Lições de pista e de vida

Serenidade – Leia a coluna, veja o video
17/09/2024

Algo fascinante a respeito do esporte a motor é que ele não é simples, sob qualquer ângulo que o encaremos. Já falamos aqui mesmo, por exemplo, a respeito de como Adrian Newey evoluiu de um projetista purista e catedrático, que buscava sempre a melhor relação possível entre arrasto e carga aerodinâmica, para alguém que passou a priorizar o equilíbrio geral e a constância, compreendendo que – vejam só – a confiança que o carro transmite ao piloto nas condições caóticas do mundo real, a certeza de que não haverá vazamentos de downforce ou reações inesperadas e surpreendentes, mesmo que sacrificando em parte os picos de desempenho, rende, por si só, preciosos décimos de segundo a cada volta através da redução das margens de segurança adotadas por quem aciona os pedais e vira o volante.

Curioso isso, não? Abrir mão de certas potencialidades mecânicas em favor de uma aposta em benefícios de médio prazo, explorando os muitos fatores externos que poluem (e enriquecem) as corridas, as zonas sombreadas que não podem ser reduzidas a simples funções matemáticas. Algo análogo ao sacrifício deliberado de peças num jogo de xadrez, em favor de um posicionamento que assegure maior atividade às peças restantes e possa compensar, ou não, a momentânea defasagem material.

O fato é que a busca pelos limites, mais cedo ou mais tarde, deixa de ser meramente aritmética e começa a demandar sacrifícios de alguma natureza. Um piloto que queira encontrar o limite entre carro e pista, por exemplo, terá facilidade em melhorar seu tempo inicial, mas em algum momento de sua curva evolutiva se verá obrigado a identificar quais os pontos estrategicamente mais importantes, como aqueles que antecedem grandes zonas de aceleração, e terá de colocar a lógica acima dos impulsos para compreender que, sacrificando aquela que seria maior velocidade possível nesses pontos sensíveis, alcançará ganhos superiores naqueles que os sucedem. Perder pouco para ganhar um pouco mais…

Mas, será que entre as virtudes dos pilotos algo semelhante também acontece? Será que, em algum contexto, a abundância de alguma qualidade pode, de alguma forma, se voltar contra o desempenho de um conjunto no médio prazo, como preço a ser pago pela genialidade ao volante? A pergunta, claro, pode soar fora de propósito, mas uma situação muito atual, potencialmente decisiva para os rumos esportivos da Fórmula 1 em 2024 e no futuro próximo, parece ser resultante exatamente desse tipo de conjuntura.

Ao rastrear a origem dos atuais problemas enfrentados por Max Verstappen em seus esforços cada vez mais inglórios por extrair o máximo desempenho do RB20, o corpo de engenheiros da Red Bull seguiu puxando o fio até chegarem ao já distante GP da Espanha de 2023, quando o dominador RB19 incorporou uma evolução do assoalho que à época parecia pequena, envolvendo ajustes nos desviadores de fluxo de ar e no volume dos canais Venturi.

Ocorre que a partir desse momento específico o desempenho de Sérgio Pérez despencou, e isso nos leva a uma dessas preciosas situações de aprendizado filosófico, mesmo em meio a toda a tecnologia disponível na Fórmula 1. Tudo porque – e essa é uma compreensão que está aflorando justamente agora – Max Verstappen de alguma forma conseguiu se adaptar ao comportamento mais sensível e traiçoeiro do carro, e graças a essa sua rara capacidade de adaptação a equipe não deu maior importância ao feedback repetidamente emitido por seu segundo piloto, deixando tudo cair de barato no discurso de que Max simplesmente é melhor, Pérez e os demais pilotos disponíveis no mercado não conseguem extrair o mesmo nível de desempenho de qualquer carro, e vida que segue.

Ao optar, de maneira talvez automática, por guiar seu rumo de desenvolvimento baseada no desempenho de Verstappen, e não no retorno e nas impressões de Pérez, a Red Bull seguiu dobrando a aposta no caminho evolutivo que vinha tomando. Essas atualizações incluem o aumento no tamanho do corte inferior entre os sidepods e o assoalho, ocorrido entre os GPs do Azerbaijão e da Hungria de 2023. A ideia era aumentar o fluxo de um terceiro direcionamento de ar à traseira do carro, mas observou-se que isso não interagiu bem com a evolução do assoalho introduzida na Espanha, com novas atualizações chegando às bordas do assoalho no GP da Inglaterra – novamente vencido por Verstappen.

Em essência, essas mudanças terminaram por aumentar a sensibilidade do carro às flutuações nas alturas de condução, o que em grande parte explica a terrível corrida em Singapura – a única que a Red Bull não venceu em 2023. Diante de tal constatação a equipe levou a Marina Bay uma versão do assoalho que não foi imediatamente utilizada, mas introduzida no Japão, onde voltou à competitividade com nova vitória dominante de Verstappen.

A questão é que as modificações incorporadas ao assoalho radicalizaram o comportamento do carro, gerando sintomas que foram claramente perceptíveis através da performance de Pérez, mas mascarados pela capacidade de adaptação de Verstappen. E se a equipe seguia vencendo, mesmo que contando com apenas um dos carros, qual a razão para se preocupar?

