Nesta semana, completei trinta anos de automobilismo, esse esporte elitista e cruel que captura meu olhar como poucas coisas na vida.
No princípio, eram os brutos. Homens fortes, meio gordos até, empoleirados atrás de volantes enormes, com capacetes diminutos. Morriam aos montes. Depois, eram os bravos. Espécie de guerreiros, Ulisses homéricos desafiando a morte e perecendo pelo menos dois por ano. Então, tornearam seus músculos, correram, nadaram e pedalaram para, além de conduzir máquinas, virarem atletas de fato, capazes de ombrear-se com colegas olímpicos. Ficavam cada vez mais jovens e já não desafiavam a morte, que há quase duas décadas estava proscrita dos autódromos.
Alberto Ascari, Juan Manuel Fangio, Nino Farina, José Froilan Gonzalez entre os primeiros. Jim Clark, Jackie Stewart, Emerson Fittipaldi, Niki Lauda no segundo grupo. Michael Schumacher, Mika Hakkinen, Fernando Alonso, Sebastian Vettel no terceiro. Se a história da Fórmula 1 pudesse ser contada na forma daquele desenho que representa a evolução do homo sapiens, mostraria uma figura humana que progressivamente emagrece, fortalece-se e rejuvenesce.
O italiano Nino Farina, primeiro campeão da Fórmula 1, chegou ao título aos 44 anos. Sebastian Vettel, o mais recente, conquistou seu primeiro campeonato aos 23. Mas não é só a pouca idade que parece diferenciar o alemão de seus antecessores. Uma característica de personalidade torna Vettel um exemplar, senão único, pelo menos muito raro no universo do automobilismo e do esporte de competição em geral. Vettel alia a obsessão em vencer com o prazer em fazer o que faz.
Se os pioneiros hoje surgem aos olhos contemporâneos como loucos é porque de fato não concebemos mais pilotos usando insipientes toucas no lugar de capacetes, sentados em cockpits desprotegidos. Mas talvez nos seja inconcebível imaginar tamanha negligência porque não estamos mais na Europa dos anos 1950, arrasada pela guerra, na qual boa parte da população podia ter morrido em casa, atingida por um bombardeio inimigo ou aliado. Sobreviver a essa loteria perversa parecia mais heroico que subir em um carro e acelerar até o fundo. Pense bem: o segundo ato depende só de quem opta por fazê-lo. O primeiro está nas mãos do soldado, do sargento, do major, do coronel, do marechal de campo, do Führer. No fundo, os brutos do passado poderiam ser apenas diletantes celebrando a vida.
À medida que a Fórmula 1 vai se profissionalizando, globalizando e mercantilizando, ampliam-se os compromissos: com as marcas a ela associadas, com a audiência, com a segurança. A grande guerra começa a ficar distante e os atores principais, muitos deles baby boomers, entendem que correr é, sim, um grande risco, mas talvez inevitável, e se portam não mais como quem celebra a vida, mas como heróis modernos que desafiam a morte.
Há alguns dias, aqui mesmo no GPTotal, Eduardo Correa lembrou, na coluna “Sexo e aceleradores”, o GP da Espanha de 1975, antevisto por vários pilotos como uma prova de risco desmedido. Mesmo diante de um acordo de cavalheiros para que apenas algumas voltas se realizassem, o espírito indômito de vários competidores levou-os a correr. É claro que, entre um panorama e outro, há quem transite no meio termo. Ao lado dos precavidos Niki Lauda, Emerson Fittipaldi, Graham Hill que, em determinados momentos, manifestaram-se contra a realização de corridas em situações inseguras, sempre existiram os destemidos (irresponsáveis?) que não se deixavam intimidar pelo risco. Não corriam para desafiar a morte nem para celebrar a vida, mas porque tinham prazer em acelerar carros de corrida. James Hunt e Nelson Piquet são descendentes típicos dessa linhagem.
O surgimento de Ayrton Senna no cenário da Fórmula 1, nos anos 1980, parece determinar outro tipo de piloto. Ele sublima o risco inerente do esporte, mas não o faz pelo prazer de pilotar, e sim pela obsessão em vencer. Percebe que será um piloto melhor se conseguir tornar-se também um atleta melhor e passa a se dedicar a uma preparação física cruel, e a controlar a alimentação, e a viver como um prolongamento da máquina, enxergando o próprio corpo como parte daquele conjunto vencedor. Não é diletante, não é herói, não é hedonista: é um mártir que exibe suas vitórias com esforço e faz questão de expor o sacrifício que se impõe para conquistar seu objetivo. Não parece ter prazer, mas imolar-se em prol de uma meta.
É evidente que não foi a obsessão de Senna que lhe tirou a vida, foi a barra de direção enfiada no crânio. Foi-se o piloto, ficou seu espírito: vencer, vencer, vencer, custe o que custar, ainda que eu gaste meu tempo livre correndo, nadando, pedalando, fazendo exercícios mentais. Ainda que eu precise jogar o carro sobre o adversário, já que ele fez isso antes e estou apenas me defendendo, ou convencer minha equipe a apostar toda sua atenção em mim, e subjugar meu companheiro de equipe. Mas não basta fazer tudo isso: há que fazê-lo com ar de sofrimento, exacerbando que meu sucesso é fruto, sobretudo, do meu esforço. Meritocracia, teu nome é Ayrton Senna.
Jenson Button talvez tenha ensaiado quebrar esse modelo. Foi campeão em 2009 com um daqueles carros de outro planeta que, no fim das contas, durou como invencível por meia temporada, sendo alcançado pela nascente Red Bull que dominaria os anos seguintes. Button é um atleta dedicado, disputa triatlo regularmente e não parece fazê-lo como se fosse um castigo imposto por um sargento tirano. Pelo contrário: dá sinais inequívocos de extrair prazer dessa superação física e não parece encarar o ofício de piloto como uma missão hercúlea. Sabe que é humano, não um semideus, mas talvez tenha sido um daqueles raios que caem uma só vez. Não será, para o futuro, a pedra fundamental de uma nova era.
Vettel, por sua vez, entra para a história não apenas pelos quatro títulos (alguém duvida?), mas por levar à excelência um novo modelo: parece o elo perdido entre os hedonistas do passado e os estoicos de tempos recentes, aliando a eficiência e o foco inabalável na vitória com uma leveza rara entre os atletas. Precisa ser costumeiramente domado por seus chefes de equipe para não fazer loucuras em nome de mais uma volta voadora. Não se contenta em apenas fazer a pole e vencer. Quer isso, mas também marcar a volta mais rápida e liderar de ponta a ponta. Ao descer do carro, no entanto, tira o capacete, a balaclava e exibe um sorriso, e aquele dedo em riste que virou sua marca registrada, e não uma expressão de quem colheu os pomos de ouro do Jardim das Hespérides, após matar o dragão de cem cabeças que os guardava.
Em 1982, eu me apaixonei pela primeira vez. Não consigo decidir se foi pelo Éder, ponta esquerda, ou pelo Oscar, zagueiro central, mas é fato que eu passava os dias suspirando por aqueles jogadores da seleção de 1982. E, por conta deles e da extraordinária Democracia Corintiana, virei leitora assídua da revista Placar. Na época, a revista trazia também a cobertura do campeonato de Fórmula 1.
Nos anos 1970, meu pai já gostava de corrida e sempre assistíamos às provas para acompanhar o desempenho do Emerson, mas acho que o período Copersucar me desanimou. Foi por conta do futebol que voltei a me interessar pela Fórmula 1, então com 12 anos. Mas vinha a bola na frente e, lá no fundo, a corrida. Como na Placar, exatamente como na revista. Até que, em 15 de outubro de 1983, Nelson Piquet venceu seu segundo campeonato (confira o nosso especial), e eu, então com 13 anos, me encantei de vez e definitivamente por esse esporte.
Portanto, nesta semana, completei trinta anos de automobilismo, esse esporte elitista e cruel que captura meu olhar como poucas coisas na vida. Como disse meu filho ontem, ao saber da morte de mais um piloto (o jovem Sean Edwards), a trilha sonora para essa paixão poderia ser aquele pagode que fez sucesso há alguns anos: “você não vale nada, mas eu gosto de você”. É meu fraco. Me julguem.
5 Comments
Meritocracia = Ayrton Senna, que não gostava de pilotar, era um obcecado por vencer e fazia tudo por isso. Queria que a sua equipe focasse a atenção nele, uma coisa rara entre os grandes campeões.
E há pessoas que acham que você está muito correto.
Sinceramente, um pouco mais de respeito por um dos maiores brasileiros da história.
Tinha uma boa impressão do vosso site, mas é a última vez que o visito.
Alessandra,
acho que você muito feliz em diferenciar o prazer de pilotar da obcessão em vencer … creio eu que esta é a melhor definição para muitos pilotos que a Formula 1 já teve … ou têm …
Eu comecei a gostar de corridas quando adquiri a primeira 4Rodas, por sinal a numero 1 … durantes anos a fio nunca deixei de comprar um unico exemplar só para saber das corridas … junto com ela comprava também a Auto esporte … lotei meu armario com estas revistas … um dia casei e sai de casa e não sei o que a minha mãe fez com elas … hehehehe
E o que mais me impressionava, principalmente nos depoimentos que o Emerson, Piquet davam a 4Rodas após as corridas era sentir o prazer que eles tinham em pilotar … independente da colocação final da corrida … eles estavam sempre felizes e prazerosos do trabalho que fizeram …
O Senna quis por que quis criar uma imagem diferente … ele tinha prazer em pilotar? … acredito que sim … mas a sua obcessão em vencer, em querer ser o melhor de todos os tempos nunca mostrava ele feliz com que ele fazia … ele sempre demonstrava querer mais…
A Formula 1 caminha a meu ver para uma geração de pilotos de joy sticks … assim sendo no futuro teremos campeões mais jovens ainda que o Vettel, com risco de vida zero … todos pilotarão dos computadores … os carros na pista e les no ar condicionado …
sensacional o seu texto
Fernando Marques
Niterói – RJ
Sabia que atualmente, cientistas (alguns ateus) de renome tem questionado a “evolução natural das coisas” como você quer passar aqui? Quer saber o nome de alguns? Acredita mesmo que as coisas estao evoluindo?
Certeza que está no site certo? Ou até mesmo que entendeu o texto?
Elo perdido é este seu texto, Alê. Poesia e precisão dedicadas ao esporte a motor. Inspiração pura, menina. Digna da celebração dos 30 anos de uma paixão. Clap clap clap.