O momento em que soube que me tornaria pai mais ou menos coincide com o triste fim de Jacarepaguá, e a combinação desses dois fatores – o primeiro, maravilhoso; o segundo, infame – terminou por me afastar fisicamente das pistas de corrida ao longo dos últimos 10 anos. Claro, o mundo mudou muito desde a popularização da internet, e mesmo não estando presente nesses anos todos, não foi muito difícil manter, ou até mesmo ampliar, a rede de contatos.
Mas é diferente, não é?
É sim, claro que é. É diferente, e é fácil nos esquecermos disso nesses tempos tecnológicos que nos aproximam de quem está distante e nos afastam de quem está perto, que nos permitem tantas experiências simuladas com riqueza de detalhes cada vez maior e, paralelamente,cada vez mais nos cobram o mesmo tempo que poderíamos estar investindo na construção de experiências e memórias presenciais, entre tantos exemplos que poderíamos escolher. É uma característica de nossa época, enfim, e o esporte a motor naturalmente não está alheio a essa realidade.
Ainda estávamos no início do ano quando refleti a respeito do retorno do Mundial de Endurance (WEC) a Interlagos, e da ótima oportunidade que este evento representaria para ver em ação alguns dos melhores carros e pilotos do mundo. Além, é claro, de encerrar aquela que, muito provavelmente, seria a melhor oportunidade de trocar algumas palavras com Valentino Rossi, possivelmente o piloto vivo que mais respeito e admiro sob o aspecto esportivo, em qualquer categoria. Só não falo com certeza a esse respeito, porque minha admiração por Sébastién Loeb é certamente muito semelhante.
Bom, querer nem sempre é poder. Credenciais FIA não são exatamente fáceis de se obter, tanto mais quando não se trabalha num veículo grande ou detentor dos direitos de transmissão. Não por acaso, ao me avisar que o período de credenciamento havia começado, Lucas Giavoni, irmão que a vida me deu, teve a gentileza de dizer que a prioridade seria minha, ciente do quanto eu gostaria de conhecer Valentino. No entanto, apesar de não sermos um veículo necessariamente popular, somos sérios, temos história, e o canal no YouTube certamente amplia nosso alcance. Senti, enfim, que merecíamos e deveríamos pleitear duas credenciais, e foi o caminho que tomamos.
A aprovação de tal pedido obviamente só foi possível graças a todos vocês, que justificam a existência do GPTotal em suas diversas plataformas. Nada mais justo, portanto, que dividamos com todos vocês como foi a rica experiência nos bastidores das 6H de São Paulo, entre os dias 12 e 14 deste mês de julho.
Fui de ônibus de Nova Friburgo para Sorocaba na quinta-feira, dia 11 de julho, e na prática isso significou que embarquei às 7h30 da manhã e só cheguei ao meu destino depois de 22h30, com uma breve escala no Rio, onde almocei antes das 11h da manhã. Durante boa parte desse tempo me dediquei a ler “A obra-prima”, segunda das biografias de Valentino Rossi, focada em seu primeiro stint com a Yamaha, entre 2004 e 2010. Naturalmente estava cansado quando cheguei, mas não havia tempo para lamentar. Era preciso comer alguma coisa e preparar a estrutura de trabalho para o dia seguinte, que já começaria bem cedo, com a retirada das credenciais no Portão 8 de Interlagos, a partir das 8h da manhã.
Tive algo em torno de quatro horas de sono, e lembro de estar um pouco assustado com meu nível de cansaço enquanto Lucas dirigia rumo à pista. Se às 7h da manhã eu já estava naquele estado, imagine como estaria ao fim do dia…
A retirada das credenciais foi tranquila, ainda que um pouco demorada, uma vez que tivemos que nos revezar tomando conta do carro. E então, a primeira surpresa/emoção do fim de semana: carros credenciados para a imprensa deveriam ser estacionados a partir do Portão 9, bem atrás das antigas e maravilhosas curvas 1 e 2, de onde fomos encaminhados para dentro do icônico kartódromo que tantos talentos legendários revelou para o esporte que amamos. De fato, estacionamos já sobre o seu asfalto.
Eu nunca tinha ido ao kartódromo de Interlagos, e fiquei muito impactado pela energia do local. Muito mesmo. Os boxes pequenos, a salada olfativa típica de oficinas dos anos 80, sem mencionar as imagens na cabeça de gente como Walter Travaglini, Mário Sérgio de Carvalho, Chico Serra, Maurizio Sandro Sala, Rubens Barrichello, Christian Fittipaldi, e claro, “Tchê” e Ayrton Senna. Tudo parece estar exatamente como era 40 ou 50 anos atrás, e foi muito oportuno e intenso que nossos três dias de pista tenham sempre começado e terminado ali.
