Pistas, quebras e respeito

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Em nosso animado grupo de WhatsApp, o mestre Eduardo Correa nos lembrou, durante a transmissão do GP da Áustria, de uma verdade em relação à humanidade: não se pode desaprender certas coisas, por mais que todos pudéssemos melhor antes de conhecê-las. Vale para bombas atômicas, vale para o automobilismo em relação à capacidade de gerar carga aerodinâmica, e para muitas outras coisas também.

Na parte que nos toca mais diretamente, ao longo das últimas décadas temos visto diversas medidas reativas, mais ou menos artificiais, concebidas com o intuito de “aumentar a emoção”, e tornar as corridas mais interessantes ao espectador casual. Auxílios para ultrapassagem, punições no grid de largada e regulamentos restritivos são apenas alguns dos exemplos nesse sentido, na maioria das vezes com resultados questionáveis ou carentes do necessário lastro de veracidade.

Este domingo, no entanto, nos presenteou com preciosas oportunidades de recordar a importância de alguns pilares quase filosóficos do esporte a motor que têm sido sistematicamente postos de lado, e que poderiam acrescentar um tempero orgânico e muito saudável ao molho dos grandes prêmios atuais.

O primeiro destes pilares são as próprias pistas. De fato, nada melhor do que mais uma maravilhosa prova da MotoGP em Assen para nos confrontar com o tipo de espetáculo que se pode alcançar quando as características do traçado combinam em altíssimo grau com as virtudes e características dos veículos que por lá irão correr.

A rigor, a “Catedral” holandesa parece uma pista desenhada para as saudosas motos dois tempos, que na época de ouro das 500cc poderiam entregar algo próximo a 200hp em pouco mais de 130kg de peso. Em essência, são pouquíssimos trechos em retas ligando sequências inigualáveis de curvas desenhadas por quem entende muito do assunto.

Cambagem, ângulos, espaço entre curvas, tudo estabelecido à perfeição para manter o piloto sempre tendo de escolher a própria velocidade, sempre em transição, sempre dosando inclinação e acelerações, sempre fazendo escolhas, enfim, e ao mesmo tempo ainda permitir duas ou mais linhas de ataque, que na prática se traduzem em inúmeras possibilidades de ultrapassagem, ainda que nenhuma delas seja essencialmente fácil ou indefensável. O resultado é quase uma certeza matemática de que corridas por lá serão sempre interessantes, para dizer o mínimo.

A edição de 2018, no entanto, foi além deste ponto. Oito pilotos brigando ferozmente pela ponta durante a maior parte da corrida, alternâncias constantes de posição, disputas no limite da coragem e inúmeras situações nas quais o piloto se via obrigado a decidir entre arriscar tudo ou aceitar perder a posição. De fato, a abordagem coletiva foi tão agressiva que registraram-se mais de 170 ultrapassagens entre os três primeiros colocados, e durante boa parte da corrida restou a impressão de que ela seria definida numa loteria, cujo vencedor seria o “sortudo” a liderar na única volta que realmente importa.

Felizmente não foi o caso. Após cometer um erro que o derrubou para a quarta posição, o irrefreável Marc Márquez levou seus pneus macios ao limite da resistência ao conseguir uma magnífica ultrapassagem tripla, para em seguida abrir uma distância segura em relação ao pelotão, deixando claro qual o conjunto que merecia mesmo ter vencido. Rins, Viñales, Dovizioso e Rossi completaram os cinco primeiros num um épico do esporte que quem não viu precisa ver.

A Fórmula 1, por sua vez, nos deu a mesma lição mas por abordagem oposta. A atual pista de Spielberg, na Áustria é uma caricatura do traçado que, até os anos 80, podia ser apontado como o melhor entre os autódromos regulares em todo o mundo, e que já havia sido ainda melhor nos anos 70, antes da construção da chicane ao fim da reta.

Lembro, por exemplo, de ouvir Roberto Pupo Moreno me dizer que a experiência mais marcante que viveu ao volante de um carro de corrida foi ter tido a chance de acelerar a Williams de 1987, com 4 bares de pressão no turbo, na pista austríaca. Certamente a experiência teria sido muito menos impressionante caso tivesse sido vivida no traçado atual.

A essa altura o leitor pode argumentar que mexer nos carros é muito mais fácil e barato do que mexer nos autódromos, o que é um fato irrefutável. No entanto, existem pelo mundo pistas mais adequadas aos carros de F1 do que aquelas que integram o grid atual, e a maior explicação para que não sejam utilizadas é comercial. Da mesma forma, temos visto o surgimento de novas praças milionárias, e o custo não teria sido maior se aspectos esportivos tivessem tido maior peso no momento de aproveitar as possibilidades dos terrenos.

