Toda geração, em qualquer modalidade esportiva, sempre revela grandes talentos, campeões dignos do título, atletas excepcionais. Evidente, nunca será fácil se tornar o melhor do mundo no que quer que seja, e mesmo quando ponderamos o tanto de potencial tristemente desperdiçado em consequência de tantas e tão profundas desigualdades sociais, a renovação e a manutenção de atuações de excelência no pináculo do esporte pode ser encarada como uma certeza matemática, dado o número de peneiras até o topo. Acredite, neste exato momento, campeões que conheceremos daqui a 10 ou 15 anos já estão treinando duro, abrindo mão de grande parte de suas infâncias em suas escaladas rumo ao sucesso. E o mesmo poderia ser dito a respeito das artes e de qualquer outra atividade que saiba premiar a excelência.
De tempos em tempos, contudo, surgem indivíduos diferentes dos demais. Gênios naturais que parecem ter nascido para desempenhar determinadas atividades, quase como se tivessem sido pré-programados para elas. Pessoas que transcendem, que vão além dos resultados e parecem capazes de tangenciar a perfeição. Admirá-las em ação pode ser considerado um privilégio, geralmente proporcional à nossa própria capacidade de perceber o quão difícil e especial é aquilo que está sendo realizado.
Para apreciar e dar o devido valor a tais pessoas, portanto, estatísticas nunca serão suficientes. Alguém até poderia tentar descrever em bases científicas a perfeição com que Jascha Heifetz se integrava ao violino, ou por que Vladimir Horowitz era tão especial quando sentado à frente de um piano, ou ainda o que tornava tão mágicas as interpretações de Altamiro Carrilho e sua flauta, ou por que Charlie Chaplin era capaz de manipular nossas emoções com tamanha maestria. Possivelmente estudos nessa linha terminariam por revelar conclusões concretas, da mesma forma como análises são capazes de indicar os motivos pelos quais um piloto é mais rápido que outro sob circunstâncias específicas, mas nem por isso o brilhantismo consegue ser replicado à perfeição por quem não o traz desde a concepção. Ou lhe é dado por Deus, ou não o encontrará de outra forma.
Quem acompanhou o esporte com atenção ao longo das duas primeiras décadas deste milênio teve oportunidade de ver alguns desses seres humanos especiais em ação. De imediato, poderíamos citar os exemplos de Tiger Woods, no golfe; Michael Phelps, na natação; Ulsain Bolt, no atletismo; Magnus Carlsen no xadrez; e possivelmente Messi e Cristiano Ronaldo no futebol, ou LeBron James e Kobe Bryant no basquete. Lance Armstrong certamente estaria nessa lista não fosse pelo uso de dopping, e no automobilismo, claro, tivemos Tom Kristensen e Sébastien Loeb, e muitos certamente se sentiriam tentados a pinçar também um ou outro nome na lista composta por Schumacher, Hamilton, Alonso, Vettel e Verstappen.
Nenhum outro esporte, contudo, foi tão abençoado com atletas de exceção nos últimos tempos quanto o tênis. Ao longo das últimas décadas nos habituamos a ver partidas épicas protagonizadas pelos gênios de Serena Williams, Roger Federer, Rafael Nadal e Novak Djokovic, todos eles, certamente, com lugar assegurado na lista dos cinco melhores tenistas em todos os tempos, em seus respectivos gêneros. E eis que em intervalo inferior a trinta dias tivemos de assimilar o impacto da aposentadoria tanto de Serena, no mais recente US Open, quanto de Roger, a se concretizar nesta semana, ao término da imperdível edição da Laver Cup. Combinadas, tais ondas de choque se tornam fortes demais para que possam ser ignoradas, mesmo aqui, numa página dedicada essencialmente ao esporte a motor.
Falando especificamente sobre Federer, raras vezes um ser humano terá se aproximado tanto da perfeição ao se dedicar a alguma tarefa. Sua elegância dentro e fora das quadras, a harmonia e a graça de seus movimentos, e a enormidade de vezes em que improvisou golpes vencedores que jamais poderiam ter sido previstos em treinamentos, são predicados que escapam a estatísticas e só podem ser dimensionados pela sensibilidade de quem é capaz de reconhecer um iluminado quando o enxerga.
