Lágrimas em francês

Relevância relevante
12/06/2023
Ombreando gigantes
19/06/2023

Alguns meses atrás*, eu buscava na internet algumas imagens de edições clássicas das 24 Horas de Le Mans, corrida que tanto venero. Então me deparei com uma daquelas fotos que são capazes de fazer a gente parar tudo o que está fazendo – pra ficar olhando, olhando, olhando. É o tipo de imagem forte, especial, que desperta uma curiosidade quase imediata em querer entender o contexto que a envolve. E que mereceu ser o tema desta coluna.

A foto em questão foi tirada em 15 de junho de 1980 por um espectador francês chamado Jean-Claude e mostra os pilotos Jean Rondeau e Jean-Pierre Jaussaud momentos após vencerem a prova em La Sarthe. Em cima do carro vencedor e rodeados por uma multidão que parece não ter fim, Rondeau, de macacão vermelho, está com a cabeça baixa, visivelmente esgotado, enquanto Jaussaud, de branco, está com uma das mãos no rosto, logo abaixo do nariz, como se não acreditasse naquilo que estava acontecendo.

Rondeau (vermelho) e Jaussaud (branco), visivelmente exaustos e emocionados, engolidos pelo público

O semblante de ambos denota que algo extraordinário acabava de acontecer em meio àquela apoteose. E, de fato, aconteceu.

Uma corrida épica havia sido disputada. Junto ao agora bicampeão Jaussaud, vencedor pela Renault em 1978, Jean Rondeau, um nativo da cidade de Le Mans, passava a ser o único ser deste planeta a ganhar a exigente maratona com um carro construído por ele mesmo – grosso modo, no quintal de sua casa. E ganhou de modo simplesmente espetacular.

Seu ágil e gracioso Rondeau M379B número 16, impulsionado pelo popular Ford-Cosworth DFV (preparação Mader), derrotou um esquadrão inteiro de Porsches, entre eles um monstruoso protótipo 908/80 biturbo pilotado pelo mítico Jacky Ickx – um carro muito, muito mais rápido, com o melhor piloto de endurance do mundo naquele momento. E tudo isso diante de condições meteorológicas incrivelmente diversas, em um roteiro recheado de dramaticidade.

O melhor carro, 908 (936), com o melhor piloto do mundo, Jacky Ickx. Como derrotar tal combinação?

O grid tinha no vitorioso Porsche 935 seu modelo mais popular, seja em versão cliente (5 inscritos), seja na versão modificada pela Kremer Racing, a K3 (9 inscritos), que ganhou em 1979 e defendia o título. Por sinal, 24 dos 55 carros do grid de 1980 eram da marca tedesca… E entre eles estava o referido protótipo número 9 da Martini Racing, o 908/80, de carroceria aberta, para Ickx e Reinhold Joest, piloto e dono da equipe. Este, em relação ao Rondeau, era 60 kg mais leve, 80 cv mais potente, e com 25 km/h a mais de velocidade máxima, o que resultava voltas de 7,5s a 10s (!) mais rápidas.

O fato é que esse Porsche não era um velho 908 ‘atualizado’. Era, sim, um modelo 936 zerinho, o mesmo que venceu em 1976, 1977 e venceria também em 1981. A Porsche, que não participou com equipe oficial, teve que inventar que vendeu para Joest um modelo remendado (apelidado pelos ingênuos jornalistas de Frankenporsche) a fim de não desagradar outra cliente fiel, a Kremer, que também poderia querer um. Rondeau, por seu lado, colocou três carros na pista, capitaneados pelo #15 da dupla Henri Pescarolo / Jean Ragnotti, que largou em 1º.

A forte chuva aumentou ainda mais o desafio das 24 horas. Ickx preferiu preservar o carro no começo.

Chovia torrencialmente hora da largada, às 16h do dia 14 de junho. Como jamais havia acontecido na farta história da prova. Em meio ao aguaceiro das voltas iniciais, Ickx, que não marcou a pole para não chamar a atenção (foi praticamente 10s mais lento do que poderia!), tirou novamente o pé para não arriscar o carro no começo, deixando os Rondeau se pegarem com os 935 e um BMW M1.

