ídolo envelhecido e a consciência de que nossa própria ampulheta também já acumula muita areia do lado de baixo.

Tudo isso faz muito sentido, mas será que bastaria para explicar as lágrimas de um bando de marmanjos como nós, ou os grandes esforços tantas vezes feitos para que carros e pilotos campeões possam se reencontrar para uma nova acelerada? E que tal a emoção de Emerson Fittipaldi, aos prantos e com a voz embargada ao retornar ao volante do emblemático chassi nº 5 da Lotus 72?

Em nossos íntimos sabemos a resposta, claro que sabemos. A emoção que sentimos diante de tais encontros só é tão grande porque não temos carinho, respeito e admiração apenas pelos homens, mas também pelas máquinas com as quais encantaram o mundo. Vemos e sentimos suas diferentes personalidades, suas manhas, seu rugido, sua força, e sabemos que ninguém no mundo as conhece melhor do que esses senhores de rostos enrugados e cabelos brancos, ninguém saberia como acessar melhor suas virtudes, ninguém tem mais intimidade com suas idiossincrasias.

A emoção transborda porque sentimos como se estivéssemos vendo o reencontro de dois velhos amigos, dois irmãos de armas, duas criaturas que lutaram, perderam e venceram juntas, assumiram riscos compartilhados, enfrentaram rivais poderosos em disputas duras, intensas e perigosas. Viveram glórias, alcançaram o topo, e então foram separados, se tornaram obsoletos, deram lugar ao novo que sempre vem.

 

Os olhos molham porque reconhecemos a justa parcela da máquina nas manobras e campanhas que nos ensinaram a amar o esporte a motor, da mesma forma como é justo reconhecer a contribuição do cavalo em provas de hipismo, por exemplo. Sim, o piloto dá o comando, pede aceleração, solicita frenagem, indica mudanças de direção, mas quem executa tais ordens é a máquina, quem enfrenta o paredão de ar, quem encara a turbulência, quem converte energia em escala inacreditável, quem se agarra com unhas e dentes às ranhuras do asfalto ou suporta com raça as ondulações da zebras, quem eventualmente toca outros carros e acumula danos.

De fato, para quem tem gasolina nas veias, é difícil demais não enxergar semelhanças profundas entre carros e motos de competição e a poderosa verve exalada por animais dedicados a qualquer atividade esportiva ou militar. Ver um veículo de corrida sendo levado aos limites por um domador destemido e competente é algo que ecoa em nossa memória biológica, que remonta ao domínio pré-histórico de feras e bestas mais poderosos do que nós, passa pelo longo histórico de guerras e batalhas travadas sobre montarias, e se mistura à beleza das amizades improváveis, da união de almas de naturezas diferentes, do tipo de respeito mútuo que só se forja no sacrifício compartilhado.

“Ora, que texto ridículo, carros não têm alma”, dirão os práticos. E estão certos, é claro. Sabemos que não têm. Mas, tal qual o jovem personagem vivido por Johnny Depp no filme Don Juan de Marco, sinto que o passar dos anos cada vez mais me convence de que a existência só pode fazer algum sentido quando mergulhada em um mínimo de poesia, e que muitas vezes ver o mundo pelos olhos de uma criança torna tudo mais bonito, mais estimulante para a prática do bem, e até mesmo mais coerente.

Quando fui obrigado a vender um carro que foi de minha família por mais de 30 anos, dentro do qual eu cresci e vivi alguns momentos inesquecíveis de minha vida, me permiti chorar. Da mesma forma, me permito cumprimentos discretos e algumas palavras sussurradas nas ocasiões fortuitas em que o vejo passar por mim, e me sinto feliz por ver que está sendo bem cuidado e vivendo novas histórias.

Um pouco de loucura de minha parte, possivelmente? Ora, quem sou eu para dizer que não…

Ou, talvez, o quanto de magia e poesia cada pessoa esteja disposta a enxergar em meio a essa nossa breve aventura aqui embaixo seja justamente a principal manifestação da alma humana, cuja exclusividade tanto reivindicamos.

Forte abraço a todos

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

11 Comments

  1. manuel disse:

    Querido Márcio,

    Como o vinho… melhoras com os anos !

    Um abraço !

  2. Marcelo Ribeiro disse:

    Texto simplesmente sublime! Me identifiquei completamente! Parabéns…

  3. Ur disse:

    Não perdemos nada por romantizar carros, máquinas…nossas ou de antigos ídolos; pelo contrário, só temos a ganhar pois humanizar nos torna ainda mais humanos, criaturas singulares que mesmo mergulhados num mundo cheio de tranqueiras e conflitos (por nossa culpa), conseguem produzir uma qualidade de amor e de sentimentos bons que resvalam nas qualidades do divino, caso esse (ideal) exista.

  4. Rafael Friedrich Rudolf Brandão Manz disse:

    Não a toa todos os dias clico aqui para ver se já foi publicado algo e poder ler coisas sempre maravilhosas. Vida longa e próspera à todos, excelente semana a todos os Gepetos.

  5. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    Lotus 72 um ícone
    Emerson Fittipaldi um ícone
    um reencontro dessa magnitude gera lágrimas com certeza. Inclusive minhas também
    Adorei a foto que abre a coluna e o vídeo do Emerson e Damon Hill andando na Lotus

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Obrigado pelo retorno de sempre, Fernando.
      E quando estiver por Friburgo não deixe de avisar.
      Abraço, amigo.

      • Fernando Marques disse:

        Marcio,

        estive em Friburgo no feriado de Corpus Christis, mas infelizmente não tive como te avisar pois assim como no inicio do ano, fomos vários casais amigos para Muri., o que impossibilitaria da minha parte poder agendar um encontro para a gente se conhecer pessoalmente. Mas prometo que vou dar um jeito da proxima vez que estiver na área …

        Fernando Marques

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