Na ficção científica, universos paralelos são considerados como realidades alternativas que coexistem com a nossa própria realidade. Em alguns modelos, elas são criadas em momentos de encruzilhada, onde é necessário tomar uma decisão. Uma vez escolhido um caminho, uma cadeia de eventos se desenrola como consequência, dando continuidade ao universo em que estamos. O caminho que foi deixado de lado dá origem a um universo paralelo, em que a cadeia de eventos diferente é gerada a partir da escolha preterida.
Ao longo das seis décadas de existência da F1, diversas mudanças de regulamento permitiram e proibiram tecnologias novas ou já existentes, na maioria das vezes com o pretexto de trazer maior competitividade à categoria.
Muitas vezes, os avanços tecnológicos banidos foram aqueles baseados em interpretações do regulamento técnico da categoria – as famosas brechas. Alguns, inclusive, sequer puderam ver a luz do dia, sendo proibidos antes mesmo que as equipes pudessem aplicá-los. Este é o caso do câmbio CVT (Continuously Variable Transmission ou Transmissão Continuamente Variável), hoje proibido por regulamento e que poderia mudar de maneira significativa a história da categoria máxima do automobilismo.
De maneira simplista, os CVTs são transmissões que permitem utilizar intermináveis relações de velocidades. Em outras palavras, seria como se o carro não possuísse quatro, cinco ou seis marchas: eram infinitas. Isso é possível, pois, ao invés de transmitir o movimento do motor por meio de engrenagens de perfil pré-estabelecido, os CVTs o fazem através de um sistema de correia e polias cônicas cujo diâmetro efetivo aumenta ou reduz à medida que suas extremidades se aproximam ou afastam, possibilitando uma quantidade infinita de combinações entre as rotações de entrada e saída.
Em termos esportivos, a principal vantagem desse tipo de transmissão reside no fato de que, à medida que a relação de transmissão vai se alterando de maneira contínua, o motor permanece sempre na rotação de potência máxima. Além disso, o sistema elimina a troca de marchas, garantindo acelerações mais uniformes e eficientes, principalmente em carros cujo arraste aerodinâmico é elevado a ponto de influenciar diretamente no comportamento dinâmico sob aceleração – como é o caso dos Fórmula 1 modernos.
No entanto, apesar de ter sido utilizada em veículos de passeio desde a década de 60, essa tecnologia não era viável em carros de F1 devido às elevadas solicitações mecânicas. Essa era a realidade, pelo menos até a Williams resolver o problema no início dos anos 90. Tudo começou quando, no início de 1991, Emery Hendriks, da Van Doorne Transmissions, contatou o diretor técnico da Williams à época, Patrick Head, explicando as vantagens proporcionadas pelo sistema CVT, bem como os desafios necessários para colocá-lo em um veículo de F1.
As conversas iniciais deram certo, Head topou o desafio e o trabalho em conjunto começou. A grande dificuldade seria garantir a durabilidade do sistema, frente às solicitações inerentes a um motor de cerca de 800HP.
Após dois anos de trabalho sobre a tecnologia, finalmente produziu-se um protótipo funcional para a realização de testes em veículo. Em julho de 93, David Coulthard fez o primeiro shakedown de um F1 com câmbio CVT, no circuito de Pembrey, País de Gales. De acordo com os relatos da época, o Williams equipado com CVT chegou a ser mais de 1s mais rápido por volta que a versão padrão.
Em setembro de 93, o suíço Alain Menu, piloto do BTCC, também testou o protótipo Williams, desta vez em Silverstone. Em Grove, tudo indicava que 1994 seria ainda melhor do que fora 1993. No entanto, o resultado dos testes chegou aos ouvidos da FIA. Temendo um desequilíbrio excessivo em favor das Williams, o órgão máximo do automobilismo decidiu banir o CVT via regulamento. A partir de 94, os sistemas de transmissão dos carros de F1 deveriam ter “um mínimo de duas e um máximo de sete relações de velocidade discretas”, automaticamente banindo o CVT e suas infinitas relações.
httpv://youtu.be/x3UpBKXMRto
Digna de nota a diferença sonora entre os carros normais e o Williams equipado com CVT. Não existem trocas de marchas durante a aceleração do veículo, que vai da marcha lenta (12500rpm) à potência máxima (15000rpm) praticamente em uníssono e ali se mantém. Ainda, o carro parece muito mais lento do que é na realidade, devido à falta de relação entre som e velocidade.