Nas três primeiras horas de prova, a liderança ficou com o falecido Bob Wollek, num 935 versão cliente (#45), seguido de um inspirado Hans Stuck numa BMW M1 (#84), que partiu da 26ª posição (!), mas que sofreria um acidente que danificou muito o carro, demandando demorados reparos. Em 3º vinha um K3 pilotado por John Fitzpatrick (#70), da equipe do rechonchudo gentleman driver Dick Barbour, carro muito rápido nos treinos.

Rondeau 15, de Pescarolo e o Porsche 70, de Fitzpatrick, formaram a 1ª fila

Ickx passou a hora inicial em modesta 7ª posição e estava em 4º quando a pista começou a secar, sinal para começar a acelerar de verdade. Depois da terceira hora, a liderança já era dele e seu fortíssimo Porsche #9. O valente Rondeau #16, que era apenas 9º na hora inicial, teve que recolocar o capô e chegou a estar em 10º na abertura da segunda hora, mas subiu para 6º assim que Ickx e Joest pegaram o comando, no cair da noite.

Com pista livre e totalmente seca, o Porsche #9 começou a abrir distância de modo até constrangedor para o restante do pelotão, virando voltas até 10s mais rápidas. Mas surge o primeiro drama na quinta hora de prova, quando o carro que massacrava a concorrência encosta nos boxes e perde 13 minutos para solucionar um problema de injeção, voltando em 7º. O Rondeau #15 de Pescarolo e Ragnotti era o novo líder, posto que ocuparia até a entrada da 8ª hora, quando o K3 #70 de Fitzpatrick, Brian Redman e Barbour assumiu o controle. Nesse ponto, o Porsche de Wollek já era carta fora do baralho.

Stuck brilhou na chuva, até sair da pista e danificar sua BMW M1

Na madrugada francesa, enquanto o Rondeau #15 começa a perder rendimento até abandonar na 10ª hora com motor quebrado, Rondeau e Jassaud finalmente chegam à liderança, superando o #70 da Barbour, que perdeu tempo com problemas elétricos – a chuva aumentou muito esse tipo de ocorrência. Mas Ickx e Joest já estavam plenamente recuperados e ultrapassam a todos como um foguete, voltando ao comando a partir da hora 11, antes da metade.

O Porsche #9 novamente começa a abrir vantagem obscena e estabelece a melhor volta da corrida em 3min40s6, 7s3 mais rápido que o segundo melhor tempo, do desistente Rondeau #15, e 9s6 mais rápido que o tempo do Rondeau #16 – aquele mesmo, que ganharia a prova em cima deles…

As posições ficam estabilizadas até o amanhecer – Porsche #9 muito à frente, seguido pelo Rondeau #16 e o Porsche #70. Entretanto, na entrada da 19ª hora de prova, às 11h da manhã local, outro elemento dramático estava a caminho. O Porsche #9 teve a 5ª e última marcha quebrada. Eles foram para os boxes, mecânicos abriram o câmbio para trocar engrenagens e alongar ao máximo a 4ª marcha. Era proibido pela regra da época trocar a caixa toda.

Essa nova ocorrência fez com que Jaussaud, piloto a bordo do #16, ficasse com 5 voltas de vantagem. Ainda assim, o desfecho estava longe de se estabelecer. Um trecho do especial sobre Jean Rondeau publicado no site Le Mans Portugal descreve o drama das 3 horas finais:

Uma pancada de chuva surpreendeu Rondeau, enquanto o Porsche 9 descontava mais uma volta

“Jaussaud passa o volante a Rondeau, que sai para a pista com pneus slick quando volta a cair uma forte chuva no circuito de La Sarthe. Apanhado de surpresa, ainda nas curvas Dunlop, o piloto-construtor francês não consegue evitar o despiste, batendo nos rails de proteção. O motor vai abaixo e Rondeau só ao fim de imensas tentativas é que consegue voltar a colocar o V8 da Ford em funcionamento. Visivelmente nervoso com o sucedido, e vendo a vitória escapar-lhe por entre os dedos, Rondeau segue muito lentamente pela pista ignorando as trajetórias. […] Acaba por só ficar uma hora em pista, entregando o seu protótipo a Jaussaud – de longe um piloto mais capaz e experiente para terminar a prova e segurar a vitória – que entra em pista de novo com pneus slick, pois já havia terminado de chover.

A pouco mais de meia hora do fim da prova a chuva regressa, e Ickx, que conduzia o último turno do Porsche 908/80, vai à box trocar para pneus de chuva, quando estava a 2 voltas de Jaussaud. Este decide não fazer o mesmo e aparentemente faz uma boa aposta, pois consegue manter o comando da prova de forma segura, apesar da aproximação de Ickx.