Talvez esteja sendo muito idealista aqui, uma vez que o dinheiro é quem banca o espetáculo. Mas o fato é que as diretrizes atuais aplicadas à determinação dos traçados a serem utilizados têm atrapalhado, e bastante, o desenrolar do espetáculo. E, para não deixa de citar ao menos um caso positivo, acredito que os amigos concordem que a pista de rua em Baku é um bom exemplo do que um traçado desafiador e uma longa zona de aceleração podem fazer pelo bem das disputas na atualidade.

Mas, apesar da pista limitada, a corrida na F1 foi interessante, não? E no cerne desta constatação estão outros dois fatores que não podem ser limados do esporte: falhas mecânicas e o respeito aos pilotos e ao público.

Lembro, quando era moleque, da tensão que costumava sentir nas voltas finais quando algum de meus ídolos tinha a corrida nas mãos. Os carros quebravam com enorme frequência, ficavam sem gasolina nas voltas finais, e isso permitia que muitas vezes conjuntos improváveis pudessem ter atuações heroicas premiadas com pontos.

Ao mesmo tempo, no entanto, tais quebras não eram necessariamente decisivas para o desfecho do campeonato, uma vez que estavam previstas no sistema de pontuação que computava apenas os melhores resultados. Um sistema que obviamente não era perfeito, claro, e eventualmente poderia ser injusto com os conjuntos mais consistentes, mas que evitava a terrível aberração atual, na qual é muito mais fácil que um campeonato equilibrado seja definido pelo número de abandonos que o de vitórias.
Ok, mas como voltar a ter quebras, se não podemos desaprender o que aprendemos, e elas precisam ser espontâneas?

Bom, de imediato, há que se mexer na pontuação, permitindo que ao menos dois resultados sejam descartados ao fim da temporada. Isso certamente daria aos pilotos e engenheiros um pouco mais de segurança para arriscar, sem tanto medo de ficar pelo caminho. Além disso, há que se liberar o desenvolvimento e a substituição corrida a corrida de diversos componentes não tão caros, de modo a trazer de volta o espírito do carro construído no limite da performance, que “deve vencer e se desintegrar logo após a bandeirada”.

Por fim, antes que sigamos para o próximo tópico, cabe observar que neste domingo, na Áustria, a quebra que determinou o resultado final da prova em favor de Max Verstappen foi a de Bottas, e não a de Hamilton.

Encerrando por aqui, não podemos deixar de observar que a Ferrari contrariou expectativas e não inverteu o posicionamento de seus dois carros nas voltas finais, mesmo tendo apenas em Sebastian Vettel um postulante ao título de pilotos.

Foi uma atitude de coragem, mas sobretudo uma postura de respeito para com Kimi e os espectadores, preservando a tão necessária veracidade do resultado.

Uma ótima semana a todos, e até Silverstone!

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

4 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Grande Coluna, amigo Márcio!

    Após a incrível prova da Motogp, confesso que não tinha o menor tesão em assistir a prova da F1.

    E como eu gostaria que a atual F1, estivesse no mesmo nível de disputas e adrenalinas da atual Motogp.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  2. Fernando Marques disse:

    Infelizmente,não pude ver a corrida em razão de um compromisso familiar na manha do domingo passado.
    Pelo que li e vi nos melhores momentos, foi uma corrida movimentada e tida como a melhor do ano até agora.
    Hoje analisar a Formula 1 seja pelos seus regulamentos, pelas pistas que fazem parte do calendário, pelos os carros, pelos os pilotos, pela equipe e estrategistas e outras coisitas a mais está se tornando também num mar de tantas dúvidas e incertezas de tão complexa que está a Formula 1 nos dias de hoje.
    A unica certeza que eu tenho é que a cada ano que passa ela perde a sua essência.
    A atual pista de Spielberg pode ter sido mutilada, mas ela não merece corridas enfadonhas como por exemplo foi o GP da França. Vamos agradecer aos Deuses por termos tido ao menos uma boa corrida na Áustria.
    Com relação a esta questão de pontuação sou a favor unica e simplesmente da antiga onde apenas os 6 primeiros pontuavam e sem nenhum descarte permitido por regulamento. Se quiser pontuar tem que arriscar.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  3. Lucas dos Santos disse:

    Sobre o sistema de pontuação, concordo com a volta dos melhores resultados. Isso daria mais espaço para os pilotos e equipe ousarem mais. Até na Fórmula E esse sistema é usado, em que, se eu não estiver enganado, descarta os dois piores resultados.

