Privilégios de nossos dias

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Pilotos Olímpicos – Parte 2
01/11/2021

Peço licença ao amigo Rafael Mansano, autor da coluna que cobriu todo o fim de semana do GP dos Estados Unidos, para dividir algumas impressões e observações pessoais a respeito desta que foi uma das corridas de que mais gostei nas últimas décadas.

Aos olhos desatentos de um espectador menos iniciado, talvez a prova americana tenha parecido banal e um tanto enfadonha. Lewis superou Max na largada, sofreu o undercut na primeira troca de pneus e as posições permaneceram assim até a bandeirada. Nada de especial, correto? A devida análise contextual, contudo, irá nos mostrar que testemunhamos uma batalha de primeira grandeza entre dois dos mais talentosos pilotos que já passaram pelo campeonato mundial.

Alguns talvez discordem dos termos fortes que estou empregando, mas convém lembrar que o esporte a motor – como, ademais, qualquer outra modalidade – deve, sempre que possível, ser analisado em perspectiva. Ora, quando Fangio disputou com o jovem Moss, o inglês ainda não tinha números que pudessem impressionar, mas era evidente, pela qualidade de sua pilotagem, que ali estava um potencial campeão mundial – e dos bons. Duas décadas mais tarde, quando Stewart batia rodas com Emerson Fittipaldi, o brasileiro ainda era um novato, mas qualquer um que não fosse demasiadamente apegado a números seria capaz de reconhecer em seu pacote técnico um piloto campeão. Da mesma forma, os duelos entre Prost, Senna e Schumacher, nas voltas iniciais dos GPs da África do Sul ou da Inglaterra de 1993, hoje parecem mais especiais do que na época em que aconteceram. Assim como a batalha entre Fernando Alonso e o estreante Lewis Hamilton ao longo de 2007 foi tornando-se mais e mais especial a partir de tudo que ambos fizeram nas pistas do mundo desde então.

Deixando os números de lado por um momento, é igualmente óbvio que Max Verstappen é um piloto de exceção com potencial para liderar uma hegemonia e conquistar vários títulos, ainda que até o momento não tenha sido campeão. Seus números, portanto, parecem (ainda) não refletem sua real dimensão histórica, pelos mesmos motivos que, em extremo oposto, Hamilton e Schumacher terminaram por concentrar estatísticas e recordes em desproporção aos grandes talentos do passado.

Que ninguém se engane pelas estatísticas. Em condições normais, no momento atual a diferença de pilotagem entre Max e Lewis – se é que existe – é bem menor do que o abismo que separa seus cartéis.

De forma direta, o que quero dizer é que muito provavelmente estamos vendo um duelo de gerações entre pilotos que no futuro devem alcançar o status de lendas. E, de modo muito específico, este excepcional GP dos Estados Unidos entregou o tipo de confronto que gostaríamos de ter visto desde o início do ano, possivelmente elevando a um novo patamar uma batalha que parecia fadada ao desperdício, dada a demora para superar a fase da disputa territorial.

É bem verdade que num dos treinos livres no Texas os dois estiveram perto de um acidente de dinâmica absolutamente ridícula, com direito a dedo médio em riste, em razão dessa constante troca de mensagens não verbais focadas em deixar claro que ninguém irá ceder um milímetro quando em disputa direta. Há esperança, todavia, de que a qualidade da batalha no domingo possa trazer de volta toda essa energia para o local onde deveria sempre ser canalizada: a qualidade da pilotagem de cada um.

A julgar pelo histórico de curto e longo prazo, Hamilton deveria ter vencido em Austin. Além de todas as vitórias que já conquistou no Circuito das Américas, há que se considerar também que as atualizações introduzidas pela Mercedes em sua unidade motriz às vésperas do GP da Bélgica mudaram o equilíbrio de forças em favor dos prateados, com efeitos sensíveis também sobre os desempenhos de McLaren e Williams.

Tal perspectiva agrega muitas camadas à emblemática vitória de Max Verstappen, que poderia muito bem ser encarada como algo equivalente à quebra do serviço do adversário, numa partida de tênis. De fato, ele venceu onde não se esperava que pudesse vencer. E o fez na pista, em disputa direta, sem interferências externas, arrancando tudo de seu equipamento e seus pneus, desde a qualificação até a bandeirada.

A disputa entre Max e Lewis, desde os treinos, merece ser lembrada entre as melhores na história da categoria.

O tempo todo o desempenho dos dois conjuntos esteve muito próximo, a Red Bull sendo superior com pneus médios e a Mercedes melhor quando calçada com borracha dura. Superado na largada, Max deu início a uma perseguição implacável, cuja intensidade há muito não víamos, parcialmente em razão da interferência do DRS.

Em Austin, contudo, a asa móvel não foi tão decisiva quanto habitualmente tem sido, devolvendo ao posicionamento em pista o papel importante que sempre teve – e precisa ter – no desenrolar das corridas. Apesar de estar mais rápido, Max perdeu tempo atrás de Lewis nas voltas iniciais. Nos stints subsequentes seria a vez de Lewis se ver limitado pelo ritmo do rival, sem contudo conseguir a ultrapassagem. Nada de chegar e passar, sem chance de defesa da posição. Nos Estados Unidos, a batalha se deu como deveria acontecer sempre. Algo que, inclusive, valoriza os méritos de Verstappen, que após a primeira parada precisou superar prontamente conjuntos mais lentos, a fim de que pudesse concretizar o undercut.

O ritmo imposto por Max e Hamilton fez lembrar as grandes batalhas já vistas no universo dos GPs. Corridas como Mônaco 1933, França 1953, Inglaterra 1972, Bélgica 1974, Holanda 1975, Inglaterra 1987, Japão 1989, Jerez 1997, e especialmente a magnífica prova em Silverstone, 1969. Por outro lado, sob o aspecto moral, a vitória de Max fez lembrar o soco na mesa desferido por Ayrton Senna na Hungria em 1991, quando chamou para si a responsabilidade e interrompeu, no braço, a sequência de vitórias que vinha sendo emendada por Nigel Mansell.

Só podemos entender como algo muito precioso que um heptacampeão, no auge de sua forma, esteja sendo levado aos limites por um adversário mais jovem e cheio de ambição e de talento. Para quem curte automobilismo de qualidade, resta torcer para que os próximos encontros entre ambos continuem a narrativa a partir de onde ela foi deixada no Texas.

Contudo, apesar de nossa torcida por uma disputa esportivamente limpa, é certo que tanto Mercedes quanto Red Bull estão totalmente focadas em chegar à corrida final liderando a tabela de pontos. Sabe como é: o clima anda bastante carregado entre os postulantes ao título, e não parece difícil que algum dos protagonistas se sinta tentado a alargar demais alguma trajetória caso o campeonato esteja em jogo. Tomara que temporada tão especial não venha a ser maculada por esse tipo de postura.

Porque mesmo para quem já foi campeão sete vezes, parece claro que a disputa, nesse ano de 2021, evoluiu para algo maior. Existem muitas questões pessoais envolvidas, e é certo que Hamilton e a Mercedes tentarão devolver a “quebra de serviço” em pistas tradicionalmente favoráveis a Max e a Red Bull, nas próximas etapas.

Boas perspectivas na F1, boas perspectivas na MotoGP.

De forma sólida e merecida, Fabio Quartararo confirmou seu favoritismo a amealhou seu primeiro título na principal categoria da motovelocidade internacional. E a boa notícia é que tal conquista se deu numa prova vencida por Marc Márquez, que aos poucos vai deixando para trás as sequelas do terrível acidente sofrido no início de 2020, e dominada (até a queda) pelo fortíssimo conjunto formado atualmente pela Desmosedici e Francesco Bagnaia.

Num momento em que estamos todos nos sentindo órfãos diante do gigantesco vácuo que será deixado por Valentino Rossi ao fim da temporada, nada melhor do que ver pilotos moldados à sua imagem assegurando que o nível da competição seguirá elevadíssimo.

Tomara que possamos ver estes pilotos e estas motos se digladiando nas próximas temporadas, sem a interferência de lesões de maiores proporções.

Encerro esta coluna dedicada aos privilégios de nosso tempo informando aos amigos que o mestre Francisco Santos acaba de publicar seu 151º livro(!), desta vez dedicado a condensar a rica história de 125 de ralis.

Tratado pelo autor como uma de suas melhores obras, “Rallye 125 anos” já nasce como uma aquisição obrigatória para quem gosta de se aprofundar nos estudos históricos do esporte a motor, e também para quem sabe apreciar informações sendo apuradas e tratadas com o respeito e o rigor que tanta falta fazem em nosso tempo.

Em dado momento do trabalho de pesquisa fui convidado pelo Chico a dar pequena contribuição, e essa foi uma das grandes honras que tive na vida.

A todos um forte abraço, e ao amigo Francisco muita saúde para continuar guiando nossos passos.

Márcio Madeira

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

6 Comments

  1. Stephano disse:

    Vi Austin lembrando do Japão 89. Pensei em você na hora, caro amigo! Pra variar, QUE TEXTO!