Por lá mesmo encontramos Rodrigo França, que gentilmente nos guiou até o ponto a partir do qual uma van nos levaria ao centro de mídia. Lá chegando foi a vez de conhecer pessoalmente outros amigos até então apenas virtuais, como Rodrigo Mattar e Rodolpho Siqueira. Noutros momentos, nesse mesmo espaço, conheceríamos pessoalmente a Sérgio Milani, Milton Rubinho, Felipe Meira, e vários integrantes dessa turma tão especial de apaixonados que tanto fez pela popularização do Endurance em terras brasileiras, seja através do projeto abraçado pelo Grupo Bandeirantes, seja através do pulsante e cheio de personalidade Graining&Marbles. Desse mesmo grupo ainda teríamos posteriormente a satisfação de conhecer o contagiante Roberto Taborda, que como Lucas bem registrou em sua mais recente coluna, era de longe a pessoa mais feliz em Interlagos.
Feito o primeiro reconhecimento do Centro de Mídia, era hora de explorar os limites do que as credenciais poderiam nos proporcionar. Seguimos para a parte de trás dos boxes, onde de imediato topamos com Felipe Giaffone, e também com alguns pilotos ou ex-pilotos. De cabeça, nesse primeiro momento, lembro-me de ver Alexander Wurz e Robert Kubica, com quem fiz os primeiros contatos que mais tarde resultariam em breves entrevistas exclusivas, e também de falar rapidamente com Paulo de Tarso e seu filho Tarso Marques a respeito de assuntos relacionados a nosso canal no YouTube.
Logo as atividades de pista tiveram início, e ficou claro que seria inútil permanecer ali. Seguimos então para o paddock, onde tivemos um breve e feliz encontro com Ingo Hoffmann, com consequências que Lucas Giavoni certamente narrará neste espaço em alguma coluna futura. Descobrimos também bons locais de observação, que seriam muito úteis nos dias seguintes.
De volta à parte de trás dos boxes conseguimos agendar uma exclusiva com Kubica para o dia seguinte, e tivemos uma longa e amistosa conversa com Raul Boesel, que aos poucos passou a contar também com as presenças de Reginaldo Leme e Felipe Nasr, além de uma aparição rápida de Augusto Farfus. Enquanto conversávamos foi Boesel quem chamou a atenção para a passagem, por nós, de Valentino Rossi, sendo transportado na parte de trás de um carrinho de golfe. E aqui vale a pena pararmos nossa narrativa por um momento.
Ao longo de todos os meus anos de experiências nas pistas, as melhores histórias e entrevistas sempre foram obtidas fora dos horários determinados para encontros de mídia ou entrevistas coletivas, e para isso as sextas-feiras, quando há menos jornalistas e pessoas disputando a atenção dos pilotos, sempre foram fundamentais.
A sensação de conquista e de vitória ao conseguir tais momentos decorre diretamente de um fato óbvio e sempre perceptível: pilotos cada vez menos querem falar com jornalistas fora dos horários que lhes são determinados e obrigatórios. Direcionar-se a eles, atualmente, é quase como assumir o papel de um pedinte, como aqueles que buscam um breve contato visual para que iniciem alguma estratégia de comoção ou coação.
Uma década atrás, por exemplo, eu circulava pelos boxes de Curitiba e tinha livre acesso aos pilotos do WTCC, incluindo os mais célebres, como Alessandro Zanardi, Andy Priaulx, Nicola Larini, Tiago Monteiro ou Gabriele Tarquini, sem em momento algum precisar do intermédio de um assessor de imprensa. Bastava ter paciência para fazer a abordagem educadamente e num momento menos inoportuno, de preferência com uma frase inicial que os surpreendesse acerca do conhecimento de suas carreiras, e pronto, você quase sempre conseguia uma conversa informal e aos poucos ia ganhando suas confianças, que não raramente se convertiam em entrevistas muito interessantes.
No WEC, nesta edição de 2024, definitivamente não foi assim, com a gloriosa exceção da simpática e acessível equipe Isotta-Fraschini, apelidada pela turma do Graining&Marbles de “a Minardi do WEC”. É bem verdade que equipes como a Toyota e a AF Corse foram absolutamente solícitas e fizeram o possível para que pudéssemos conversar com todos que pedimos, mas ainda assim estamos falando de contatos intermediados, num molde muito próximo ao da f1 atual do que ao do WTCC de 10 ou 15 anos atrás, o qual remetia à F1 clássica dos anos 50, 60 ou 70.
Ora, é claro que eu levei comigo a Interlagos algumas ambições pessoais. Planejava entrevistar com exclusividade a Robert Kubica, Jenson Button e, acima de todos, Valentino Rossi. E aquela imagem dele sendo transportado pela área comum na parte de trás de um carrinho de golfe me acendeu uma luz amarela. De repente, o que antes me parecia uma questão de tempo, agora começava a parecer cada vez mais improvável. Um sentimento que só se agravou quando a assessora de imprensa da Team Jota, de Jenson Button, me informou que o campeão mundial de 2009 não teria mais nenhum compromisso com a mídia durante o fim de semana, em resposta negativamente similar à que a assessora de Valentino Rossi havia me dado por e-mail alguns dias antes, quando lhe solicitei uma exclusiva com o eneacampeão.
