Nostalgia da letra “B”

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Nessa onda nostálgica que existe em todos nós nas Redes Sociais (Raiz x Nutella), feliz foram os que acompanharam o Esporte a Motor nos 1980. As principais categorias do mundo viviam momentos excepcionais que até hoje, passados trinta anos, ainda deixam saudades. A F1 tinha seus carros cada vez mais potentes por causa da “Era Turbo” e seus pilotos com personalidades distintas e fortes, criando rivalidades que transcenderam a categoria. O Mundial de Motovelocidade foi invadido pelos pilotos americanos, que foram criados nos Dirt-Tracks, trazendo às pistas de asfalto da Europa uma pilotagem nova com Kenny Roberts, onde derrapar nas curvas fazia parte de ser ainda mais rápido. Roberts fez com que às montadoras japonesas olhassem de forma especial para o Campeonato Americano de Superbike e o resto é história, surgindo Spencer, Mamola, Rainey, Schwantz. A Indy crescia com uma interessante mescla de pilotos veteranos (A.J. Foyt, Al Unser, Johnny Rutherford e Mario Andretti), estrelas em ascensão (Rick Mears, Bobby Rahal, Danny Sullivan), estrangeiros tentando reconstruir a carreira (Emerson Fittipaldi, Roberto Guerrero) e jovens revelações (Al Unser Jr e Michael Andretti).

O Mundial de Rally também viveu um momento bastante especial e inspirador, mesmo que por pouco tempo. O nome dessa época inesquecível pelos bons e maus momentos é representado por uma única letra do alfabeto: Grupo B. Além dos pilotos e dirigentes lendários, a maior estrela dessa época de ouro eram os carros. Com uma potência absurda, Audi, Lancia e Peugeot nos trouxeram à baila carros inesquecíveis, fazendo com que o Mundial Rally ganhasse uma popularidade que talvez nunca experimentasse em sua história. E tudo começou com um personagem muito conhecido pelos brasileiros.

Até a década de 1960, os ralis eram corridas amadoras, com carros praticamente sem nenhuma preparação e onde as corridas respeitavam as leis de trânsito, afinal, as provas eram realizadas em meio a estradas públicas. O evento mais conhecido era o Rally de Monte Carlo e o carro típico dessa época era o Mini Cooper. Porém, os pilotos viam que precisavam de mais velocidade e por isso foram criadas as Etapas Especiais (Special Stages), onde estradas eram fechadas e não haveria limite de velocidade, fazendo com que os ralis ganhassem em popularidade e fazendo com que montadoras vissem o rali como uma boa oportunidade de laboratório dos seus carros e, principalmente, uma boa plataforma de marketing. Essa popularidade fez a FIA criar o Campeonato Mundial de Rally em 1973, com regras bem específicas para os carros, para que o rali permanecesse com o mesmo espírito de antes, ou seja, os carros receberiam uma preparação especial, mas eram bastante parecidos com os carros que um europeu médio poderia comprar numa concessionária.

Procurando promoção para os seus carros, a Lancia foi a primeira a construir um carro especificamente para os ralis, o Stratos HF. O carro italiano foi o primeiro dominador do Mundial de Rally, conquistando o primeiro campeonato de pilotos em 1977, com Sandro Munari. Outras montadoras como a Renault e a Ford passaram a investir em carros mais preparados para o rali. No final da década de 1970, com o automobilismo cada vez mais popular e lucrativo, pensou-se numa forma de maximizar essa fórmula no Mundial de Rally. E o mentor disso foi o recém-empossado presidente da CSI, que logo mudaria de nome para FISA, Jean Marie Balestre. O francês queria trazer as montadoras para dentro do Mundial de Rally e em 1979 criou o ‘Apêndice J’, onde as regras para a construção dos carros de rali seria criada. Na verdade, decidiu-se que haveria uma liberdade inédita para se construir os novos carros do Mundial de Rally, onde os protótipos poderiam nascer de um papel em branco, não tendo que se inspirar no portfólio das montadoras. A intenção era atrair mais montadoras, prometendo um desenvolvimento mais rápido do carro, oportunidades de publicidade subsequentes, tudo sem a necessidade de um modelo de produção existente. O novo carro não tinha quaisquer restrições quanto ao dimensionamento do veículo, às dimensões exteriores ou interiores, à composição do material do chassi ou carroceria, tipo de tração, tipo ou tamanho do motor ou a sua potência. Estava criado o chamado Grupo B.

Uma das primeiras montadoras a se interessarem para a nova categoria foi a Audi. Fora do automobilismo desde que a sua genitora, a Auto Union, saiu das pistas nos anos 1930, a Audi queria tornar sua marca mais famosa no mundo, saindo da sombra de Mercedes, BMW e Porsche. A empresa viu no Mundial de Rally uma ótima plataforma de marketing e a Audi não mediu esforços para conseguir sucesso, mesmo que começando pela forma mais difícil. Até então, os carros do Mundial de Rally tinham tração nas duas rodas, mas Jörg Bensinger decidiu construir um carro com tração nas quatro rodas, fazendo nascer uma lenda do esporte a motor: o Audi Quattro. O carro surgiu ainda antes da introdução do Grupo B, em 1982, ganhando a fama de ser um carro muito pesado e complexo. Quando surgiu a oportunidade provinda do Grupo B, a Audi construiu um carro inteiramente novo e distinto dos demais. ‘Na primeira vez que guiei o novo Audi Quattro A1 (com as regras do Grupo B), a diferença era como se fosse o dia e a noite’, falou o sueco Stig Blomqvist, um dos pilotos da Audi. O novo carro surgiu em meados de 1982, imediatamente dominando o campeonato, mas não conseguindo tirar o título da lenda alemã Walter Röhrl, da Opel. A vice campeã foi a francesa Michele Mouton, que ao contrário de muitas garotas atualmente, conseguiu seu lugar numa equipe de ponta de uma categoria top do automobilismo por causa de seu talento. Mouton é até hoje a melhor pilota da história do esporte a motor.

Com a introdução do modelo Audi Quattro A1, imediatamente os demais carros de do Mundial tinham se tornados obsoletos. Para tentar deter o domínio da Audi, a Lancia lançou em toque de caixa o novo modelo 037 Rally, com as regras do Grupo B. Teimosamente os italianos construíram um carro com tração traseira, mas contanto com Röhrl, a Lancia quase tirou o título da Audi em 1983, que conquistou o seu primeiro títulos em quase 50 anos com o finlandês Hannu Mikkola. O sucesso da Audi fez com que a marca se tornasse bastante popular. ‘Fizeram uma pesquisa na França sobre a marca Audi e 7% dos franceses achavam que era uma máquina de lavar’, falou Mouton. Com o seu carro dominando o Mundial de Rally, todos sabiam o que a Audi fazia. E bem!

Se inspirando no ganho de popularidade da Audi, a Peugeot, que vivia uma séria crise financeira, resolveu entrar de cabeça no Mundial de Rally nas novas regras do Grupo B, produzindo um carro inteiramente novo. Para liderar o novo projeto era preciso alguém com conhecimento das entranhas do rali e a Peugeot recrutou o seu antigo navegador, Jean Todt. O francês trouxe as pessoas certas para construir o carro em tempo recorde, incluindo o antigo campeão mundial, Ari Vatanen, para liderar os testes, que foram feitos de forma intensa em 1984, para que o carro estivesse pronto ainda naquele ano. Quando Vatanen estreou o novo carro, imediatamente a Peugeot se tornou a sensação do Mundial de Rally, com Vatanen conquistando várias vitórias de forma fácil. A Audi ainda foi campeã, mas sabia que havia surgido um novo carro ainda mais forte do que o seu e por isso, introduziu uma nova evolução, o Audi Quattro E2, com mais de 450cv. A Peugeot tinha um motor de 350cv, mas com uma carroceria mais leve e maneável. O desenvolvimento dos carros parecia não ter fim, fazendo com a potência e a aderência dos carros crescesse com uma velocidade alarmante.

Até 1985 o Grupo B tinha um nível de segurança aceitável. Os acidentes que haviam ocorrido eram compatíveis com a geração anterior dos carros, mas o incremento de potência nos carros era um claro sinal de algo de ruim poderia acontecer a qualquer momento. A Lancia estava claramente atrás de Audi e Peugeot com o seu modelo 037, mesmo com os vários desenvolvimentos colocados no carro. O fato de ainda ter tração nas duas rodas atrapalhava bastante a competição com os 4×4 de Audi e Peugeot. Porém, no famoso Rally da Córsega, a Lancia tinha uma boa chance. Era uma etapa no asfalto e a Lancia contava com o italiano Attilio Bettega, um especialista nesse piso. Bettega vinha em segundo lugar quando ele derrapou para da fora da estrada, caiu numa vala e se espatifou numa árvore. O navegador Maurizio Perissinot saiu ileso do acidente e sinalizou para que os demais carros parassem, mas Bettega havia morrido na hora. Por incrível que pareça, o rali continuou e Vatanen liderava até sofrer uma impressionante capotagem, mas o finlandês saiu ileso do seu carro. Contudo, Vatanen não teria sorte na Argentina. O finlandês vinha numa reta quando perdeu o controle do seu carro e saiu capotando. O seu banco quebrou e Vatanen sofreu várias fraturas por todo o corpo. Por sorte, um helicóptero da própria Peugeot estava filmando Vatanen e aterrissou, levando o finlandês para um hospital mais próximo e salvando a vida de Ari Vatanen, que depois desse acidente, nunca mais participaria de uma etapa do Mundial de Rally.