Mas a poucos minutos das 16:00, começa a chover copiosamente e Jaussaud, ao volante do Rondeau M379B, segue à frente da corrida, com Jacky Ickx, ao volante do Porsche 908/80, a uma volta. Mais ou menos a meio do velho traçado, Jaussaud apanha um lençol de água e o Rondeau sai em frente pela escapatória. No boxe do pequeno construtor artesanal francês, o sangue gela a Jean Rondeau e restante da equipa, mas Jaussaud consegue manter o carro em funcionamento e, longe dos rails, volta lentamente para a pista e consegue a primeira vitória de sempre de um piloto/construtor em Le Mans. Na volta de consagração, dezenas de milhares de adeptos inundam a pista em delírio, para dar a Rondeau e a Jaussaud aquela que foi talvez a maior ovação a um vencedor das 24 Horas de Le Mans.”

Não foi uma simples vitória de pilotos franceses com um carro francês na principal prova do país – o que, isoladamente, já valeria muito. Foi mais, muito mais. Foi heroico. O triunfo da dupla Rondeau / Jaussaud em Le Mans 1980 foi a maior glória da França no esporte a motor em todos os tempos. Foi algo tão grande que faz questões de nacionalismo parecerem pequenas e rendem reconhecimento oriundo de qualquer canto do globo. Glória esta que pode ser vista e revista num olhar sobre uma foto feliz.

Porque a gente vive de emoção quando olha para o automobilismo.

Lucas Giavoni

__________________________________________________________

*Texto publicado originalmente em 17/02/2011, revisado e atualizado pelo autor. 

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

7 Comments

  1. wladimir duarte sales disse:

    Não é demérito vencer seis vezes(Ickx), uma delas vitória suada com o lendário Ford GT-40, estando no time certo e na hora certa. Só que Jean Rondeau teve um feito único que o iguala a Jack Brabham na F1 e que antes teve várias derrotas até chegar à vitória consagradora em 1980. Pierre Leveigh quase conseguiu um triunfo incomum com um Talbot em 1951 insistindo em guiar o carro por toda a corrida sem revezar com outros pilotos mas no fim o carro não resistiu.

  2. Fernando Marques disse:

    Excelente lembrança de uma sensacional corrida e um dos grandes exemplos que numa corrida tudo pode acontecer … principalmente em Le Mans …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  3. Edu disse:

    É por histórias como essa que a gente ama essa bagaça!

    Abração, Lucas

    Edu

    • Lucas Giavoni disse:

      Toda vez que vejo ou revejo algo referente a essa corrida, não consigo conter a emoção. Certamente é a edição de Le Mans que eu mais gostaria de ter visto ao vivo.

      Imagine ver aquela apoteose de franceses celebrando a vitória de um piloto nascido em Le Mans, num carro construído por ele mesmo, derrotando a melhor marca e o melhor piloto do mundo, tudo sob chuva torrencial. É uma combinação forte demais.

  4. Mauro Santana disse:

    Esse texto é muito bom, jo o li várias vezes na versão antiga do gepeto.

    Amigos, tem algum canal que transmita a corrida neste final de semana?

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  5. Mario Salustiano disse:

    Lucas,

    esse relato é pura emoção e melhor do que lê aqui e ter a chance de conversar e ver o brilho nos teus olhos quando voce fala dessa corrida, de fato emociona saber que existem no mundo real exemplos de David versus Golias e que esses feitos vem as vezes do acreditar que o impossível só existe para quem não tenta.
    Que Le Mans nunca perca esse romantismo que ainda resta no automobilismo

    abraços

    Mário

  6. Fernando Marques disse:

    O Nelson Piquet também venceu algumas corridas de longa duração com esse BMW M1, se não me engano … aliás sempre achei este BMW lindo demais …
    Fora isso show de bola o texto …
    Se puder, pois devo trabalhar neste fim de semana, vou tentar ver a largada e a chegada da Le Mans 2013 …
    Uma perguntinha: o Lucas di Grassi vai pilotar um dos e Audi favoritos a vitoria … será que lá tem jogo de equipe quje possa impedir ele de tentar a vitoria?

    Fernando Marques
    Niterói RJ

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *