O epílogo de 1983

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30 anos do bicampeonato mundial de Nelson Piquet: qual foi o ponto fundamental daquela conquista histórica?

O último dia 15 de outubro marcou os 30 anos do bicampeonato de Nelson Piquet, que triunfou a bordo de um dos mais belos carros de todos os tempos: Brabham-BMW BT52/52B. E para comemorar a data, fizemos no facebook do GPTotal um especial relembrando as 15 etapas daquele fantástico ano de 1983. O chefe Edu, Marcel, Márcio e eu nos revezamos e contamos, em nossos pontos de vista, como aquele bicampeonato se desenvolveu, corrida por corrida, em posts diários numa deliciosa viagem que foi de Jacarepaguá a Kyalami.

Em um breve diálogo que tive com o Marcel, contei as minhas impressões gerais da temporada, sobretudo no aspecto técnico, e que me deram ideia da coluna de hoje como uma extensão daquele especial. Criou-se, naquela temporada, um cenário fantástico, totalmente aberto à diversidade de projetos.

Foi fundamentalmente um período de transição. Da Era Aerodinâmica (iniciada em 1968 com a adoção de asas e radicalmente potencializada pelo carro-asa a partir de 1977) passamos em definitivo para a Era Turbo – em que motores desse tipo finalmente tornaram-se hegemônicos.

O período foi de “reaprendizado” para os projetistas, e isso se deu com a proibição em dezembro de 1982 do carro-asa em favor de modelos com fundo plano – medida tomada com total lobby da Ferrari, que acreditava que venceria o campeonato “no motor”. Equipes teriam a hercúlea tarefa de montar algo competitivo em ínfimos três meses e muitos projetos foram diretamente para o lixo, pois toda a concepção aerodinâmica mudava radicalmente.

Um dos poucos times a apresentar um modelo totalmente novo foi justamente a Brabham. Gordon Murray, meu grande ídolo, uma vez disse que, ao passear pelos boxes em Jacarepaguá, ficou se imaginando se não havia ido longe demais no projeto do BT52, que certamente era o mais diferente do grid com suas asas, laterais e derivas em formato triangular. A resposta é que ele foi longe sim, uma vez que a vitória na abertura da temporada ficou com Piquet. Mas a concorrência se preparava…

Os chassis não apresentaram desenhos revolucionários – as grandes mudanças eram a transição do alumínio para a fibra de carbono, e o processo de extinção das velhas suspensões com balancins (braços apoiados no conjunto mola-amortecedor), em favor das suspensões com tirantes, em que esse braço extra fazia o papel de movimentar os braços, seja por compressão (push rod) ou por tração (pull-rod). E com o fim do carro-asa, surgiu o difusor traseiro. Fibra de carbono, suspensão de tirante e difusor traseiro… recursos usados até hoje.

Além dos novos projetos, em que muito potencial ainda seria extraído, havia também uma guerra de pneus. Michelin (Brabham, Renault e McLaren) e Goodyear (Ferrari e Williams) se engalfinhavam pelo título, enquanto Pirelli (Lotus) tentava salvar uma vitória ou outra. Houve corridas em que o favoritismo da Ferrari nos treinos não se traduzia na corrida pelo simples fato da Michelin ter um pneu melhor para stints longos.

Mesmo com tantos fatores – nova aerodinâmica, período curto, novos materiais, suspensões, guerra de pneus – a meu ver, na parte técnica, nada foi tão importante quanto os motores. A temporada 1983 foi definitiva na corrida armamentista na busca pelos cavalos de potência.

Levantei o dado: Piquet começou o ano com um motor que rendia 640 cavalos. E terminou o ano montado num foguete de 740, que rendia por volta de 800 em treinos, com muito menos turbo lag, aquela hesitação inercial do turbo em baixas rotações. A grande arrancada foi o GP da Itália, justamente quando o mago dos motores Paul Rosche melhorou a potência e a resposta ao acelerador do famoso BMW M12/13 4 em linha. Foi fundamental para dar à Brabham um clima de otimismo e espalhar o pânico na então favorita Renault – que tinha Prost com 14 pontos à frente faltando 3 provas.

A Renault, que a partir da 3ª etapa teria no RE40 um carro campeão nas mãos de Prost, não conseguiu extrair tal potência de seu velho motor V6 EF01. Mesmo com o novo sistema de gerenciamento eletrônico Bendix e a injeção de água que ajudava a resfriar o motor, o projeto era de 1977 e estava em seu limite. Nas três últimas corridas, Prost quebrou em duas, pelo mesmo motivo: com pressão elevada para compensar o déficit do motor, os turbos não aguentavam e quebravam. Tanto que, para 1984, a equipe estreou o motor EF04, que venceria provas com a Lotus em 1985.

Por falar em Lotus, esta perdera Colin Chapman em dezembro de 1982. Começou o ano perdida, mas contratou Gérard Ducarouge, e este projetou às pressas o modelo 94T, muito melhor que o 93T do começo do ano, ambos empurrados pelo Renault EF01. Eram as sementes do último período competitivo do time.

A Ferrari, como ela mesma acreditava, tinha no modelo 126C2B, e em sua evolução em fibra de carbono, o 126C3, um ótimo carro. Mas de nada adiantava aquele patamar de confiabilidade de seus motores turbo V6 de 120º se os rivais conseguiam extrair cada vez mais cavalos, vencendo corridas deste modo. E o desenvolvimento de motores funciona como nosso caminhar: uma perna é a potência, a outra, a confiabilidade. Não se dá um passo sem o outro – com o risco de cair, ou do rival andar à sua frente. Além disso, a dupla Tambay-Arnoux não tinha perfil campeão, e em muito lembra a dupla Ralf-Montoya que a Williams tinha 10 anos atrás.

A Alfa Romeo tinha um V8 biturbo com algum potencial. Mas bebia horrores – quando o reabastecimento foi proibido no ano seguinte, o time nunca mais foi competitivo, e não teve como extrair mais cavalos. McLaren e Williams, ambas ainda com o Ford Cosworth aspirado, tinham bons chassis que venceram corridas de rua. Ambas as equipes terminaram o ano equipadas com turbo (respectivamente TAG-Prosche e Honda), e dominariam a era dali em diante.

E claro, para fechar a parte técnica, nada teria sentido se não fosse complementada por um grande piloto técnico. Por mais que Prost em 1983 já fosse exuberante e tivesse todo apoio da Renault, Piquet era certamente o piloto que mais se aprofundava na engenharia, trabalhando muito mais proximamente ao projetista (Murray) e ao responsável pelos motores (Rosche). Piquet era mais que um piloto, justamente num período em que este predicado era tão valorizado.

Em um período tão efervescente para a engenharia de carros e motores como foi 1983, venceu aquele que, além de melhor piloto era também o melhor test-driver. E não canso de dizer: Nelson Piquet foi o melhor test-driver da F1 em todos os tempos.

Aquele abraço!

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

11 Comments

  1. Luciano Ferraz disse:

    Salve amigo Lucas! Cara, que belo texto!

    Uma pergunta: “Piquet foi o maior test-driver da história”.

    Sua frase faz todo sentido, mas acho que ela precisa ser bem contextualizada pra então verter toda a potência…

    Problema é que Piquet passou, pra muitos especialmente no Brasil, como maior “acertador de carros”. Não sei isso é bem a realidade, e na verdade acho que isso seja difícil de realmente definir.

    Pra mim, nunca haverá exemplo maior – e o próprio Piquet diz que é o ídolo dele – do que o Jack Brabham… campeão com o próprio carro, certo?

    acho que Piquet, antes de acertador, deveria ser reconhecido como DESENVOLVEDOR – por tudo que fez junto a bmw e que vc brilhantemente descreveu…

    o Senna a gente sabe que não curtia a temporada de testes, mas ao mesmo tempo, ele é reconhecido por engenheiros como o cara que melhor dava feedback. tem um depoimento impressionante do Lee Gaug (Goodyear) a respeito disso… há uma série de videos tb: ele era capaz de, ao mesmo tempo, fazer uma volta rapidíssima e de reportar todo o ocorrido, asa, suspensão, motor, etc… aliás, o próprio lee gaug é muito elogioso ao piquet também, falando sobre a capacidade dele de fazer longas sessões e colher dados…

    então, acho que Piquet e Senna são os dois maiores pilares de dois tipos de acerto: um a curto prazo (senna) e outro a longo (piquet).

    viajei muito na maionese?

    abrço!!!

    • Lucas Giavoni disse:

      Oi Luciano!

      Viajou na maionese nada, cara. Excelente proposição.

      Não é nenhum absurdo dizer que Nelson Piquet é um discípulo indireto de Jack Brabham. Ambos sabiam a importância de ter um carro cada vez melhor, e acertado de acordo com suas preferências. E que estes predicados são cada vez menos valorizados em tempos que você pode contratar um obscuro russo de 19 anos que sequer vai passar pela GP2. Em recente entrevista, Piquet disse que piloto hoje só precisa sentar no carro, andar muito rápido e não errar. Todo aquele papel de testar e desenvolver (e aí está a sua sacada em separar os termos) é uma qualidade que não é prioritária.

      E explorando essa diferença entre testar e desenvolver, sim, Piquet, assim como Brabham, era um talentoso desenvolvedor, no sentido de propor soluções junto aos engenheiros, e não apenas provar aquilo que já está feito. Ele tinha gosto em ficar um dia inteiro provando 40 lotes de pneus, 15 programações eletrônicas e mais um milhão de acertos finos de chassi. Ele queria ganhar na pista desse jeito.

      Já Ayrton, como você bem lembrou, ia pra casa na pré-temporada e a equipe que se virasse. Não se envolvia nessa parte de desenvolver – talvez tenha feito isso com mais intensidade durante a campanha vitóriosa de 91, quando conseguiu melhorar o MP4/6 a ponto de ainda roubar algumas vitórias da superior Williams e garantir o tri. Mas ele tinha uma capacidade assombrosa de sentir o carro e transmitir isso aos engenheiros – isso é incontestável. E esses elogios vinham desde os tempos em que Gérard Ducarouge, Bernard Dudot e Peter Warr se derretiam para falar que com ele, a Lotus não precisava de telemetria.

      Prometo estudar mais sobre essa diferença entre desenvolver (um processo mais complexo) e testar (em que o feeling conta muito). É bem interessante.

      Abração!

      Lucas.

  2. Mauro Santana disse:

    Belo texto Lucas!!

    E quanto mais eu lia, mais e mais viajava no tempo.

    Essa foi a primeira parte, certo, quando virá a segunda parte deste texto fantástico!?

    E concordo contigo Fernando, Piquet/Murray foi uma dupla fantástica, que na minha opinião, a melhor que a F1 já teve, pois os caras fizeram coisas do arco da velha, e que até hoje a F1 utiliza.

    Abraço!!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

    • Lucas Giavoni disse:

      Oi Mauro!

      Hehehehe… Gostei da provocação do “esse é a 1ª parte”. Sim, o texto é curto e panorâmico, muita coisa ficou de fora.

      Vou estudar com carinho a possibilidade de fazer um compilado de coisas que ficaram de fora.

      Abração!

      Lucas Giavoni

  3. Fernando MArques disse:

    A temporada de 1983 apresentou a meu ver dois fatores interessantes e a meu ver tão cruciais quantos os motores para definir o campeão daquela temporada.
    Um deles a diferença tecnica de pilotagem entre Prost e Piquet. Aquela batida de Prost na Holanda faz até lembrar a fechada que ele deu em Senna no Japão em 89. O frances na hora em que tinha que atacar era fraco, principalmente se o adversário tinha um carro semelhante em termos de desempenho. Ele sempre errava. Em 83 ele tirou Piquet da corrida.
    O outro a meu ver foi o lado estrategista de Piquet ainda mais tendo o Gordon Murray por trás lhe dando todo suporte que era possível na época. O que eles fizeram em Kyalami então chegou ser uma covardia.
    Piquet foi o melhor test driver que a Formula 1 já teve. Concordo
    Só que para mim ele foi o mais completo também. Era um ótimo estrategista quando necessário … sabia ser agressivo quando necessário e sabia ser o mais rápido quando tinha carro para isso. Em 84 ele marcou 9 poles na temporada graças a um motor BMW de quase 1330 HP … Somando isso tudo para mim ele foi o mais completo.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Lucas Giavoni disse:

      Oi Fernando!

      Há um detalhe que não foi mencionado no texto, justamente sobre o GP da Holanda.

      Piquet, que liderava, conta que estava perdendo rendimento por conta de um amortecedor defeituoso, que fazia o carro ficar traseiro demais. Entretanto, Zandvoort é uma pista difícil de passar, e o ponto mais claro de ultrapassagem é a Tarzan, a 1ª curva. Mas, como se pode perceber, ela é logo após a grande reta de largada. O motor BMW não tinha a melhor curva de torque (os V6 biturbo eram certamente melhores nisso), mas tinha uma aceleração diabólica.

      Entãoi Prost, mesmo viajando no vácuo da Brabham, não conseguia tirar de lado pra ultrapassar. Foi se irritando, e acabou fazendo a besteira de frear tarde, provocando aquela chicoteada que fez os carros se tocarem. Ao que parece, o carro da Renault daquele ano era muito estável, ao estilo de Prost, mas não devia responder muito bem a pilotagens extremas – e frenagens bruscas, com carro de lado, esntra nesse rol.

      Sobre o desenvolvimento do BMW M12/13 ao longo do tempo, dos 650 cavalos iniciais até quase 1500 em treinos, não é à toa que chamo Paul Rosche de mago…

      Abração!

      Lucas Giavoni

  4. Em minha opinião, o texto definitivo sobre 1983.

    • Rubbergil Jr disse:

      Concordo em gênero, número e grau.

      • Lucas Giavoni disse:

        Pô, galera, é um texto curto e bastante panorâmico – fico até constrangido pelo elogio. Há muitas minúcias que ficaram de fora. Mas digo com ar saudosista que nesse tempo era justamente mais fácil explorar essas minúcias pois elas estavam na nossa cara. Hoje em dia você mal consegue ver um F1 com tampa de motor aberta e ninguém divulga um treco importantíssimo chamado POTÊNCIA DO MOTOR… É constrangimento (afinal, a Era Turbo foi o grande ápice) ou é segrado industrial (como se alguém pudesse, correndo, fazer um motor mais potente em tempos de congelamento…)? Fica a dúvida…

        Abração!

  5. Mário Salustiano disse:

    Lucas

    Pesquisa primorosa essa sua aliada a um texto envolvente, li e reli , e sim Piquet foi o melhor teste driver que já passou pela F1, não é a toa que ainda nos dias atuais ele é venerado pela turma de engenharia da BMW.
    A parte final do campeonato de 83 foi vibrante para mim como torcedor e a corrida em Kyalami um banho de estratégia da dupla Murray/Piquet sobre os rivais, aliás sobre Murray ninguém na época ficava com mimimi por ele ser um gênio e entregar bólidos superiores aos seus pilotos, pena que com a fragilidade dos carros ele não foi tão dominante como Newey é atualmente

    abraços

    Mário

    • Lucas Giavoni disse:

      Oi Mário!

      Obrigado por suas palavras. Gordon Murray é talvez meu projetista favorito, não apenas por seus trabalhos, mas pela figura que ele representa – talvez meu apreço por camisetas coloridas do tipo aloha seja influência dele…

      Você tocou no assunto durabilidade. A F1 teve uma evolução dramática nesse aspecto, sobretudo depois que componentes passaram, por regra, a ter que durar por vários GPs. Sim, a medida é pela econima, mas não há ação sem reação. Carros não estão jamais em seus limites técnicos; aquela proporção mágica entre o ápice de desempenho e a total implosão dos materiais não mais existe – Colin Chapman, mentor do conceito “que o carro desmanche após a bandeirada” não ia gostar nada disso…

      Abração!

      Lucas Giavoni

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