Nos números, Federer – que a seu tempo havia elevado o tênis a um novo patamar, quebrando todos os principais recordes absolutos no processo – já foi superado por Djokovic e Nadal, mas tais medições, como já dissemos anteriormente, não bastam para definir hierarquias aqui. Ademais, é justo lembrar que Federer teve o próprio ápice encurtado pela mononucleose, e além disso sustentou sempre um importante déficit de idade em relação a seus principais adversários.
E, no fim, é justamente sobre esta batalha universal (e inglória) contra o passar dos anos que trata esta coluna.
Importa observar, por exemplo, que o tenista suíço anunciou sua aposentadoria após constatar que o joelho acumulou desgastes demais ao longo das mais de 1500 partidas disputadas, e finalmente aceitar que o corpo simplesmente está dizendo que já chega. Nadal tem passado por situação semelhante a olhos vistos, e aparenta estar adiando a própria aposentadoria unicamente porque, de alguma forma, tem conseguido se manter competitivo apesar das duríssimas batalhas que tem travado contra o próprio corpo. Sua conquista no Australian Open deste ano terá de ser lembrada para sempre como um dos desempenhos mais heroicos de um atleta em qualquer modalidade a qualquer tempo, e depois dela ainda o vimos conquistar Roland Garros pela 14ª vez(!), jogando o torneio inteiro com um dos pés anestesiado, além de abandonar Wimbledon nas semifinais após vencer cinco partidas nas quais lutou com uma ruptura de 7 milímetros no músculo abdominal.
Como se vê, nem mesmo os deuses do esporte conseguem impedir o pôr do sol.
Voltando agora à nossa área de interesse, a MotoGP vive, já faz algum tempo, situação análoga ao tênis. Ao longo das últimas temporadas vimos o gigantesco Valentino Rossi paulatinamente perder desempenho, em meio ao seu próprio envelhecimento, a mudanças técnicas que lhe foram desfavoráveis, e ao surgimento e amadurecimento de gerações posteriores, que incluíram a chegada de um piloto que, assim como ele próprio, iria merecer um lugar entre os cinco maiores nomes da motovelocidade em todos os tempos. Estamos falando, é claro, de Marc Márquez.
Dono de um estilo que se equilibra entre o exuberante e o temerário, Márquez acumulou tombos, salvadas milagrosas e vitórias com igual frequência ao longo de suas sete primeiras temporadas – em seis das quais sagrou-se campeão – a ponto de, talvez, perder um pouco do respeito que se deve ao perigo inerente à velocidade sobre duas rodas.
Até que deu-se o inevitável. Acostumado apenas a vencer, ele se atrasou na etapa inaugural da MotoGP em 2020 e naturalmente deu início a uma vigorosa prova de recuperação, ao guidão de uma moto cujas reações ainda não conhecia profundamente. O tombo veio, e dessa vez teve consequências mais sérias. Desde então o prodígio que estava cabeça e ombros acima de todos os demais passou a alternar longos períodos de afastamento e a ter de superar não apenas a concorrência, mas as próprias limitações físicas, na busca por novas vitórias.
O brilhantismo continua lá, e com frequência ele foi o melhor piloto da Honda nas esporádicas vezes em que competiu desde então. Mas, tal qual Nadal nos últimos anos, é possível notar que o fardo vem se tornando cada dia mais pesado.
Para quem viu esses iluminados em seus respectivos auges, e compreende os esforços que vêm fazendo na busca por retornarem ao topo – não mais por dinheiro, mas porque não podem fugir às suas próprias naturezas – essa fase derradeira, o crepúsculo dos deuses, não deixa de reservar um misto um tanto doloroso de emoções, ainda que, eventualmente, sirva também de contexto para alguns dos maiores feitos esportivos já registrados.
