O lendário Dan Gurney era um piloto de competição com altura de jogador de basquete. Ficaram famosos os Ford GT40 que ganharam calombos na parte superior da porta (que também fazia as vezes de teto) para que o americano de 1,93m coubesse no carro. O Mark IV vermelho #1 que compartilhou com o não menos lendário AJ Foyt na vitória de Le Mans em 1967 era dotado da tal Gurney Bubble.
Para os esguios monopostos, claro que as coisas ficavam ainda piores para Gurney. O simples fato de caber nos pequenos carros da Formula 1 da década de 1960, sobretudo aqueles fiapos de 1500cc até 1965, já era uma bela vitória. Mas não foram poucas as vezes em que ele ficava bem mais alto e mais exposto que todos os demais competidores do grid – invariavelmente mais baixos que ele.
Isso deixava Gurney muito mais propenso a… levar pedradas e toda sorte de outros detritos diretamente na cara.
Lembremos, era uma época de capacetes abertos e óculos (goggles) de proteção. Se você fosse um piloto de competição em meados da década de 1960, saiba que a combinação mais descolada era ter um capacete Bell 500-TX e óculos M1944, também conhecido como M44, um modelo militar de óculos de proteção tipo lente única, patenteado no fim da II Guerra Mundial. Para completar o conjunto, uma malha de aramida amarrada na cara, de modo bastante similar aos lenços de bandidos dos filmes de Velho Oeste.
O Bell 500-TX, por sua vez, era uma evolução do Bell 500 lançado em 1957, o primeiro capacete de uma empresa que nasceu como loja de autopeças da Califórnia. Representava uma enorme melhora diante das absurdas toucas de couro e arremedos de capacete feitos com cortiça (!) e outros materiais esdrúxulos que povoaram a cabeça dos pilotos da primeira década da F1.
Capacete Bell 500-TX + óculos M44: o gigante Dan Gurney mostra a combinação símbolo dos anos 60
O 500-TX foi pioneiro na tecnologia de capacetes em fibra de vidro, com aba (pala) fixada por 3 botões de pressão – que também poderiam fixar uma viseira transparente em formato bolha para dias de chuva. Por dentro, era revestido em poliestireno expandido (o famoso isopor, porém bem mais denso) e tecido almofadado interno, com cinta jugular bem reforçada envolvida em couro maleável e fivela em formato Duplo-D.
O Bell era tão elegante que foi selecionado pelo Museu de Arte Moderna de Nova York para ser exposto por seu belo design atemporal. Era certamente o que havia de mais seguro na época: foi o primeiro capacete a ganhar, em 1959, um certificado de segurança emitido pela Snell Memorial Foundation.
William “Pete” Snell era um piloto que morreu em 1956 após sofrer graves ferimentos na cabeça, resultado de um acidente em corrida de carros esporte na Califórnia. No ano seguinte, a família Snell criou uma entidade sem fins lucrativos voltada para pesquisa, educação, desenvolvimento e testes visando a segurança de capacetes – aqueles mesmos que podiam ter salvado a vida de Pete.
Muito já havia sido feito pela proteção de cabeça dos pilotos. Mas Gurney continuava a tomar pedrada na cara. Como piloto que levou o nome da Bell para a Europa (seu amigo Jim Clark passou a usar um 500-TX em 1963, ano de seu 1º título), voluntariou-se em 1966 para ajudar a empresa a desenvolver um capacete integral, o famoso full-face helmet.
Ali nascia o Bell Star, uma estrela que redefiniu o capacete de competição.
Gurney em Nürburgring 1968: viseira fixa em meio a muita chuva. Clique do genial Paul-Henri Cahier.
É legítimo perguntar se há modelo de capacete mais icônico que o Bell Star. Se o 500-TX foi um passo importantíssimo em termos de segurança, design e materiais, o Star foi a revolução que nos trouxe até aqui.
Gurney estreou seu próprio Star nas 500 Milhas de Indianápolis no fim de maio de 1968 e, meses depois, levou para a F1 o novo capacete na Inglaterra, no GP disputado em Brands Hatch. Estranhamente, várias fontes citam uma etapa posterior, o chuvoso e nebuloso GP da Alemanha em agosto, no velho Nürburgring, sempre a bordo de seu lindíssimo Eagle-Weslake… Quem me alertou para o evento correto foi o amigo Paulo Alexandre Teixeira, do Continental Circus.
