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Com todos esses acidentes, a FIA começou a se preocupar com a velocidade crescente e sem controle do Grupo B. Com a saída do favorito Vatanen, seu companheiro de equipe Timo Salonen ratificou o potencial da Peugeot e se sagrou campeão. No final de 1985, as montadoras começaram a investir em algo inédito nos ralis, que era a aerodinâmica, fazendo surgir grandes asas nos carros. Para 1986 a FIA proibiu os apêndices aerodinâmicos, mas havia uma certa tensão no ar. ‘A primeira vez que corri o Rally de Montecarlo, guiava um carro de 130cv. Treze anos depois, a estrada era a mesma, as valas eram as mesmas e até mesmo as pedras eram as mesmas. A diferença era que eu guiava um carro de 530cv’, falou Rohrl, então piloto da Audi, sobre a potência dos carros no começo de 1986. Essa busca incessante por potência fez crescer a popularidade do Mundial de Rally a níveis estratosféricos, fazendo com essa disciplina fosse mais popular do que a F1 em certos lugares. O que eram milhares de pessoas se transformou em milhões em certas etapas, como no Rally do RAC, na Argentina e, principalmente, em Portugal. Como o Grupo B tinha regras frouxas na parte técnica, pouco ou quase nada era falado sobre o público, que se aglomerava de forma impressionante na beira das estradas. Cenas incrivelmente perigosas se tornavam cada vez mais comuns de multidões de pessoas no meio da estrada saindo rapidamente para que os carros passassem. Em Portugal, havia uma mania entre o público de tocar os carros… em movimento! Havia relatos de que eram encontrados pedaços de dedos nos carros após as especiais em Portugal.

Na etapa portuguesa, o campeão local Joaquim Santos participaria da etapa guiando pela primeira vez um Ford RS200. O próprio Joaquim admitiu que aprenderia a guiar o novo carro durante a competição. Numa etapa em Cintra, Santos perdeu o controle do seu Ford e atingiu o público na beira da pista, matando três pessoas e ferindo mais de trinta. No final do dia, todos os pilotos de fábrica entraram em greve, não participando dos demais dias do rali, que continuou apenas com os pilotos locais.

Além da segurança do público, os pilotos tinham outras reivindicações. Com o aumento da potência e da aderência, os pilotos estavam reclamando que os carros estavam muito difíceis de pilotar, criando até mesmo a ‘síndrome do túnel’, quando a velocidade é tão alta, que os pilotos pareciam estar dentro do túnel. Os navegadores não conseguiam ‘cantar’ as notas com a velocidade necessária. Como as especiais eram longas, os pilotos saíam dos carros esgotados fisicamente, com os pilotos e navegadores tendo que passar por sessões de fisioterapia entre os estágios. Se em 1986 o uso dos spoilers era restringido, a potência dos carros crescia de forma descontrolada. Uma das lendas mais famosas do Grupo B foi um teste que a Lancia, que lançava o seu novo carro, o Delta S4, fez no circuito do Estoril. Tendo ao volante Henri Toivonen, o finlandês teria feito um tempo que o colocaria entre os dez mais rápidos do grid do Grande Prêmio de Portugal de F1.

Nunca se soube o tempo que Toivonen fez naquele dia em Portugal, mas sabe-se que a Lancia tinha feito um kit especial com mais de 800cv. Vendo o que a Lancia podia fazer, a Audi criou um carro que conseguiria atingir os 1000cv, mas devido à tragédia em Portugal, a Audi se retirou do Mundial de Rally. Após ser uma das percussoras do Grupo B, a Audi se retirava por motivos de segurança.

O novo carro da Lancia foi o auge técnico do Grupo B. Com dimensões gigantes, com um motor biturbo debitando uma potência estúpida, todos se assustaram com o que o novo carro, apelidado de ‘F1 da Montanha’, poderia fazer. Contudo, havia pressões crescentes para que houvesse um basta para essa corrida por mais potência e aderência. Quando o Grupo B foi ratificado em 1982, foi dada uma garantia para as montadoras de que a regulamentação ficaria em vigor até o final de 1987. Com a tragédia em Portugal, a pressão aumentou para que fizesse algo para frear o Grupo B.

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Balestre, ao seu estilo, disse que os carros deveriam se adaptar aos ralis, não o contrário e ainda elogiou os organizadores do Rally de Portugal, por ter continuado a etapa com os pilotos locais, quando era claro que os organizadores tinham culpa no cartório por não ter feito nada com relação ao público ao longo das etapas. Porém, a FIA já estudava um novo tipo de carro, o Grupo S, com carros mais parecidos com os de rua, mesmo que também muito preparados. O novo Lancia Delta S4 não tinha nada a ver com o carro de rua.