E essa, vale destacar, pode ser também uma fase perigosa. Afinal, quem se acostumou a grandes feitos, quem tem a autoconfiança nas alturas, quem se sente atraído por desafios monumentais e se habituou à dor, ao sofrimento – e mais: sabe que tem pouco tempo competitivo pela frente – pode entrar em negação e se colocar em posição de perseguir a própria autodestruição, caso seja incapaz de – assim como Federer acaba de fazer – admitir que não dá mais para continuar, quando tal constatação se apresenta.
Já havia escolhido o tema da coluna e escrito alguns parágrafos antes mesmo da largada do GP em Aragão, disputado nesse fim de semana. E a prova acabou por confirmar tudo que já era possível sentir.
Após longo período de afastamento, e animado com a evolução física obtida após a mais recente cirurgia, Marc Márquez estaria de volta ao grid, e seria insensato imaginar que não daria tudo de si desde o início. Ocorre, no entanto, que temos um campeonato espetacular em curso, no qual um piloto excepcional – Fabio Quartararo – vem sustentando a liderança na tabela de pontos a despeito de disputar com ao menos 12 motos mais competitivas do que sua Yamaha. E não seria razoável colocar em risco o desenvolvimento natural dessa história.
Para se colocar em tal posição, Quartararo conseguiu equilibrar, como nenhum outro piloto na atual temporada, a habilidade para extrair o máximo desempenho de sua máquina sem, contudo, ultrapassar os limites e ir ao chão. Estava claro desde o início do ano que os conjuntos de maior potencial seriam formados por Pecco Bagnaia e Enea Bastianini e suas Desmosedicis, mas isso não se refletiu na pontuação justamente porque ambos trataram de alternar vitórias com tombos na fase inicial da temporada. Um cenário que se alterou de forma decisiva nos últimos meses, a ponto de Bagnaia ter enfileirado quatro triunfos consecutivos, que poderiam ter sido cinco se Bastianini não tivesse tido a coragem de desagradar a equipe oficial da Ducati – a qual irá defender no ano que vem – com a manobra que, na última volta, lhe valeu a vitória em Aragão.
Assim, a dinâmica do campeonato havia se convertido basicamente na luta de Quartararo por somar o máximo de pontos possível, numa tentativa desesperada de se manter até o fim do ano à frente de um conjunto que se tornou praticamente imbatível. Um cenário bom demais para os fãs do esporte, e que parecia pronto a premiar uma campanha heróica de um piloto que vem carregando o equipamento nas costas.
Mas, havia um Marc Márquez no meio do caminho…
Partindo da 13ª posição, o octacampeão mundial adotou uma linha agressiva e em poucos metros já aparecia em sexto, justamente à frente de Quartararo. Guiando no fio da navalha e com os pneus ainda frios, no entanto, Márquez precisou aliviar o acelerador num ponto não usual, e como resultado foi abalroado violentamente pelo líder do mundial, que foi ao chão à frente de boa parte do grid, em múltiplas disputas por posição.
No que diz respeito às pretensões de bicampeonato de Quartararo, a ocorrência foi simplesmente catastrófica. Contudo, quando se leva em conta o risco a que o piloto foi exposto, o fato de estar simplesmente vivo e saudável já representa um lucro gigantesco.
Para Márquez, contudo, o dia ainda não havia terminado. Após ter sido atingido pela moto de Quartararo, seu sistema de largada foi acionado de forma inesperada, e o problema só foi percebido mais à frente, na hora de curvar. Em consequência, o octacampeão seria pivô de nova colisão, desta vez com Nakagami, que também foi ao chão à frente de competidores em plena aceleração.
De repente, a programação mental de Marc Márquez começou a parecer perigosa demais não apenas para ele mesmo, mas também para seus pares, além de ter interferido de maneira possivelmente decisiva sobre desenrolar de uma temporada que vinha sendo boa demais até então.
