Pensei como uma série: “Quem não pode ficar fora da lista dos melhores pilotos de todos os tempos”.
Não acredito que haja um piloto que tenha sido melhor que todos os outros, não importa a época.
Por isso não dou a mínima atenção a essas listas de melhores pilotos de todos os tempos, inclusive baseadas em estatísticas, modelos matemáticos etc., porque normalmente não levam em consideração os pilotos pré-2a. guerra. Acho que são exercícios inválidos, portanto, por não incluirem os primeiros profissionais do setor, que usavam capacetes de tecido, administravam 650HP com pneus provavelmente tão estreitos quanto os do seu carro de rua de hoje, freios a tambor… Nem barra anti-capotagem tinham. Acidentes, inclusive fatais, eram corriqueiros. Como não levar em conta o ingrediente coragem, hoje pouco necessário na F1?
Segundo Raymond Mays, ex-piloto e fundador da BRM, para um piloto de Grand Prix (pré 2a. guerra) uma temporada equivale a mais de 25 anos de vida.
Como não considerar a capacidade daqueles pilotos da década de 30 de levar seus carros até o fim, quando os abandonos por quebra também faziam parte do cotidiano? Época de um automobilismo puro, combinação de tecnologia estritamente automobilística e talento para pilotar. O volante servia somente para virar as rodas da frente, sem sistema hidráulico para dar conforto (por isso tinham grande diâmetro) e o cambio era manual e desconfortável. Não parece mais excitante que aquele monte de leds coloridos com uma infinidade de modos e regulagens, que mais parecem necessitar de engenheiros eletrônicos que pilotos de competição? Talvez não esteja longe o dia em que pilotos de video game virem tempos melhores que os pilotos reais. Impossível, impensável, no final da década de 30.
Louis Chiron, o lendário piloto monegasco (venceu um Grand Prix aos 50 anos – Reims 1949), após se retirar das pistas tornou-se o organizador do Rally de Monte Carlo e diretor de prova do GP de Monaco. A rápida curva para a esquerda junto ao mar, perto da piscina, leva seu nome. Sinal de respeito e prestígio. Morreu em 79.
Consta que ele cunhou a seguinte frase: “Os pilotos de Grand Prix de hoje não são capazes nem de morrer corretamente.” Para ele os pilotos com quem conviveu quando a categoria ainda não se chamava Formula 1 tinham uma atitude mais honesta do que o bando de covardes e fracos que viu em seus últimos anos, mais interessados em ganhar o máximo de dinheiro com o mínimo de risco. Imagine que opinião faria da F1 de hoje.
Acha que tudo isso ficou obsoleto? Então saiba que Rudi Caracciola continua sendo o recordista mundial de velocidade em estradas, com 432,7 km/h, velocidade não alcançada nem mesmo na longa Mulsanne de Le Mans antes da implantação das chicanes.
Já que estamos em tempo de Mercedes liderando o campeonato de construtores e seus dois pilotos bem posicionados para o título de 2017, vamos começar com o primeiro e maior ás das flechas de prata em todos os tempos.
OTTO WILHELM RUDOLF “Caratsch” CARACCIOLA.
Se você acha que Michael Schumacher foi o primeiro ídolo do automobilismo alemão, corrija: Rudi Caracciola e Bernd Rosemeyer, prematuramente desaparecido, ocuparam esse posto antes, com enormes méritos. Milhões de pessoas seguiam suas corridas no rádio e nos cinemas, vendo os cine-jornais com devoção. Eram realmente amados.
Caracciola, a exemplo de Dario Franchitti e Paul Di Resta, tem clara ascendência italiana. Mas Rudolf nasceu em 30 de janeiro de 1901, em Remagen, Alemanha, cuja ponte sobre o Reno viria a ser cenário de uma importante batalha no final da 2a. guerra, a ponto de virar filme.
Quarto filho de Maximilian e Mathilde, que dirigiam o Hotel Fürstenberg. Seus ancestrais tinham migrado de Nápoles durante a guerra dos Trinta Anos, quando o Príncipe Bartolomeo Caracciolo comandou a Fortaleza Ehrenbreitstein,perto de Koblenz. Sendo descendente de uma antiga família aristocrática italiana, cujas origens remontam a 780DC, ele tinha mesmo uma atitude nobre. Um esteta no cockpit, inclusive.
Como disse Alfred Neubauer, “Caracciola era tudo menos um extrovertido rei da velocidade. Era o oposto: calmo, consistente, reservado. Seu estilo de pilotagem era coerente com esse jeito de ser: nada de rodas girando em falso, nada de pneus queimando o asfalto, nada de impressionar a torcida. Ele guiava com um estilo eficiente e preciso, e quando contornava uma curva em derrapagem controlada, fazia isso tão discretamente que você mal percebia.”
Suave e preciso. Adjetivos aplicados a Jim Clark, vários anos depois.
Em 1922, era estagiário na Fafnir Automobilwerke em Aachen.
Esportes a motor, naquele tempo, eram exclusividade das classes superiores, em toda a Europa. Quando o esporte começou a se profissionalizar, no início dos anos 20, pilotos dedicados como Caracciola começaram a dominar.
Mesmo trabalhando para a Fafnir, Rudi encontrou meios de competir com uma moto NSU em corridas de endurance e obteve diversas vitórias.
Quando a Fafnir decidiu participar da primeira competição na pista de AVUS (Automobil-Verkehrs-und Übungs-StraBe) em Berlim nesse ano, Rudi pilotou um dos carros da fábrica, terminando em quarto na geral, primeiro na sua categoria e sendo o mais rápido dos Fafnir. No ano seguinte, obteve sua primeira vitoria na Opelbhan em Rüsselsheim.
A Fafnir era uma empresa que tinha começado produzindo agulhas e evoluído para a produção de motocicletas e carros até o início da 1a. Guerra. Terminado o conflito, passou a fabricar carros com motores de 2 até 4 litros.
Sua equipe de competições compreendia 7 carros.
Mas, nos anos vinte estava difícil vender carros, o mercado como um todo estava complicado.
A Fafnir tinha métodos de produção muito trabalhosos e não conseguia competir em preço com as grandes montadoras. Com uma dívida de 1,8 milhões de marcos com os bancos teve a falência decretada em 1925, fechando as portas no ano seguinte.
Mas antes disso, Rudi se desentendeu com um oficial do exército de ocupação belga em um night club a ponto de sair no braço. Achou prudente deixar a região e foi se tornar representante comercial da Fafnir em Dresden. Não era nada promissor. Ele vendeu um único carro e, devido à inflação, quando foi entregue o dinheiro era suficiente para pagar apenas a buzina e os faróis. Vimos isto aqui no Brasil, felizmente já faz tempo.
Enquanto isso, conseguiu um jeito de vencer a corrida da ADAC no Berlim Stadium em 1923, com um Ego 4 HP emprestado.
Com a decadência da Fafnir, antes do fim do ano ele se torna vendedor da Daimler Motoren Gesellschaft com permissão para competir nos fins de semana em corridas localizadas perto de Dresden. E assim leva uma Mercedes 6/25/40 HP à vitória em 4 das 8 corridas em que se inscreveu. O sucesso continua no ano seguinte com a nova Mercedes 1,5L supercharged. Ele vence nada menos que 15 corridas, incluindo a subida de montanha do Passo Klausen na Suíça.
Essa competência chama a atenção e a Mercedes o leva como piloto reserva para o GP da Italia em Monza.
Em 1925 ele obtém cinco vitórias com a 1,5L e mais as subidas de montanha de Kniebis e Freiburg com uma Mercedes 24/100/140HP. Com o sucesso abandona definitivamente seus planos de cursar engenharia mecânica.
Fez bem, porque 1926 iria ser sensacional…
Continuamos na próxima coluna.
3 Comments
Belo texto, Carlos!
Como sempre digo, não precisamos de heróis. Precisamos de bons exemplos.
Pena que hoje em dia, privilegia-se tanto a eletrônica em detrimento da capacidade individual de cada piloto. Tentam tanto impor tantos artifícios às provas, tanto dinheiro investido, tanta traquitana montada, para motivar o espetáculo, mas esquecem que a grande disputa está na agilidade, tirocínio, inteligência e velocidade de cada piloto. Nem acredito que antes era tudo melhor, mas sem dúvida privilegiava mais o talento puro. O bota, o sujeito que tinha estratégia para poupar pneus, para ultrapassar na raça, e por aí vai.
Exemplo:
Será que Stroll algum dia seria terceiro colocado em alguna carrera, sem os recursos tecnológicos de hoje?
Duvido.
PH
Chiesa,
adoro estas histórias …
muito bom … não há como comparar a Formula 1 dos dias atuais com os daqueles tempos … a de antes tudo era muito melhor …
Estou já curiosíssimo para ler a 2ª parte
Fernando Marques
Niterói RJ
É um privilégio contar com leitores como você, Fernando. Infelizmente o sistema (análogo ao “mecanismo”, como parece que o cineasta José Padilha chama o funcionamento da poiítica federal brasileira) foi deturpando a F1 e se afastando dessas raízes. Este foi a primeira parte da minha colaboração para resgatar a perspectiva inicial. Fico feliz em ver que tem mais gente com ideias convergentes.