Alguém aí vai continuar reclamando dos V6 atuais?…
Por parte a Williams, pouco barulho se fez pela proibição do novo sistema, indicando que ele talvez não fosse confiável o suficiente. Além disso, o motor Renault V10 teria de ser modificado de maneira importante para garantir sua própria confiabilidade em regimes de trabalho mais severos. Considerando que durante grande parte do tempo o motor estaria em rotação de potência máxima, haveria aumento massivo das solicitações mecânicas às peças do motor, sujeitas por muito mais tempo a maiores cargas e velocidades. Ainda, o sistema de refrigeração do motor deveria ser aprimorado, implicando em radiadores maiores, o que comprometeria a eficiência aerodinâmica.
Além disso, o peso da transmissão ainda estava longe do ideal. Era tão pesado que Patrick Head e principalmente Adrian Newey o consideravam como um fator de risco no desempenho dinâmico do carro. Apesar do imenso sucesso inicial, a aplicação do CVT demandaria ainda uma imensa quantidade de trabalho para se tornar aplicável, tanto para a Williams quanto para as outras equipes.
Ainda assim, por ter iniciado prematuramente o desenvolvimento da tecnologia e pelo contrato de exclusividade com a Van Doorne, é possível dizer que as Williams reinariam absolutas durante o restante da década de 90, enquanto as concorrentes teriam de correr atrás. Pelo menos em um universo paralelo ao nosso.
Abraços,
Cassio Yared
10 Comments
Entre os efeitos colaterais do sistema, Cassio, podemos citar também um pequeno aumento no consumo de combustível, uma vez que o ganho de potência média viria justamente a partir da maior quantidade de mistura convertida, graças às maiores rotações. É bem verdade que a continuidade da aceleração iria evitar as perdas atuais durante as trocas, mas ainda assim o saldo certamente ficaria negativo sob esse aspecto, afetando o peso do conjunto no início das provas e também parâmetros aerodinâmicos e de distribuição de peso, a partir do maior volume do tanque.
Abraço, e parabéns pelo excelente texto.
Já eu gostaria que o CVT na Fórmula 1 tivesse ido para frente, ao menos para “ver a luz do dia”, como diz o texto. Nem que fosse por uma temporada apenas.
Imagina como deveria ser assistir uma corrida em que todos os carros estivessem com o motor em rotação constante. Não sei se seria bom ou ruim, mas seria diferente. Imagina os avanços que esse tipo de câmbio não receberia com o desenvolvimento da tecnologia, indo parar nos carros de rua. Talvez carros equipados com CVT se tornassem hoje mais comuns ou, até mesmo, menos custosos.
Enfim, sem entrar no mérito da esportividade, da competitividade, da facilidade versus dificuldade… Do ponto de vista tecnológico seria interessante.
Cassio,
show de bola não só pelo belo texto mas pela bela informação de dados sobre o CVT.
Eu particularmente já não gosto de carros automáticos. Eu gosto de passar a marcha. Me faz bem saber e de como usar cada marcha solicitada e em saber fazer trocas de marchas só no tempo, sem o uso da embreagem. Creio que como o Mauro e Rubergil, jamais iria gostar de saber do cambio CVT na Formula 1.
Quando as minhas filhas completaram 15 anos, dei de presente para cada uma delas uma Honda Biz, que possui embreagem semi-automática. Era só acelerar e trocar de marcha sem o uso de embreagem … pô!!! .. de cara sentia, quando andava nestas motos, a falta da manete da embreagem … e não gostava … rsrsrsrs .,.. ainda bem que o CVT não vingou na Formula 1.
Fernando Marques
Niterói RJ
Olá Fernando;
Creio que para nós, entusiastas do automobilismo, ter três pedais no carro é fundamental! Como você disse, não existe nada melhor do que ter o controle e domínio da máquina.
Abraços
Cassio
Belo texto Cassio!
Faço minhas as palavras do Rubergil, e digo mais, se o CVT tivesse vingado na F1, teria sido a maior bizarrice já aprovada na categoria.
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Olá Mauro;
O maior problema do CVT é que, como se diz em Curitiba, o som não “orna” com a velocidade do carro.
Abraços
Cassio
Eu particularmente fiquei feliz que o CVT não tenha entrado na F1. Não que eu não goste do cambio: tenho um carro com CVT e adoro a suavidade que ele proporciona.
Mas para um carro de competição, que deve desafiar fabricantes e pilotos, acredito que estaríamos nivelando por baixo.
Um dos princípios de pilotagem desde priscar eras tem sido a habilidade de trocar as marchas rapidamente e na hora mais apropriada para o desempenho. Com CVT, isso cai por terra. Por isso hoje eu sou até mais radical: deveriam abolir os “paddle shifts” e voltar à caixa de marchas tradicional com embreagem.