A nós, resta acompanhar com atenção esse período especial em que tantos atletas excepcionais têm sido levados ao limite na eterna luta contra os efeitos do tempo – não custa lembrar, por exemplo, que tanto Messi quanto Cristiano Ronaldo devem disputar suas últimas copas dentro de alguns meses –, bem como torcer para que ninguém termine por esticar demais a corda, sobretudo numa arena tão inclemente quanto a da MotoGP.
Uma ótima semana a todos.
3 Comments
Fernando e Márcio, agradeço a ambos pela atenção e pelo retorno qualificado de sempre.
Forte abraço aos dois.
Marcio,
” O Crepusculo dos Deuses” é bem reflexiva e concordo em tudo com que está escrito.
O esporte tem esse poder de criar e estar sempre recriando ídolos e ícones.
A unica crítica que faço ao esporte em si, não a sua coluna, é que a evolução dele nestas ultimas duas ou tres décadas nos remetem
a esportistas de alto rendimento fisico ( o que em muitos casos levam a doping). Nenhum esportista atualmente falando, consegue o ápice se não for um atleta de alto rendimento. E neste caso em muitas vezes a força supera o talento.
Como saudosista prefiro reverenciar aqueles esportistas onde o talento sempre falava mais alto.
mas não tem como não reverenciar todos aqueles citados por voce na coluna. Os resultados alcançadostambém precisam ser reverenciados.
No caaso da Moto GP, com todo respeito e admiração que Quartararo merece , muito até pelo que ele vem fazendo nas pistas, hoje considero o Bagnaia como o grande nome da Moto GP. E creio que ele ainda pode virar o jogo este ano.
Fernando Marques
Niterói RJ
No futebol o maior que vi foi Pelé, o qual tive o prazer de ver jogar no terço final de sua carreira. Além das jogadas geniais, muitos resultados como gols, vitórias e títulos, muitos títulos. Um cara que conseguiu parar um conflito entre africanos para vê-lo jogar e não á toa foi eleito o maior atleta do século vinte. Conhecido em todo mundo quando não havia internet e as transmissões de TV ainda estavam deslanchando.
Phelps é um ponto totalmente fora da curva, muito ajudado pelo seu biotipo, acho que tão cedo não vai aparecer alguém para quebrar o seu recorde de medalhas em olimpíadas. Só que ninguém achava que alguém bateria os recordes de Mark Spitz e eis que aparece o Phelps……
No atletismo nunca vi um cara fora de série como Bolt e vai demorar muito tempo para que esse seu recorde nos 100 m rasos sejam superados. E a maneira que ele foi estabelecendo esse recorde, começando da primeira vez em uma olimpíada, em que ele fez isso batendo no peito e olhando apara trás.
No tênis vejo um equilíbrio relativo entre Federer, Nadal e Djoko. Acho que Djoko pela idade, que é a mesma de Nadal, ser menos afetado por lesões e por levar vantagem no confronto direto com os outros 2 já estaria á frente se não fosse o seu posicionamento anti-vacina. Acredito que indubitavelmente os 3 são os maiores da historia.
Isso colocado, nos 50 anos que acompanho esporte a motor eu jamais vi alguém que combinasse técnica, arrojo, velocidade e agressividade como Marquez. No que eu chamo de pilotagem pura, sem preocupações com consumo, desgaste de equipamento e pneus, pontos para ser regular e etc. etc…… E o cara faz manobras espetaculares incluindo salvadas, inclina a moto de uma maneira como nunca se viu, coloca a moto onde não se imagina que coubesse. O cara é de outro planeta, está acima de todos da sua categoria. Está no patamar de Pelé, Phelps e Bolt. Isso até 2020.
Só que “Motorsport is Dangerous” e Marquez que já era um cara perigoso na pista para seus pares, se tornou perigosíssimo.
Assisti o GP de Aragão e vi a largada espetacular de Marquez que retornava ás pistas e por pouco, muito pouco não vimos o atropelamento de Quartararo e Nakagami.
Acho que por bom senso, para preservação da sua vida e da dos outros pilotos, ele deveria parar de pilotar antes que ocorra uma tragédia.