Após quatro dobradinhas da Mercedes nas quatro corridas disputadas pela F1 em 2019, a atual temporada já se desenha, de forma bastante prematura, como um ano de uma só equipe. E isso, quase sempre, representa uma péssima notícia para o espetáculo, no mais esportivo e legítimo dos sentidos da palavra, ao dar poder de decisão ou influência a dirigentes dentro de um mesmo time.
Não que a vantagem da Mercedes sobre as Ferraris ou a Red Bull de Max Verstappen seja grande o suficiente para que se possa descartar qualquer esperança de equilíbrio no futuro próximo, ou ao menos que tenhamos episódicas corridas emocionantes – e Bahrein, a despeito do resultado final, foi prova disso. A questão é que, até este momento, esta pequena e decisiva vantagem tem se observado com enorme frequência, e mesmo quando foi quebrada teve o apoio da sorte, se é que tal palavra pode ser empregada. Daí, quando admitimos que o domínio prateado é maior em 2019 do que havia sido nos dois anteriores, com os resultados que conhecemos, fica difícil afastar a crença de que os troféus em jogo cedo ou tarde descansarão sob um céu de estrelas de três pontas.
Ironicamente, esta constatação talvez tivesse sido mais dolorosa em 2017 ou 2018, dado o papel de coadjuvante desempenhado – e eventualmente aceito – à época por Valteri Bottas. Sua versão 2019, no entanto, parece disposta escrever uma nova história, e a etapa do Azerbaijão foi bom exemplo disso. A vitória – e consequentemente a liderança na tabela de pontos, graças ao ponto pela melhor volta que assinalou na Austrália – foi conquistada à custa de muito arrojo, que lhe valeu uma bela pole position no sábado, e lhe guiou numa disputa de muita decisão e coragem nas primeiras curvas, quando se agarrou à liderança apesar de uma largada imperfeita. De fato, a forma como o finlandês ocupou a improvável linha de fora na longa e apertada disputa com o companheiro de equipe na volta inicial representou um ponto alto (e decisivo) para a corrida.
Dito tudo isso, no entanto, resta a impressão de que Bottas ainda precisa se esforçar ao máximo e assumir pesados riscos para bater o companheiro de equipe em condições normais, ao passo que as vitórias de Hamilton lhe parecem muito mais naturais. Se estivéssemos comentando um jogo de tênis, talvez coubesse dizer que Hamilton vem confirmando seu serviço aparentemente com maior facilidade, o que é sempre um bom indicativo para quando chegar o momento do tie break. Ou, se fosse uma maratona, poderíamos dizer que o líder tem o rosto mais contraído do que aquele que o segue de perto.
Apesar do favoritismo de Hamilton, a dinâmica interna da Mercedes apresenta alguns ingredientes típicos de receitas apimentadas. Afinal, Bottas, pela primeira vez desde que chegou a uma equipe vencedora, está sentindo o cheiro de sangue na água. Ele sabe bem que esta pode vir a ser sua melhor chance de conquistar um título mundial, e é de se esperar que lute até o limite de suas forças por cada vitória daqui até o fim do ano.
Hamilton, por sua vez, sabe que a hierarquia na Mercedes está enfraquecida, sobretudo na cabeça de seu companheiro, e isso não pode continuar a crescer, sob pena de se repetir o cenário de 2016. Deste modo, as rotas de ambos apontam na direção de uma convergência, na qual há muito em jogo e ceder, numa situação limite, pode custar caro demais. Exatamente como acontecia às vésperas do GP da Espanha de três anos atrás, quando as flechas prateadas acabaram se encontrando em meio a uma disputa mais acirrada ainda na primeira volta. Resta esperar para ver se o filme se repete.
De fato, quando se encara o cenário sob o viés da equipe, a sequência de dobradinhas passa a agregar um desconfortável (ainda que invejável) efeito colateral a partir do momento em que as vitórias estão divididas igualmente. Afinal, como aplicar ordens de equipe sob tais circunstâncias? Como impedir que ocorram excessos capazes de beneficiar a concorrência? Como canalizar a disputa para maximizar desempenhos, e não os sabotar?
De modo inconfessável, provavelmente alguns membros da Mercedes ficariam aliviados caso um de seus pilotos viesse a enfrentar problemas esporádicos que terminassem por criar uma distância entre ambos na tabela de pontos, de modo a aliviar a tensão e estabelecer um roteiro. Evitar que o outro abra distância tem de ser, portanto, a grande preocupação tanto de Hamilton quanto de Bottas neste momento.
Quase todas as análises do GP chegaram ao mesmo veredito: a Ferrari pisou na bola mais uma vez ao segurar Leclerc na pista mais tempo do que deveria, quando os pneus macios com que havia largado já não entregavam desempenho equivalente aos compostos idênticos – porém mais novos – das duas Mercedes, da Ferrari de Vettel e da Red Bull de Verstappen. Inclusive no grupo de WhatsApp do GPtotal foi esta a interpretação que prevaleceu.
Tomo, todavia, a liberdade de discordar. Em ordem invertida, tendo largado com supermacios e trocado para macios, Sebastian Vettel fez 40 voltas em bom ritmo com os pneus amarelos, ao passo que Bottas cumpriu 39 giros, Hamilton 38 e Verstappen 37. Mesmo tendo andado com o tanque mais cheio e a pista menos emborrachada, as 34 voltas que Leclerc cumpriu calçado com os pneus com os quais havia largado não representam nenhuma enormidade. Longe disso.
Talvez tenha contribuído para esta impressão a arte da transmissão televisiva que especulou o posicionamento relativo entre Leclerc e Bottas a partir de uma estimativa do quanto poderia demorar seu pit stop, indicando que, se a parada tivesse ocorrido logo após à do finlandês, o ferrarista teria chances concretas de retornar à pista ainda na ponta.