  2. Fernando Marques disse:

    Esqueci de falar sobre o Doctor Valentino Rossi … vai fazer muita falta … a Moto GP, desde os seus primórdios nunca teve um piloto tão carismático e bom pra cacete como ele … fazer o que ele faz na categoria com 46 anos nunca ninguém fez … mesmo andandolá trás como foi este ano ue nem podio até então conseguiu subir …
    Marcio D … gostei da sua teoria …

    Fernando Marques

  3. Obrigado pelo retorno de sempre, Fernando.
    Quanto à vantagem aberta por Max, entendo que ele deu tudo nas primeiras voltas com pneus novos, não apenas para se colocar e se manter na ponta, mas também para abrir alguma vantagem enquanto Lewis estava de pneus velhos, ciente de que após a troca do rival seria ele a ter um déficit de borracha para administrar.
    Mas você tem razão. Nas voltas 11, 12, 13 e 14 Max virou, respectivamente: 1:58.851; 1:40.426; 1:40.102 e 1:40.411. Hamilton, por outro lado, virou: 1:41.822; 1:42.073; 1:42.177 e 2:01.383. Vê-se que nas três voltas normais Max foi aproximadamente 5s mais rápido, e que na volta de retorno ele foi cerca de 2,5s mais rápido. De fato Hamilton foi atrasado, mas ele teria voltado atrás de qualquer forma.
    Abraço, e escreva sempre.

  4. MarcioD disse:

    A diferença de idade entre pilotos pesa muito, geralmente a favor do mais novo, mesmo levando-se em conta a maior experiência do mais velho. A diferença de idade entre Hamilton e Max é de quase 13 anos. É muita coisa. A tendência de Hamilton daqui para frente é entrar em decadência, enquanto a de Max é de crescimento como piloto. É o normal da vida.

    Inclusive existe a possibilidade de Hamilton perder para Russell ano que vem, a não ser que a Mercedes queira favorece-lo.

    Vejamos algumas diferenças de idade aproximadas dos anos 70 para cá: Stewart x Fittipaldi-8, Fittipaldi x Lauda-3, Lauda x Piquet-2, Piquet x Prost-3, Prost x Senna-5, Senna x Schumacher-9, Schumacher x Alonso-12, Alonso x Hamilton-4, Hamilton x Vettel-2.

    Como comparar Rosberg correndo junto com Schumacher na Mercedes, sendo que ele era 16 anos mais novo, além de Schumacher ter ficado parado por 3 anos.

    Por isso gosto de comparar pilotos com pouca diferença de idade, correndo com equipamentos de desempenho próximo. Por exemplo, Hamilton x Vettel- 2 anos de diferença de idade em 2017 e 2018 com Mercedes x Ferrari.

    O que eu quero ver é Max correndo contra Russell, menos de 1 ano, Leclerc- mesma idade ou Norris 2 anos a menos, com equipamentos semelhantes para ver o quão bom realmente ele é.

    E espero que Hamilton pare logo, dando oportunidade para pilotos mais novos mostrarem serviço e não tenha uma experiência semelhante à de Valentino Rossi, cujo desempenho caiu assustadoramente ao final de sua carreira.

    • Legal seu levantamento, Márcio. Obrigado pelas informações.
      Pessoalmente, também vejo graça e simbolismo no duelo de gerações – como vem ocorrendo no tênis, fazendo mais uma vez a analogia. Mas é certo, como você bem disse, que a carreira de um piloto será definida pela forma como irá lidar com os adversários de idade próxima.
      Abraço, e escreva sempre.

  5. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    no meu comentário coluna do Rafael, também disse que achei a corrida boa. Desde a largada a disputa entre Verstappen e Hamilton me prendeu frente a telinha da Band. Duelo dos bons como você disse.
    Mas aquele undercut do Vertappen no primeiro pit stop da corrida achei surreal. Hamilton voltou quase 6 segundo atrás do Vertappen. Em alguma coisa a Mercedes como equipe comeu muita mosca. Se lembra GP do Brasil de 1994, quando a Bennetton deu um show de pit stop na Willians, e não só botou Schumacher na ponta da corrida como a léguas de distancia do Senna? Se vale a comparação a RBR fez a mesma coisa com a Mercedes em Austin.
    Espero e fico na torcida que estas ultimas 5 etapas nos tragam fortes emoções nesta batalha entre Hamilton x Verstappen. Mas estou desconfiado que a Mercedes não vai chegar junto …
    Verstappen merece ser campeão? Sim
    Merece ganhar o titulo em 2021? Sim

    Mas a minha torcida é pro Hamilton, que também vem guiando o fino este ano e é melhor que o Verstappen.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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