    Lembro-me que, para 2009, o Sr. Bernie Ecclestone propôs acabar com o sistema de pontuação e levar em consideração apenas o número de vitórias – ou melhores resultados – dos pilotos. No início, eu achei um absurdo, mas, pensando bem, talvez não fosse tão ruim. Afinal, vitórias e melhores resultados precisam ser valorizados. Se esse sistema fosse adotado hoje, a classificação do campeonato ficaria assim:

    HAM – 3 vitórias, 1 segundo-lugar, 2 terceiros-lugares (+1)
    VET – 3 vitórias, 1 segundo-lugar, 1 terceiro-lugar (+1)
    RIC – 2 vitórias (+1)
    VER – 1 vitória (+1)
    BOT – 4 segundos-lugares (+1)
    RAI – 2 segundos-lugares (-1)
    PER – 1 terceiro-lugar (+4)
    GAS – 1 quarto-lugar, 1 sétimo-lugar (+5)
    GRO – 1 quarto-lugar, 0 sétimo-lugar (+6)
    MAG – 2 quintos-lugares (-3)
    ALO – 1 quinto-lugar, 3 sétimos-lugares (-3)
    SAI – 1 quinto-lugar, 1 sétimo-lugar (-2)
    HUL – 2 sextos-lugares, 2 sétimos-lugares (-4)
    OCO – 2 sextos-lugares, 0 sétimo-lugar (-2)
    LEC – 1 sexto-lugar (+1)
    VAN – 1 oitavo-lugar, 2 nonos-lugares (=0)
    STR – 1 oitavo-lugar, 0 nono-lugar (=0)
    ERI – 1 nono-lugar (=0)
    HAR – 1 décimo-lugar (=0)
    SIR – 1 décimo-terceiro lugar (=0)
    * Número entre parênteses representa a quantidade de posições que o piloto subiria ou cairia em relação ao sistema atual.

    Já a classificação do campeonato dos construtores ficaria assim:

    Mercedes – 3 primeiros-lugares, 5 segundos-lugares (+1)
    Ferrari – 3 primeiros-lugares, 3 segundos-lugares (-1)
    Red Bull – 3 primeiros-lugares, 0 segundo-lugar (=0)
    Force Índia – 3 terceiros-lugares (+3)
    Haas – 1 quarto-lugar, 1 quinto-lugar (=0)
    Toro Rosso – 1 quarto-lugar, 0 quinto-lugar (+2)
    Renault – 1 quinto-lugar, 2 sextos-lugares (-3)
    McLaren – 1 quinto-lugar, 0 sexto-lugar (-2)
    Sauber – 1 sexto-lugar (=0)
    Williams – 1 oitavo-lugar (=0)

  4. Lucas dos Santos disse:

    Finalmente uma corrida que não precisou da ajuda do Safety Car para ser movimentada e imprevisível – OK, teve um Safety Car Virtual, mas acho que não afetou tanto a corrida. Sem dúvidas, a melhor corrida da temporada até agora!

    Gostei muito da vitória do Verstappen. Desde o GP de Mônaco, a Red Bull tem estado muito forte, andando praticamente no mesmo ritmo que a Mercedes e a Ferrari. E sim, o Verstappen realmente não mudou o seu estilo de pilotagem, tanto que quase tirou o Raikkonen da corrida ainda na primeira volta! Se isso acontecesse, certamente ele iria “from hero to zero”, como diz o pessoal da TV inglesa.

    Quanto a pista antiga, temo que ela não mais seria adequada para os atuais carros da Fórmula 1, que têm uma aderência monstruosa. A Fórmula 1 de hoje não é mais compatível com pistas rápidas, de alta velocidade média e composta de curvas de alta velocidade, como era o antigo Östrreichring. A Fórmula 1 de hoje pede circuitos com mais pontos de frenagem forte, porque hoje as ultrapassagens são feitas na base do “quem freia mais tarde – com uma ajudinha do DRS, é claro! Nesse ponto, a pista atual é perfeita e tem todas as características necessárias para uma boa corrida. Se serve de consolo, consta que o atual dono do Red Bull Ring sonha em restaurar o traçado antigo – ou a parte que ainda existe. Parece que a única coisa que está impedindo desse plano sair do papel é a burocracia com órgãos ambientais. Pelo que pude apurar, a pista com o traçado antigo restaurado ficaria assim: https://i.imgur.com/JOGdz2f.png (isso se não mexerem nas curvas).

    No fim das contas, o que tornou a corrida imprevisível e emocionante foi a inesperada degradação dos pneus e caixas de marchas abrindo o bico. Eu espero, sinceramente, que não se repita o erro de tornar esses componentes mais frágeis para a próxima temporada a fim de produzir corridas artificialmente imprevisíveis. Já fizeram isso com os pneus anteriormente e todo mundo viu o resultado!

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