Ironicamente, Jean Todt e Ari Vatanen, que fazia uma dupla quase perfeita de chefe de equipe/piloto disputariam anos mais tarde a presidência da FIA.

 

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Com todos esses acidentes, a FIA começou a se preocupar com a velocidade crescente e sem controle do Grupo B. Com a saída do favorito Vatanen, seu companheiro de equipe Timo Salonen ratificou o potencial da Peugeot e se sagrou campeão. No final de 1985, as montadoras começaram a investir em algo inédito nos ralis, que era a aerodinâmica, fazendo surgir grandes asas nos carros. Para 1986 a FIA proibiu os apêndices aerodinâmicos, mas havia uma certa tensão no ar. ‘A primeira vez que corri o Rally de Montecarlo, guiava um carro de 130cv. Treze anos depois, a estrada era a mesma, as valas eram as mesmas e até mesmo as pedras eram as mesmas. A diferença era que eu guiava um carro de 530cv’, falou Rohrl, então piloto da Audi, sobre a potência dos carros no começo de 1986. Essa busca incessante por potência fez crescer a popularidade do Mundial de Rally a níveis estratosféricos, fazendo com essa disciplina fosse mais popular do que a F1 em certos lugares. O que eram milhares de pessoas se transformou em milhões em certas etapas, como no Rally do RAC, na Argentina e, principalmente, em Portugal. Como o Grupo B tinha regras frouxas na parte técnica, pouco ou quase nada era falado sobre o público, que se aglomerava de forma impressionante na beira das estradas. Cenas incrivelmente perigosas se tornavam cada vez mais comuns de multidões de pessoas no meio da estrada saindo rapidamente para que os carros passassem. Em Portugal, havia uma mania entre o público de tocar os carros… em movimento! Havia relatos de que eram encontrados pedaços de dedos nos carros após as especiais em Portugal.

Na etapa portuguesa, o campeão local Joaquim Santos participaria da etapa guiando pela primeira vez um Ford RS200. O próprio Joaquim admitiu que aprenderia a guiar o novo carro durante a competição. Numa etapa em Cintra, Santos perdeu o controle do seu Ford e atingiu o público na beira da pista, matando três pessoas e ferindo mais de trinta. No final do dia, todos os pilotos de fábrica entraram em greve, não participando dos demais dias do rali, que continuou apenas com os pilotos locais.

Além da segurança do público, os pilotos tinham outras reivindicações. Com o aumento da potência e da aderência, os pilotos estavam reclamando que os carros estavam muito difíceis de pilotar, criando até mesmo a ‘síndrome do túnel’, quando a velocidade é tão alta, que os pilotos pareciam estar dentro do túnel. Os navegadores não conseguiam ‘cantar’ as notas com a velocidade necessária. Como as especiais eram longas, os pilotos saíam dos carros esgotados fisicamente, com os pilotos e navegadores tendo que passar por sessões de fisioterapia entre os estágios. Se em 1986 o uso dos spoilers era restringido, a potência dos carros crescia de forma descontrolada. Uma das lendas mais famosas do Grupo B foi um teste que a Lancia, que lançava o seu novo carro, o Delta S4, fez no circuito do Estoril. Tendo ao volante Henri Toivonen, o finlandês teria feito um tempo que o colocaria entre os dez mais rápidos do grid do Grande Prêmio de Portugal de F1.

Nunca se soube o tempo que Toivonen fez naquele dia em Portugal, mas sabe-se que a Lancia tinha feito um kit especial com mais de 800cv. Vendo o que a Lancia podia fazer, a Audi criou um carro que conseguiria atingir os 1000cv, mas devido à tragédia em Portugal, a Audi se retirou do Mundial de Rally. Após ser uma das percussoras do Grupo B, a Audi se retirava por motivos de segurança.

O novo carro da Lancia foi o auge técnico do Grupo B. Com dimensões gigantes, com um motor biturbo debitando uma potência estúpida, todos se assustaram com o que o novo carro, apelidado de ‘F1 da Montanha’, poderia fazer. Contudo, havia pressões crescentes para que houvesse um basta para essa corrida por mais potência e aderência. Quando o Grupo B foi ratificado em 1982, foi dada uma garantia para as montadoras de que a regulamentação ficaria em vigor até o final de 1987. Com a tragédia em Portugal, a pressão aumentou para que fizesse algo para frear o Grupo B.