Antes de retornarmos ao centro de mídia, onde estava previsto um meet the team com a equipe BMW de Augusto Farfus e Valentino Rossi, ainda tive tempo de fazer minha entrevista com Wurz, durante a qual relembramos seus bons desempenhos do passado em Interlagos e detalhamos sua função atual de conselheiro esportivo, bem como falamos rapidamente a respeito de sua histórica batalha com Michael Schumacher no GP de Mônaco de 1998. Uma boa conversa, e faço questão de registrar aqui sua simpatia e educação.
No mesmo horário marcado pela BMW também haveria um evento de mídia por parte da Toyota, e eu e Lucas chegamos a considerar a hipótese de nos dividirmos, ou mesmo de irmos juntos à equipe japonesa, uma vez que as chances de que Valentino aparecesse no Centro de Mídia pareciam cada vez mais remotas. Ainda assim optamos por permanecer, e enquanto eu tinha uma boa conversa com Farfus eis que surge Valentino, vindo por alguma rota alternativa que novamente nos deu a dimensão do nível de blindagem que havia se estabelecido ao seu redor.
Diferentemente dos demais pilotos, acessíveis a perguntas na chamada zona mista, Valentino foi direcionado à mesa para uma rápida coletiva de imprensa. Durante essa entrevista falou a respeito das boas lembranças que tem do Brasil, reafirmou que Jacarepaguá era uma de suas pistas favoritas, e disse que havia se encontrado na noite anterior com Alexandre Barros, a quem definiu como “um grande amigo”. Eu levantei minha mão pedindo para fazer uma pergunta, mas a entrevista foi curta e não tive minha chance.
Valentino ficou então a não mais do que um metro e meio de mim enquanto dava merecida atenção ao jovem Cadu Campos, e cheguei a lhe mostrar as biografias dele próprio que havia levado. Ele me ouviu e viu o que tinha comigo, mas era nítido que estava totalmente focado em desaparecer dali o mais rápido possível. Nessa altura alguém o apresentou a Reginaldo Leme. Eu, assim como o Lucas, estava a não mais de um metro dos dois quando tiramos a foto acima. E então Valentino se foi, tão rápido quanto tinha aparecido.
A sala começou a esvaziar, mas entre os presentes reconheci a assessora de Valentino, com quem havia trocado e-mails alguns dias antes, e me apresentei pessoalmente. Expliquei que meu filho havia feito dois desenhos para Valentino, e que eu tinha trazido para ele uma versão impressa e em italiano da coluna que publiquei no GPtotal por ocasião de sua aposentadoria na MotoGP. Mais que isso, disse que era um texto muito especial para mim, pois após a morte de minha mãe fui descobrir que ela o havia lido e comentado. Comentário este que eu fiz questão de responder, mesmo com ela já não estando mais por aqui para que pudesse ler. Emma, a assessora, entendeu a importância da situação, mas o máximo que conseguiu nos dar em resposta foi que no dia seguinte Valentino teria uma sessão de autógrafos com os demais pilotos, durante o chamado Grid Walk. Na prática, um cenário caótico, e chances desanimadoras de qualquer interação verdadeira.
Paralelamente, expliquei a mesma situação a Augusto Farfus, e pedi sua ajuda para que pudesse entregar a Valentino os desenhos e o artigo, e ele prometeu me ajudar, em grande parte por já me conhecer há 17 anos, e por também ser pai. Por fim, num último esforço, eu e Lucas ainda retornamos aos boxes a tempo de ver Jenson Button deixando o autódromo e, como sua assessoria havia nos antecipado, nos negar um pedido de entrevista.
Tudo indicava, enfim, que as missões que havíamos determinado a nós mesmos seriam mais difíceis do que originalmente havíamos previsto. Mas as lembranças do dia, e uma atmosfera mágica no kartódromo em meio a uma chuva fina no momento de irmos embora, nos davam a sensação de que o jogo ainda estava aberto.
Os inúmeros e surpreendentes acontecimentos de sábado e domingo eu contarei em nosso próximo encontro.
Forte abraço a todos, e até breve.
4 Comments
Que demais, Márcio! Experiências inesquecíveis, obrigado por compartilhar conosco! Grande abraço!
Nada mais justo, meu amigo.
Tudo isso só foi possível graças aos amigos que, como você, fazem esse espaço existir.
Abraço, e muito obrigado.
Márcio,
Trabalhoso e muito prazerante deve ter sido sua ida a Interlagos, ainda mais indo de Nova Friburgo até São Paulo de ônibus.
Não demora para continuar a nos brindar e nos contar tudo que vc e Lucas aproveitaram de bom lá
Fernando Marques
Niterói RJ
Oi meu amigo.
Foi sim, bastante cansativo mas muito gratificante também.
Muito obrigado pelo retorno de sempre e por ser um dos pilares que justifica a existência deste espaço.
Abraço, meu amigo.