Dizia-se que apenas Henri Toivonen tinha condições de domar o novo carro. Piloto extremamente agressivo, Toivonen foi por muito tempo o piloto mais jovem a vencer uma etapa do Mundial de Rally. De espírito idealista e com personalidade forte, Toivonen foi um dos líderes da greve em Portugal. Quando o Mundial chegou à Córsega, uma das primeiras atitudes da Lancia foi colocar flores no local onde Bettega havia morrido um ano antes e logo depois começou a destroçar a concorrência com Toivonen. O ritmo do finlandês era de tirar o fôlego pelas estreitas estradas na França. Recordes eram quebrados por minutos! Era o auge do Grupo B, mas sua morte estava à espreita. Num lugar onde não haviam testemunhas, Toivonen perdeu o controle do seu carro, saiu da pista e saiu capotando ravina abaixo. Toivonen e o seu navegador, o americano Sergio Cresto, estavam sentados em cima dos tanques de combustível, feito de alumínio o mais leve possível, que romperam num incêndio sem controle. Sem ninguém minimamente preparado para agir no momento, Toivonen e Cresto morreram carbonizados presos ao cinto de segurança.

Com cinco mortes e dezenas de feridos em menos de um ano, Jean Marie Balestre chamou o chefe da equipe Lancia, Cesare Fiorio, e decidiu acabar com o Grupo B poucas horas após o acidente de Toivonen. O desenvolvimento dos carros ficaria congelado até o final de 1986 e para 1987, os carros do Grupo A, mais próximos dos vistos nas ruas e bem menos potentes, entrariam na pista.
O Grupo B estava morto.

Jean Todt ficou furioso por não ter sido consultado pelas medidas intempestivas de Balestre, mas como é de esperar, o então presidente da FISA fez acontecer do seu jeito. Especulou-se que o maior motivo do fim do Grupo B era que a popularidade do Mundial de Rally tinha superado a F1, que na época tinha uma maior representatividade dentro da FIA e com certeza estava incomodada com a concorrência do Grupo B.

A morte de Toivonen, um dos pilotos mais populares da época, era uma síntese dos perigos do Grupo B. Não havia uma especificação para a construção dos tanques de combustível, que explodiram sem maior cerimônia, dando nenhuma chance para Toivonen e Cresto. Naquela manhã de maio, Toivonen se queixava de dores no corpo por causa de uma gripe, o deixando debilitado para domar um carro que era extremamente difícil de guiar. Foi feito um teste mais tarde e descobriu-se que os carros estavam tão rápidos, que nenhum piloto, mesmo as superestrelas da época, eram capazes de acompanhar a velocidade impressionante dos carros. A Peugeot se mudou para o Paris-Dakar com os seus carros do Grupo B adaptados e, sem surpresas, dominou enquanto estiveram lá. Todt se consagraria como chefe de equipe na Peugeot e depois na Ferrari, chegando à presidência da FIA. Antigos carros da Audi foram utilizados na famosa Subida de Montanha em Pikes Peak. A Lancia continuou no Mundial de Rally e dominou os primeiros anos pós-Grupo B.

Mesmo cercado por tantas tragédias, as pessoas que estiveram presentes naquela época não se arrependem do que fizeram durante os anos do Grupo B. Mesmo quase morrendo e até mesmo entrado em depressão por isso, Ari Vatanen lembra do Grupo B como o melhor momento de sua carreira. O mesmo é dito por Blomqvist, Mouton e Rohrl. Por apenas quatro anos, o Mundial de Rally viveu uma era inesquecível e lembrada até hoje pelos fãs de automobilismo.

Abraços,

JC Vianna

JC Viana
JC Viana
Engenheiro Mecânico, vê corridas desde que se entende por gente. Escreve sobre F1 no tempo livre e torce pelo Ceará Sporting Club em tempo integral.

3 Comments

  1. MarcioD disse:

    JC,

    “Especulou-se que o maior motivo do fim do Grupo B era que a popularidade do Mundial de Rally tinha superado a F1” ou seja estava concorrendo com a “vitrine” da FIA e da FOM. Popularidade pode ser traduzida como $$$. Situação semelhante ocorreu com o Grupo C do Mundial de Protótipos que também começou em 82, com muitas marcas envolvidas e publico cada vez maior nos autódromos, ou seja também concorrendo com a “vitrine”.

    Em 90 a FIA interveio criando uma nova regulamentação para 91, com motores de 3,5l oriundos da F1, com o detalhe de Ecclestone ser vice presidente da FIA na época. Neste caso não houve alegações relacionadas à segurança. Contudo devido ao menor interesse das fabricantes e ao perigo de esvaziamento do grid, os “velhos” Grupo C (com handicap) correram junto com os novos carros em 91. Em 92 só correram carros sob o novo regulamento, acabando finalmente com o Grupo C.

    Márcio

  2. Fernando Marques disse:

    JC,

    parte 2 show de bola e bela historia!!!!
    Não resta duvidas que o Grupo B foi o auge do Mundial de Rally.
    Os carros eram puro sangue de verdade.
    E tão interessante eram a empolgação dos portugueses nas provas … na época, me lembro, as loucuras de nossos lusos-irmãos faziam para assistir as provas eram tão noticiadas quanto a prova em si … eram os mais fanáticos com toda certeza …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  3. Mauro Santana disse:

    Que texto maravilhoso JC, daqueles que agente vai lendo, e não quer que acabe.

    Parabéns Amigo!

    Foi uma época única, e inesquecível, Bestas Feras, ou melhor, F1 de Montanhas.

    Abaixo posto dois vídeos do acidente de Toivonen e Cresto, e também do memorial construído em homenagem a eles.

    https://www.youtube.com/watch?v=8cdbq8sKNSA

    https://www.youtube.com/watch?v=7RUdr-ZVEOE

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

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