A primeira versão do Star tinha uma característica… peculiar. Era, de fato, o primeiro capacete fechado, mas o aspecto “fechado” talvez tenha sido levado a sério demais. A janela de visão era uma peça fixa (!), ligada ao casco de 1/8 de polegada (pouco mais que 3mm) por uma moldura de borracha. Sim, o primeiro Star era ligeiramente sufocante, claustrofóbico e pouquíssimo amigo da transpiração.
Apenas no ano seguinte o Star se curou desse… defeito de nascimento. O modelo ganhou o primeiro sistema móvel. A viseira modelo 238 de 1,5mm de policarbonato maleável era pivotada por dois parafusos de… plástico. Ok, pensar em parafusos de plástico para um capacete de Formula 1 causa arrepios nos dias de hoje, mas era melhor que janela fixa, né? Na parte inferior da viseira, dois botões de pressão em metal travavam-na no casco. Não demorou e outra novidade foi incorporada: pinos para fixação de sobreviseiras – e você aí achando que essa tecnologia de sobreviseira era coisa dos anos 90…
Todo mundo passou a usar o Star na virada para os anos 70, Emerson Fittipaldi não foi exceção
O Star se tornou o novo padrão dos capacetes de competição. Enquanto Gurney se encaminhava para aposentadoria como piloto para cuidar da sua operação Eagle nos Estados Unidos, testemunhou todo o grid da F1 e da Indy paulatinamente adotando o capacete que ajudou a desenvolver. Já em 1969, pilotos como o campeão da temporada Jackie Stewart, o vice Jacky Ickx e o campeão do ano anterior Graham Hill não apenas usavam Star, como já tinham incorporado ao modelo suas pinturas tradicionais.
Em 1970, ano em que a certificação Snell estava em sua terceira atualização (anteriores foram em 1962 e 1968), certo brasileiro chamado Emerson Fittipaldi ascendia à Formula 1 com um Star na cabeça, em azul escuro e laranja, rumo a sua primeira vitória na etapa dos Estados Unidos. Com um Bell Magnum na cabeça (sucessor do TX), Clay Regazzoni foi o último piloto da F1 a ganhar um GP usando capacete aberto em Monza, o fatídico fim de semana de morte de Jochen Rindt – que também já havia adotado o Star, todo branco.
Pescarolo e o bizarro GPA FP1: raro concorrente do Star
A partir de então, o Bell Star ganhou o status da onipresença. Em 1971, todos os 33 pilotos que largaram nas 500 Milhas de Indianápolis o fizeram com um Star na cabeça, um feito inédito. E praticamente todos os pilotos da F1 também o adotaram o modelo, como se a Bell fosse uma fornecedora exclusiva de equipamento.
Nos primeiros anos da década de 1970, o Star simplesmente não teve concorrência. A estrela alcançava seu brilho máximo. A presença de outros capacetes era tão rara quanto um eclipse, como no caso do francês GPA FP1 usado por Henri Pescarolo durante a temporada 1972, com bizarro mecanismo de viseira (que deslizava para frente!) e um aspecto geral bastante sinistro.
Em 1973, a Bell lançou como novidade a designação XF, versão com forro em Nomex (aramida) retardante de chama. O primeiro a aparecer com a novidade, facilmente reconhecível pela cor café-com-leite do tecido, foi Jackie Stewart, justamente em seu ano de tricampeonato e aposentadoria.
Star XF 1973, primeiro com forro em tecido antichama: evento mais importante do que se supõe
Tal novidade tem uma importância muito maior do que se imagina. Esta nova opção de forro acabou por ser um marco que dividiu capacetes dedicados ao automobilismo dos capacetes dedicados ao motociclismo – divisão esta que, até então, não existia. Dali em diante, o desenvolvimento dos capacetes para cada finalidade tomaria caminhos diferentes e hoje percebemos o quanto os capacetes de F1 são completamente diferentes daqueles usados na MotoGP.
Aos poucos, porém, a década de 1970 traria novos concorrentes para o Star. Aquela estrela de forte brilho começaria a ser ofuscada por novidades ousadas e tecnológicas da concorrência, tudo com uma providencial pitada de confusão. É o que veremos na segunda parte.
Até lá! Abração!
Lucas Giavoni
P.S.: Apenas momentos depois de publicar esta coluna, nosso querido amigo Manuel Blanco me lembrou que ele já havia publicado uma coluna com este mesmíssimo nome! Claro, a temática é outra, mas é maravilhosa: a aparição do genial Gordon Murray na Formula 1.
Vale, claro, a (re)leitura!
2 Comments
Pois é! Uma sensação de dejavu no título, mas histórias diferentes e marcantes.
Muito bacana, queremos mais!
Como sempre nunca me arrependo de visitar o GP Total. No aguardo do complemento. Bom final de semana a todos os Gepetos