Balestre, ao seu estilo, disse que os carros deveriam se adaptar aos ralis, não o contrário e ainda elogiou os organizadores do Rally de Portugal, por ter continuado a etapa com os pilotos locais, quando era claro que os organizadores tinham culpa no cartório por não ter feito nada com relação ao público ao longo das etapas. Porém, a FIA já estudava um novo tipo de carro, o Grupo S, com carros mais parecidos com os de rua, mesmo que também muito preparados. O novo Lancia Delta S4 não tinha nada a ver com o carro de rua.

Dizia-se que apenas Henri Toivonen tinha condições de domar o novo carro. Piloto extremamente agressivo, Toivonen foi por muito tempo o piloto mais jovem a vencer uma etapa do Mundial de Rally. De espírito idealista e com personalidade forte, Toivonen foi um dos líderes da greve em Portugal. Quando o Mundial chegou à Córsega, uma das primeiras atitudes da Lancia foi colocar flores no local onde Bettega havia morrido um ano antes e logo depois começou a destroçar a concorrência com Toivonen. O ritmo do finlandês era de tirar o fôlego pelas estreitas estradas na França. Recordes eram quebrados por minutos! Era o auge do Grupo B, mas sua morte estava à espreita. Num lugar onde não haviam testemunhas, Toivonen perdeu o controle do seu carro, saiu da pista e saiu capotando ravina abaixo. Toivonen e o seu navegador, o americano Sergio Cresto, estavam sentados em cima dos tanques de combustível, feito de alumínio o mais leve possível, que romperam num incêndio sem controle. Sem ninguém minimamente preparado para agir no momento, Toivonen e Cresto morreram carbonizados presos ao cinto de segurança.

Com cinco mortes e dezenas de feridos em menos de um ano, Jean Marie Balestre chamou o chefe da equipe Lancia, Cesare Fiorio, e decidiu acabar com o Grupo B poucas horas após o acidente de Toivonen. O desenvolvimento dos carros ficaria congelado até o final de 1986 e para 1987, os carros do Grupo A, mais próximos dos vistos nas ruas e bem menos potentes, entrariam na pista.

O Grupo B estava morto.

Jean Todt ficou furioso por não ter sido consultado pelas medidas intempestivas de Balestre, mas como é de esperar, o então presidente da FISA fez acontecer do seu jeito. Especulou-se que o maior motivo do fim do Grupo B era que a popularidade do Mundial de Rally tinha superado a F1, que na época tinha uma maior representatividade dentro da FIA e com certeza estava incomodada com a concorrência do Grupo B.

A morte de Toivonen, um dos pilotos mais populares da época, era uma síntese dos perigos do Grupo B. Não havia uma especificação para a construção dos tanques de combustível, que explodiram sem maior cerimônia, dando nenhuma chance para Toivonen e Cresto. Naquela manhã de maio, Toivonen se queixava de dores no corpo por causa de uma gripe, o deixando debilitado para domar um carro que era extremamente difícil de guiar. Foi feito um teste mais tarde e descobriu-se que os carros estavam tão rápidos, que nenhum piloto, mesmo as superestrelas da época, eram capazes de acompanhar a velocidade impressionante dos carros. A Peugeot se mudou para o Paris-Dakar com os seus carros do Grupo B adaptados e, sem surpresas, dominou enquanto estiveram lá. Todt se consagraria como chefe de equipe na Peugeot e depois na Ferrari, chegando à presidência da FIA. Antigos carros da Audi foram utilizados na famosa Subida de Montanha em Pikes Peak. A Lancia continuou no Mundial de Rally e dominou os primeiros anos pós-Grupo B.

Mesmo cercado por tantas tragédias, as pessoas que estiveram presentes naquela época não se arrependem do que fizeram durante os anos do Grupo B. Mesmo quase morrendo e até mesmo entrado em depressão por isso, Ari Vatanen lembra do Grupo B como o melhor momento de sua carreira. O mesmo é dito por Blomqvist, Mouton e Rohrl. Por apenas quatro anos, o Mundial de Rally viveu uma era inesquecível e lembrada até hoje pelos fãs de automobilismo.

 

Abraços,

 

JC Vianna

 

Esta coluna foi publicada originalmente em duas partes, no final de maio de 2017

JC Viana
JC Viana
Engenheiro Mecânico, vê corridas desde que se entende por gente. Escreve sobre F1 no tempo livre e torce pelo Ceará Sporting Club em tempo integral.

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