O problema de ter ignorado os primeiros sintomas apresentados por Checo é que a equipe seguiu sensibilizando o próprio carro até o ponto em que nem mesmo todo o talento de Verstappen foi capaz de compensar o problema, numa situação análoga ao diagnóstico tardio de uma doença perigosa. Só então a questão foi efetivamente levada a sério, e de repente o time se viu confrontado com o fato de que todo seu processo de desenvolvimento ao longo dos últimos 15 meses seguiu numa direção conceitualmente equivocada, e esse atraso talvez não seja tão simples assim de ser recuperado.

Para Baku, já nesta edição de 2024, foi equipado um novo assoalho, que provavelmente será usado novamente em Singapura neste fim de semana, com um novo design já sendo preparado para o Grande Prêmio dos Estados Unidos em Austin, em outubro. O novo assoalho melhorou o carro – e não parece coincidência que isso tenha sido comprovado especialmente pelo desempenho de Pérez –, mas ainda não o suficiente para declarar firmemente que os problemas tenham sido resolvidos.

O exemplo atual da Red Bull não é o primeiro em que a capacidade de adaptação de um piloto superdotado acaba por mascarar problemas e equívocos conceituais, paradoxalmente criando dificuldades de médio prazo para a mesma equipe que, durante algum tempo, se beneficiou deste talento. Na MotoGP, por exemplo, a Ducati alinhou por muito tempo uma moto temperamental que apenas o virtuosismo de Casey Stoner era capaz de domar, até o ponto em que nem mesmo o brilhante australiano estava mais conseguindo extrair desempenho sem se expor a quedas, e aí o conceito teve de ser retrabalhado desde a base.

US GP thirty years ago, Ayrton Senna in Detroit, 1987 : r/formula1

Com Ayrton Senna vimos isso se repetir ao menos duas vezes. Primeiro na Lotus, que de modo algum era competitiva o bastante para vencer duas provas e brigar pelo título de pilotos como fez em 1987, gerando a falsa impressão de que o desenvolvimento seguia uma rota eficiente. E depois também na McLaren. Em 1991, por exemplo, ao vencer as primeiras quatro corridas do ano, Ayrton não era levado a sério nem mesmo pela própria equipe quando afirmava que o carro tinha problemas sérios, e que a competitividade do pacote deveria ser medida pelos resultados de Berger, e não pelos dele próprio.

O mesmo certamente poderia ser dito a respeito de Ronnie Peterson, que fazia qualquer carro parecer competitivo, e por fim poderíamos argumentar que a mesma capacidade de adaptação que levou Emerson Fittipaldi e Valentino Rossi a conquistarem títulos mundiais em meio a mudanças de equipe acabou por conduzir ambos a desafios que nem mesmo seus enormes talentos foram capazes de suplantar, em seus períodos de Copersucar e Ducati.

Há algo de profundamente metafórico e universal neste episódio todo envolvendo a Red Bull a nos lembrar que, a despeito de toda a sofisticação e tecnologia, a F1 ainda é uma atividade essencialmente humana. E sujeita, portanto, a personalidades, subjetivismos, aparências e mesmo a zonas de conforto e a sinais desconfortáveis, que por vezes até mesmo as mentes mais objetivas preferem ignorar enquanto podem.

Nas pistas, talvez esse exemplo sirva, por seu didatismo, para que doravante seja valorizado um pouco mais o feedback de segundos pilotos qualificados, como é o caso de Sérgio Pérez, uma vez que menores capacidades de adaptação sempre indicarão sintomas com antecedência muito maior do que talentos adaptativos, permitindo que eventuais desvios de curso possam ser corrigidos antes que o casco se rasgue ao colidir com o iceberg.

E, por se tratar de uma situação tão humana, também parece haver aí uma mensagem para todos nós. Afinal, quantas vezes na vida nos dedicamos a tentativas dolorosas, cansativas e infrutíferas de adaptação a situações incômodas, que tantas vezes só fazem crescer a despeito de nossos esforços, até o momento inevitável em que superam nossas forças e rompem o silêncio com consequências que talvez pudessem ter sido evitadas, ou ao menos atenuadas, se tudo tivesse sido encarado com a devida atenção quando dos primeiros sintomas?

Ainda estou refletindo a respeito, e não tenho pressa para chegar a qualquer conclusão. Mas, de imediato, a sensação que tenho – e nisso as pistas imitam a vida, ou vice-versa – é a de que ser capaz de se adaptar sempre será uma virtude útil em situações emergenciais, evidentemente. Mas que também pode se reverter em danos e prejuízos de médio e longo prazos a partir do momento em que desenha cenários melhores do que o real, induz outras pessoas a deixarem da fazer a parte que lhes cabe, ou se presta a mascarar sintomas e a adiar o enfrentamento de problemas que crescem quando ignorados.

No fim, não deixa de ser irônico… Quem um dia poderia imaginar que, em meio a tantos dados e tanta pompa, a competitividade no mais tecnológico dos campeonatos iria brotar justamente da negligência a algo que a sabedoria popular já cristalizou há tanto tempo?

Um ótimo fim de semana todos.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

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