Também as equipes praticamente não precisariam mais determinar quais sãos as relações de marcha ideais, de acordo com a pista e com as características do motor. E sim, eu também acho uma aberração hoje em dia os carros terem uma relação única para todo o calendário.
Vou adiante: com as trocas por embreagem e o velho trambulador em H, seria ideal estabelecer um limite de 6 relações de marchas. Mais desafio ainda para a escolha das relações de marcha, por parte da equipe, e do piloto em saber o ponto ideal de troca.
Sim amigos, voltar aos anos 80.
Pra terminar, minhas filosofias baratas: Formula 1 é lugar de competição, velocidade, desafios, virilidade. Não é lugar para testar formas de economizar combustível. Isso fica para os carros de rua. Eu entendo que os fabricantes têm interesse em usar a Formula 1 como experimento tecnológico, mas acho que é exatamente por isso que os orçamentos são tão caros. Algo mais simples talvez resultaria numa situação bem melhor que a atual (18 carros no grid!). Ou então que faça como o WEC fez: limite o consumo de combustivel e deixe os fabricantes livres para proporem a solução que quiserem.
Abraços,
Concordo em muito com a opinião do Rubergil, mas não acredito em retorno ao passado. A fórmula 1 tem adotado uma série de revoluções cosméticas, para tentar nos levar de volta à década de 80, mas cada passo dado traz ainda menos para os fãs. Restrições no rádio, motores turbo, redução dos auxílios eletrônicos, nada disso trouxe a competitividade e o espétáculo de volta; muito pelo contrário, deram uma vantagem inacreditável a um único fabricante.
Como no WEC e na FE, a F1 devia olhar só para frente, ao invés de ficar patinando no passado. Os anos 80 nunca vão voltar, (in)felizmente. Mas quando olhamos para trás vemos o que houve de mais bonito, e não lembramos de corridas chatas, sem ultrapassagens ou emoção alguma – e houve aos montes! A discussão sobre o regulamento técnico conseguiu ofuscar uma temporada cheia de variáveis, mesmo com uma hegemonia desde a primeira prova.
O câmbio CVT tiraria um desafio aos pilotos e faria as máquinas soarem muito estranho – não gostaria de assistir uma corrida com aquele som monótono. O controle de tração também foi tarde, mas a suspensão ativa, na minha opinião, foi uma perda. Ela levava os pilotos ao limite extremo, especialmente em curvas de alta e circuitos mais exigentes. Uma corrida em Cingapura com suspensão ativa levaria os pilotos à exaustão absoluta, pela exposição a níveis inacreditáveis de força G.
Olá Ronaldo;
Também entendo que a F1 deve olhar pra frente, principalmente no quesito de dsenvolvimento tecnológico. O congelamento de motores e sistemas mecânicos trouxe ganhos expressivos em confiabilidade, mas em termos de desempenho podería estar muito melhor.
Ótima sua colocação a respeito da suspensão ativa. Vai de encontro ao que respondi ao Rubergil: a F1 necessita buscar um novo equilibrio entre evoluções técnicas e desafio de pilotagem. Enquanto alguns avanços facilitam a vida do piloto, outros tornam o carro ainda mais complexo. Se tivessemos, por exemplo, uma comunicação limitada (ou até mesmo nula) entre piloto e engenheiro de pista, os volantes atuais seriam um desafio enorme para os pilotos. Conciliar a estratégia de corrida com os acertos dinâmicos do carro e a própria pilotagem exigiriam elevada capacidade multi-tarefa, bem como conhecimentos de dinâmica veícular mais avançados do que grande parte dos pilotos possuem hoje.
Abraços
Cassio
Olá Rubergil;
Também acho fascinante o desafio de acertar uma caixa de marchas tradicional para um GP, bem como a utilização do terceiro pedal para pilotagem. Infelizmente não temos mais este tipo de situação na F1 atual.
Por outro lado, até o final dos anos 90, a F1 era sinônimo de tecnologia de ponta no que diz respeito a carros de corrida. Fama que foi se perdendo a medida que os regulamentos técnicos foram congelados, com o suposto objetivo de redução de custos.
Entendo que boa parte da crise existencial da F1 hoje, se dá por ter perdido estas duas características acima citadas: desafio de pilotagem e vanguarda do desenvolvimento tecnológico.
Buscar um novo equilíbrio entre elas talvez seja um ponto de partida para tornar a categoria mais interessante ao público. Muito melhor do que adotar o sistema de medalhas, certo?
Abraço