A mesma ponderação, todavia, focava apenas no posicionamento, jogando por terra o fato de que Charles teria enorme desvantagem de pneus, quer a opção fosse pelos médios ou supermacios, diante da distância que ainda precisaria ser vencida até a bandeirada. Se estivéssemos falando de Mônaco, onde ultrapassagens são eventos astronômicos, assumir tal risco faria todo sentido. Em Baku, no entanto, tanto mais em tempos de asas móveis, é preciso ter ritmo (e velocidade final) para se manter à frente. E é sobre isso, no fim das contas, que devemos falar.
Ficaria claro, ao fim da prova, que havia uma grande diferença no desempenho entregue pelos diferentes tipos de pneus, com os macios se destacando muito dos demais em stints longos. Tal diferença terminaria por passar a sensação, ainda no início da prova, de que Leclerc estaria melhor do que de fato estava, ao descontar a vantagem que o separava dos líderes, naquela altura ainda calçados com borracha supermacia.
A impressão equivocada se manteve quando as Mercedes, e também Vettel e Verstappen, fizeram suas trocas e, com borracha mais nova, começaram a se aproximar paulatinamente do piloto monegasco. Tudo, naquela altura, parecia apontar para mais um erro de estratégia.
Ocorre, no entanto, que tanto Bottas quanto Hamilton conseguiram virar na casa de 44 baixo nas voltas finais da corrida, já com muito desgaste acumulado, enquanto ainda tinham esperanças de levar para casa o ponto pela volta mais rápida. Ora, a Ferrari de Leclerc não esteve nem perto de conservar o desempenho dos compostos macios desta maneira. E, para piorar, o desempenho também não melhorou quando passou a dispor de pneus supermacios novos. Ao contrário, a distância em relação a Verstappen só fez aumentar. Cabe frisar, por fim, que não houve qualquer interferência significativa do posicionamento, no sentido de impedir que um conjunto pudesse andar no máximo de suas forças durante a maior parte do tempo.
Ora, se a Ferrari tinha informações que pudessem indicar essa situação, então postergar a troca foi, de fato, a decisão mais acertada. Assim, reafirmo meu entendimento: se alguém quiser entender por que Leclerc terminou na quinta colocação, então deve buscar tal resposta no ritmo de prova, e não na estratégia adotada.
Se em 2018 a pista do Azerbaijão foi palco para um erro bisonho de Romain Grosjean, a atual edição há de ser lembrada daqui a muitos anos pela infame batida de marcha à ré provocada por Daniel Ricciardo.
A própria tentativa de superar Kvyat já havia sido atabalhoada, para os padrões do maior especialista em ultrapassagens de todo o grid, e resultaria, de modo inevitável, numa incursão pela área de escape. Para piorar, a dinâmica do movimento impediu que o russo pudesse percorrer a curva, sob pena de ser atingido pela Renault que cruzava sua aproximação do apex.
O prejuízo imposto a Kvyat, a essa altura, já havia sido pesado o bastante. Mas então veio a cereja do bolo: ao engatar a marcha a ré, na ânsia de retornar à pista, o australiano finalmente conseguiu destruir de vez a corrida do pobre russo que, imóvel, esperava pela possibilidade de retomar sua corrida, no que já entrou para o rol dos acidentes mais bizarros em toda a história da categoria.
Talvez diga muito sobre a prova o fato de esta ter sido escolhida pela transmissão nacional como a imagem do dia…
Abraços, e uma ótima semana a todos.
3 Comments
Olá amigos do GEPETO,
vou na contra mão do Mauro e do Rubergil … estou na torcida pelo Hamilton. Ele sobra na turma e torço para ele quebrar os recordes do Alemão Dick Vigarista.
Eu me pergunto até quando a Mercedes vai permitir que o V. Bottas ande na frente do Hamilton?
Uma disputa direta na pista numa corrida … tenho duvidas que aconteça
A situação tem que ser resolvida na largada … quem faz a primeira curva em primeiro tem prioridade.
A chance do Bottas engrossar ou tentar engrossar o caldo é buscar a pole position … ao contrário vai set escudeiro …
O GP de Baku é assim … quando a gente menos espera, acabamos vendo uma bela corrida cheio de variáveis e surpresas.
Quando a gente pensa que vai ser igual ao ano passado, acabamos vendo uma corrida chata, sem graça onde a cereja do bolo foi D. Ricciardo ao engatar a marcha a ré, na ânsia de retornar à pista, destruir de vez a corrida do pobre russo. Foia pior corrida do ano com certeza até agora …
Fernando Marques
Niterói RJ
Ainda bem que sempre tem o GPTotal para nos brindar com análises primorosas. Eu acabei não assistindo o meio da corrida e fiquei sem entender como o Leclerc estava tão longe dos líderes no final da corrida (antes daquele pit-stop tipo “Mansell Jerez 86”).
Sua análise me explicou claramente: falta ritmo de corrida à Ferrari. Isso quer dizer que mesmo que o Leclerc fizesse a pole, ainda assim a vitória não era uma certeza.
E claro que eu vou torcer pelo Bottas nesta temporada. Está em ótima fase.
Abraço.
Grande Márcio!
Belíssimo texto.
Eu estou na torcida por Bottas, e acredito que a Mercedes vá deixar a briga interna correr solta, pois a Ferrari consegue sempre cometer erros, e acabar ficando mais distante de qualquer tipo de ameaças.
Nos resta torcer para que os pilotos prateados aprontem bastante dentro da pista, e que nos possam brindar com muitos duelos ferozes.
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR