Maio, tipicamente, é o mês das memórias na Fórmula 1: Salu (aqui) e este colunista que vos escreve (aqui) já dedicaram colunas sobre lembranças – fatos e pessoas – que o quinto mês do ano traz aos amantes da categoria máxima do automobilismo.
Em 2024, por se tratar de um número redondo, as referências a Ayrton Senna foram muitas e muito especiais. No GP da Emilia-Romagna deste ano (ou de San Marino, como nos acostumamos – ou da Itália, como certa feita…), tivemos três grandes momentos evocando o lendário tricampeão na pista de Imola.
O primeiro deles – sem os carros, mas com todos os pilotos -, em evento promovido por Sebastian Vettel, quase todos os pilotos vestiram uma camiseta que emulava o capacete do tricampeão (e pulseiras em homenagem a Ratzenberger) e fizeram uma corrida a pé pelo circuito.
[Obs: Verstappen estava com o uniforme da equipe, não vestindo a camiseta especial, e nós sabemos o porquê (dica: não houve furto nem perda de camisetas…).]
O segundo grande momento, também protagonizado por Vettel, trouxe o alemão tetracampeão pilotando a McLaren MP4/8, certamente o mais belo modelo pilotado por Ayrton (e o mais tecnológico), ainda que longe de ser o melhor carro daquele ano.
Com aquele carro, Senna disputou a corrida em 1993, largando em quarto e abandonando por problemas na suspensão ativa quando era segundo.
O terceiro fator, ocorrido antes da volta de Vettel, não foi uma homenagem programada: Max Verstappen marcou a pole-position e, assim, obteve sua oitava vitória consecutiva nas qualificações. Com isso, ele igualou o feito obtido por Senna, entre 1988 e 1989 (as três últimas de 88 e as 5 primeiras de 89), somando as 7 seguidas de 2024 à pole no último GP de 2023.
E é este o tema da nossa coluna hoje.
Em 2015, escrevi um texto intitulado “O grande recorde de Senna”, em que eu elencava as oito poles consecutivas. Destaquei: “O feito das poles seguidas está inserido em outro recorde de Senna: as 24 primeiras filas consecutivas (obtidas entre a segunda metade de 1988 e ao longo de 1989), e esta é outra marca que Lewis Hamilton vinha perseguindo e viu lhe escapar em Cingapura: o inglês terminou com 20, a segunda melhor marca da história.”
Hamilton vinha em sua 7ª pole seguida e buscava também sua vitória de número… 41! No entanto, no GP de Cingapura, ele não conseguiu nem mesmo a segunda fila, partindo da quinta colocação e abandonando a corrida. Além de Hamilton naquele 2015, somente o próprio Senna, entre 1990 e 91, Prost, em 1993, e Schumacher, entre 2000 e 2001, haviam conseguido sete poles seguidas.
Eis que, 9 anos depois, Verstappen consegue igualar o feito de Senna – mas não o superou, em Mônaco largado apenas em sexto. Foram 35 anos, portanto, até o recorde ser igualado. As primeiras filas, porém, seguem intactas, ainda não sendo ameaçadas seriamente por ninguém.
Após uma análise mais aprofundada, tanto do(s) recorde(s) de poles – e primeiras filas seguidas – quanto do meu texto original, percebo que “O Grande Recorde de Senna” talvez seja outro.
Quando marcou a pole em Imola, 30 anos atrás – relembre aqui -, Senna chegava à sua oitava largada em primeiro no Autódromo Enzo e Dino Ferrari. Em 2004, Schumacher igualou esta marca no Japão, partindo pela oitava e última vez da pole em Suzuka. E em 2019, Lewis Hamilton chegou à sua oitava pole em Melbourne. Seria o próprio Hamilton, porém, que quebraria a marca de poles num mesmo GP quando, em 2023, foi pole em Hungaroring pela nona vez.
Schumacher largou sete vezes em primeiro tanto na Espanha (Barcelona) quanto na Hungria, e Hamilton tem sete poles na Itália e na Inglaterra. Nenhum deles, porém – nem nas pistas com oito nem naquelas com 7 poles -, conseguiu largar em primeiro mais do que cinco temporadas seguidas (Schumacher fez isso na Espanha, somente; nas outras seis pistas citadas, foram no máximo 4, tanto Schumi quanto Lewis – Jim Clark, lá atrás, também conseguiu 4 poles seguidas nos GPs da França e da Grã-Bretanha, e o próprio Senna o fez na Austrália, na Bélgica, no Brasil, em Mônaco e na Itália… só isso!).
Senna, por outro lado, estabeleceu sua marca em apenas 11 tentativas: ele só não partiu da ponta em 1984, 1992 e 93. Nestas duas últimas, largou na segunda fila (3º e 4º, respectivamente). Na primeira ocasião, não conseguiu somar tempos nos dois dias e, por conseguinte, não obteve classificação e não disputou a corrida no domingo.
Portanto, ele largou na pole por sete temporadas consecutivas, de 1985 a 1991. Trata-se de um domínio jamais visto num mesmo circuito, ainda que o seu número de vitórias na pista seja relativamente modesto – entenderemos o porquê mais adiante -, com “apenas” três vitórias.
[É importante lembrar que, além de serem dois motores e duas equipes distintas (mas um mesmo fabricante de pneus), Senna também teve diferentes formatos de treinos para chegar a esse número de poles: em 1985, 86 (Lotus-Renault), 89, 90 e 91 (McLaren-Honda), havia pneus de classificação e ficavam disponíveis dois jogos para sexta e dois para o sábado. Em 1987 e 88 (Lotus-Honda e McLaren-Honda), eram utilizados pneus de corrida e não havia limite de voltas].
Vamos relembrar cada uma dessas pole-positions:
1985 (Lotus-Renault): 1min27seg327 (0.027s de vantagem para o segundo colocado – Rosberg, Williams-Honda – e 0.525s para o companheiro de equipe, Elio de Angelis).
Naquele ano, Keke Rosberg e a Williams brigavam com Senna e a Lotus pela terceira posição nos campeonatos de pilotos e construtores (lembremos que foi neste ano que Senna iniciou seus contatos-sondagens com a Honda, justamente por perceber no carro de Rosberg o futuro da F1). Em ambos os casos, foi o time de Sir Frank a sair vencedor: Keke terminou em terceiro, dois pontos à frente de Ayrton, e a Williams superou a Lotus nos critérios de desempate (vale lembrar que Keke estabeleceu o recorde histórico de velocidade média para uma pole, no GP da Grã-Bretanha). Pode-se dizer que Imola fez a diferença nisso, uma vez que Senna largou na ponta e liderou 56 das 60 voltas, na 57ª abandonando por pane seca.
1986 (Lotus-Renault): 1min25seg050 (0.519s de vantagem para o segundo colocado – Piquet, Williams-Honda – e 4.194s para o companheiro de equipe, Johnny Dumfries).
Senna fez 8 poles em 1986 (em 1985, haviam sido 7). Boa parte delas, absolutamente dominante – a mais incrível, certamente, a de Brands Hatch. Em Imola foi da mesma maneira. Vale lembrar que, naquele momento, Senna era o líder do campeonato, após a vitória em Jerez. Ayrton marca o melhor tempo impondo meio segundo sobre Nelson Piquet, dono do melhor carro da temporada. A ponta, porém, durou muito pouco: Senna foi ultrapassado por Piquet logo antes da curva Villeneuve, o motor Honda da Williams engolindo o Renault em plena reta. A corrida de Senna também duraria pouco: na volta 3, começa apresentar problemas na roda, se segurando até abandonar no 11º giro.
1987 (Lotus-Honda): 1min25seg826 (0.120s de vantagem para o segundo colocado – Mansell, Williams-Honda – e 3.753s para o companheiro de equipe, Satoru Nakajima).
Em 1987, um paradoxo, que já mostrava o amadurecimento de Senna e seu melhor entendimento das corridas e das dificuldades da Fórmula 1: é sua melhor temporada em pontuação (e, por consequência, sua melhor colocação final, 3º, o vice só escapando por conta da desclassificação na última etapa da temporada), e a mais fraca em termos de qualificação, exceção feita ao período Toleman, obviamente: na segunda metade da temporada, Ayrton não conseguiu alinhar no top 3 nenhuma vez. Mas no início do ano ele foi assíduo frequentador da primeira fila, e sua única pole no ano aconteceu justamente em Imola – superou ambas as Williams por menos de 0,2s, Piquet sofrendo seu famoso acidente na mesma curva e no mesmo dia 1º de maio de 7 anos mais tarde. Na corrida, o mesmo filme do ano anterior: Senna foi ultrapassado por Mansell já na segunda volta. Dessa vez, porém, ele amealhou o pódio, encerrando na segunda colocação, após boas brigas com Patrese (Brabham) e Alboreto (Ferrari).
1988 (McLaren-Honda): 1min27seg148 (0.771s de vantagem para o segundo colocado, também seu companheiro de equipe, Alain Prost).
Em 1988, era Senna quem tinha o melhor carro, tanto é que Piquet, agora com a Lotus-Honda, aparecia em terceiro lugar a infinitos 3,3s de distância para Senna. A corrida foi um replay dos treinos, Senna e Prost em outra esfera, o melhor giro da prova sendo 1,7s melhor do que o mais próximo – Berger, com Ferrari. Senna venceu de ponta a ponta, sem nunca ser ameaçado de fato por Prost, e colocando uma volta no terceiro colocado. Finalmente, a primeira vitória em Imola. E justamente num dia 1º de maio…
1989 (McLaren-Honda): 1min26seg010 (0.225s de vantagem para o segundo colocado, também seu companheiro de equipe, Alain Prost).
A famosa corrida da discórdia. Senna e Prost repetiram o ano anterior, impondo mais de 1,6s de distância para o terceiro colocado nos treinos. Na corrida, Senna parte melhor e começava a abrir vantagem, quando Berger sofre seu grave acidente (na Tamburello…). Na relargada, Prost parte melhor, e Senna o ultrapassa na curva Villeneuve, vencendo com meia volta de vantagem. Era a primeira curva ou a primeira volta? E qual era a primeira curva, afinal? Prost usou o tal “pacto quebrado” para desviar o foco da acachapante distância de velocidade que Senna estava lhe impondo?
1990 (McLaren-Honda): 1min23seg220 (0.560s de vantagem para o segundo colocado, também seu companheiro de equipe, Gerhard Berger).
Já dono absoluto do recorde de poles seguidas num mesmo GP, Senna encara situação familiar à dos anos anteriores: dispondo do melhor carro do fim de semana, impõe larga vantagem à concorrência – a começar pelo piloto que dispunha do mesmo equipamento, mais de meio segundo. O terceiro do grid (Patrese, de Williams) anotou um tempo 1.224s acima do obtido por Senna. Mas a corrida seria diferente. Ayrton pula na frente e começa a abrir até que, na 3ª volta (como em 86), um problema na roda (como em 86) o força a abandonar. A vitória fica com Patrese e a Williams, prenunciando o que aconteceria nos anos seguintes.
1991 (McLaren-Honda): 1min21seg877 (0.080s de vantagem para o segundo colocado, Patrese, Williams-Renault – e 0.690s para o companheiro de equipe, Gerhard Berger).
A narrativa comum nos setores “especializados” é de que, em 1991, a Williams só conseguiu fazer frente à McLaren na metade da temporada, o que não é verdade em nenhum aspecto, uma vez que já na quinta corrida houve domínio total da equipe de Mansell e Patrese. Mais do que isso, já em San Marino era visível que o time de Sir Frank seria o grande adversário de Senna na busca do tri. Nos treinos, Senna usa de toda sua velocidade para conquistar o melhor tempo, ficando apenas 0,080s à frente de Patrese, a segunda menor distância de todas as suas poles em Imola, só perdendo para Rosberg em 85. Na corrida, o reverso do ano anterior: Patrese supera Senna logo no início, mas na décima volta começa a acusar problemas de equipamento, abandonado definitivamente no giro 17. Senna também teve problemas de equipamento (pressão do óleo) e a equipe pediu que Berger, dono da volta mais rápida da prova, não o ultrapassasse. A retribuição viria em Suzuka.
Neste resumo, percebemos que Ayrton estraçalhou a concorrência nas classificações em San Marino, impondo média de 0,5s a seus companheiros de equipe (Dumfries e Nakajima não foram considerados aqui, note-se), donos de 48 poles na F1. Nas corridas, performances de igual qualidade, em muito prejudicadas por falhas no equipamento (1985, 86, 90, 93 e 94), boa parte delas enquanto liderava. No mais, pódios (1987, 92) ou vitórias (1988, 89 e 91).
Reconhecida e merecidamente visto como o “Rei de Mônaco” (e isso se estendeu para os circuitos citadinos americanos, com 5 vitórias e dois abandonos na liderança em 8 GPs disputados em Detroit e Phoenix), é possível dizer que Senna talvez tenha tido uma simbiose ainda maior com Imola, por tudo que foi descrito aqui e, não menos importante, por ter sido o local em que encontrou a morte.
Na história da F1, talvez somente Schumacher e Spa-Francorchamps sejam mais intimamente ligados do que Ayrton e o circuito de San Marino. Mas nem mesmo o alemão conseguiu dominar de forma tão pungente o na pista belga quanto Senna fez naquela que hoje abriga o GP da Emilia-Romagna.
3 Comments
Olá, Marcel,
Gosto dessas comparações bem pautadas para reafirmar o que sabemos e demonstrar outras coisas que desconfiamos que sejam verdades,
A matéria é excelente.
Grato, Antonio Manoel
Marcel,
A fórmula 1 nunca viu um piloto como Senna em se tratando de dar aquela volta para ser o pole positivo.
Isso é fato
Fernando Marques
Niterói RJ
Mas viu dois pilotos superando o recorde “eterno” de poles, pra acalmar um pouco essa idolatria e santificação deslavada que há trinta anos se lê em comentários, colunas e etc.